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Entrevista: 
Mirla Cisne

'A própria história do capitalismo foi fundida com a lógica de exploração do patriarcado e do racismo’

No próximo domingo, 8 de março, o mundo comemora do Dia Internacional da Mulher. A celebração da data, no entanto, é cada vez menos vinculada às suas origens: foi em 8 de março de 1917 que dezenas de milhares de operárias russas que trabalhavam no setor de tecelagem entraram em greve denunciando, entre outras coisas, as péssimas condições de trabalho e a situação de miséria dos trabalhadores. Considerada um marco importante da mobilização que culminaria com a Revolução Russa, essa greve é mais um exemplo da relação que as primeiras organizações feministas mantinham com o movimento operário. Passados quase 100 anos, algumas correntes do movimento feminista continuam destacando as relações de trabalho como centrais para a luta das mulheres. É nessa trilha que a professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte Mirla Cisne define sua área de estudo e militância como “feminismo materialista”, uma abordagem que trabalha com as ideias de sexo, raça e classe de forma indissociável. Nesta entrevista, Mirla, que em 2014 lançou o livro 'Feminismo e Consciência de Classe', explica a relação entre essas perspectivas e mostra como as desigualdades de sexo e raça são funcionais para a lógica do capitalismo.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/03/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O que é feminismo materialista?

Eu parto dessa perspectiva pelo entendimento de que a condição social das mulheres tem determinações concretas ao longo da história. Algumas perspectivas tratam dessa condição de opressão e desigualdade da mulher por uma abordagem muito ideológica, como se fosse resultado apenas da cultura, da tradição, de reprodução de valores. Não que isso também não tenha a ver, mas a gente parte do entendimento de que a cultura também tem determinações, inclusive econômicas. Isso vale não apenas em relação às mulheres, mas também em relação ao racismo. A gente entende a importância de buscar perceber as determinações históricas e econômicas por uma perspectiva de totalidade, também envolvendo a cultura, mas sem isolar essa cultura das determinações econômicas. E, fundamentalmente, a perspectiva do feminismo materialista parte das relações sociais estruturantes, considera as relações de sexo, raça e classe, de forma indissociável e dialética, como centrais para a análise crítica da condição histórica das mulheres.

Mas o machismo e o racismo são anteriores ao surgimento do capitalismo. Como se relacionam essas três categorias?

Elas têm origens históricas diferentes, mas se cruzam ao longo da história. Porque o capitalismo como sistema também veio de um processo histórico. E embora seja mais atual do que o racismo e mesmo do que o patriarcado, ele se apropria desses dois sistemas. Nosso entendimento é que o patriarcado e o racismo são estruturantes, foram apropriados na própria ordem do sistema capitalista. Tanto que a gente se refere a um sistema patriarcal-racista-capitalista. Porque essas dimensões de desigualdade são funcionais para a lógica de produção e reprodução do capitalismo, na medida em que você tem uma força de trabalho mais desvalorizada, no caso das mulheres, dos negros e negras e, especialmente, das mulheres negras. Isso é absolutamente funcional à lógica de lucro do capitalismo. Então, a própria história do capitalismo foi fundida com a lógica de exploração do patriarcado e do racismo.

É possível identificar diferenças importantes entre o sistema do racismo e patriarcado anterior e posterior ao capitalismo?

Sem dúvida. Porque é lógico que a gente não pode negar algumas conquistas civilizatórias que se deram no marco do capitalismo. Eu me refiro fundamentalmente ao processo da luta pela emancipação política das mulheres e também da população negra, por exemplo, no direito à cidadania. Essa é uma trajetória de conquistas que se dá já no marco do capitalismo, embora tenha sido resultado também de muitas lutas, tanto do movimento negro quanto do movimento feminista. Mas o capitalismo, no seu início, traz uma perspectiva revolucionária, se comparado aos sistemas anteriores como, por exemplo, a escravidão e o próprio feudalismo. Então, é lógico que há diferenças, mas esse sistema não foi capaz de eliminar essas desigualdades de cunho patriarcal e racista, pelo contrário, as mantém, ainda que sob outras roupagens, porque é funcional à sua lógica de exploração.

Você estabelece uma distinção entre a exploração, que seria própria da ordem capitalista, e a apropriação, que atingiria especificamente as mulheres. Queria que você explicasse melhor isso.

A apropriação, inclusive, também é anterior ao capitalismo. O conceito de apropriação é entendido como algo extensivo às relações de servidão e escravidão. Porque em torno da categoria de exploração se convencionou associar a dimensão da exploração da força de trabalho e a apropriação é algo que vai além disso. Antes do sistema capitalista, na escravidão, por exemplo, há uma apropriação do indivíduo como um todo, não só da sua força de trabalho: do seu corpo, da sua vida, do seu tempo, integralmente, não só no momento em que ele está sendo explorado no trabalho. No caso das mulheres, o que a gente entende é que essa relação de apropriação não foi eliminada. Embora a gente viva nessa dita sociedade do trabalho livre, do trabalho assalariado, as relações de apropriação sobre a mulher permanecem. Como exemplo disso, temos o trabalho doméstico não remunerado, que é visto como uma obrigação da mulher, um papel natural da mulher; a responsabilização em relação a todo o trabalho procriativo, que vai da gestação até o cuidado e a educação das crianças; o trabalho com pessoas idosas e doentes, que também é de responsabilidade da mulher; e, fundamentalmente, a questão da autonomia, que ainda é uma pedra muito forte na vida de todas as mulheres, que não têm direito sequer à decisão sobre o seu corpo e o produto do seu corpo – me refiro, por exemplo, à questão do aborto. Esses são exemplos de como nosso tempo é apropriado, como nosso corpo é apropriado. Tem também a dimensão da existência legal de um contrato sexual: estou me referindo à subserviência que faz com que muitas mulheres incorporem como uma obrigação a satisfação do outro, ainda que em detrimento dos seus desejos. Então, muito da lógica da apropriação reside de formam concreta na vida das mulheres. Por isso a gente problematiza que não existe só a exploração, tem também um processo de apropriação, que prova a permanência do patriarcado.

Você classifica como um mito a ideia de que o feminismo divide a classe. No entanto, quando trata dos conceitos de exploração e apropriação, embora as vítimas possam ser as mesmas (como as mulheres trabalhadoras), os algozes podem ser diferentes. Como o feminismo materialista lida com isso?

Daí a importância que a gente dá à dimensão da classe como algo que não pode ser separado da análise da condição de vida das mulheres. Voltando a uma das suas primeiras perguntas, embora a gente já tenha dito que o patriarcado e o racismo são anteriores ao capitalismo, o germe da existência de uma sociedade de classes está vinculado à divisão hierárquica e sexual entre homens e mulheres, bem como à existência da subordinação entre “raças” – entendidas no sentido sociológico e não biológico, claro. Por que o feminismo não divide a classe? Na verdade, nosso entendimento é que a perspectiva feminista materialista nos permite compreender a complexidade da classe, as suas particularidades. Porque a gente entende que a classe não é um todo homogêneo, ela é visceralmente atravessada pelas relações étnico-raciais e de sexo. Por isso essas categorias são indissociáveis. Se todas as mulheres são oprimidas pela sua condição de mulher na sociedade – por exemplo, uma mulher burguesa sofre também violências domésticas —, a classe divide essas mulheres, a vivência das opressões são diferenciadas de acordo com a classe. Há algumas condições a que as mulheres trabalhadoras são expostas e as burguesas não. Em poucas palavras, uma mulher explora outra mulher: o trabalho doméstico remunerado é um grande exemplo disso. Então, essa categoria de classe acaba ganhando centralidade para a gente entender a vivência das opressões, mesmo dentro da dimensão da sexualidade, por exemplo. É diferente a homofobia que os gays ricos sofrem em relação aos gays pobres, embora todos sofram e estejam expostos à violência. No campo da esquerda, infelizmente, essas temáticas, destacadamente do feminismo e da sexualidade, sofreram algumas resistências e ainda sofrem. E o argumento é justamente esse, de que o feminismo vai dividir a classe, a luta de classe. E a gente fala que não, pelo contrário: porque quanto mais a gente consegue compreender o que é essa classe e que essa classe não é homogênea, que possui particularidades, mais a gente fortalece a perspectiva de um projeto societário de fato igualitário e libertário. Porque não dá para pensar numa outra sociedade fechando os olhos para as dimensões de violência. Não dá para dizer que você é um revolucionário, um socialista, se em casa você bate na sua companheira ou usufrui de privilégios patriarcais enquanto sua companheira tem menos tempo livre, inclusive para o exercício da política. Então, a construção de valores de fato radicalmente democráticos no campo da esquerda não é para dividir ou enfraquecer a classe, mas para a construção de um projeto societário que seja de fato coerente com a libertação dessa classe.

Agora, não divide, mas eu sei que provoca tensionamentos. Historicamente, o feminismo tensionou porque enfrenta os privilégios dos homens, em especial. Mas não divide a classe porque com ele a gente acaba desvelando as forças diferenciadas de exploração do capital sobre essa classe. Analisar a dimensão étnico-racial e de sexo é perceber que essa classe é diferenciadamente explorada, de acordo com essas dimensões, é uma forma de desvelar essas explorações. Isso não nos enfraquece, isso nos fortalece diante da luta contra o capitalismo e das formas que ele empreende de exploração sobre a classe.

Como essa relação entre classe e sexo se expressa nas pautas do movimento feminista? No conjunto do movimento, há demandas que atacam a ordem e outras que são até relativamente apropriadas pelo sistema, inseridas, por exemplo, na lógica do consumo. Pela perspectiva do feminismo materialista, como se ‘hierarquizam’ as pautas?

Não sei se existe uma hierarquia, mas as pautas que mais facilmente conseguem ser incorporadas e trabalhadas de forma mais rápida são aquelas que envolvem a dimensão econômica, da sobrevivência das mulheres. É lógico que as coisas não são dissociadas, mas muitas vezes uma pauta em torno de uma creche, pela necessidade concreta de as mulheres trabalharem, permite puxar uma análise sobre por que só as mulheres são responsáveis por aquelas crianças, e daí a gente já denota um processo de formação feminista. Normalmente esse processo de formação da consciência e da luta feminista nunca se dá dissociado. Inclusive, na própria história do Brasil, muitos grupos de mulheres se iniciaram como clubes de mães, junto à igreja católica, e o simples encontro dessas mulheres permitiu que chegassem algumas pautas feministas como, por exemplo, a questão da violência contra a mulher. Então, geralmente as pautas não se dissociam da perspectiva feminista. Agora, em relação às pautas mais estruturais e às pautas, digamos, mais específicas, que poderiam ser atendidas inclusive dentro da lógica do capitalismo, eu destaco, entre as estruturais, as lutas em torno do trabalho: a redução da jornada de trabalho, a luta pelo salário, a própria creche. São pautas que inclusive a esquerda sempre incorporou sem muita dificuldade. Agora, as pautas que o próprio capitalismo poderia incorporar sem maiores enfrentamentos, porque não mexeria diretamente na sua lógica de lucro, são as que a gente enfrenta maiores dificuldades devido ao conservadorismo na sociedade. Aí vem a questão do aborto, que é um dos temas mais polêmicos que envolve o feminismo, sem contar que agora vivemos no Brasil a questão do Estatuto da Família, que é absolutamente reacionário, um ataque às mínimas conquistas das últimas décadas. Então, essas temáticas que envolvem um confronto mais ideológico, não diretamente estrutural – embora nada esteja dissociado – acabam tendo maior dificuldade de aceitação junto à sociedade, acredito que pelo poder ideológico que as igrejas vêm empreendendo no Brasil, inclusive com uma grande representação no Congresso. Eu falei que as outras pautas mais estruturais são incorporadas pela esquerda, mas obviamente o processo de enfrentamento de concretização de conquistas ligadas ao trabalho envolve um enfrentamento muito direto ao capital e, portanto, também são muito difíceis.

É possível identificar, entre as pautas do movimento feminista em geral, algumas que tenham limites de classe e outras que se voltam para o conjunto das mulheres? Isso diferencia as diferentes iniciativas do movimento feminista?

Tem uma pauta feminista que é da maior importância para mim, mas que consegue uma grande adesão de todos os movimentos, da direita à esquerda, que é a pauta da violência contra a mulher. Até porque é uma pauta de interesse das mulheres burguesas, que também sofrem violência. Ninguém se manifesta, pelo menos publicamente, contra a luta contra a violência. Agora, existem sim pautas diferenciadas entre grupos do movimento: há organizações muito mais vinculadas às lutas que envolvem o trabalho, já tem segmento do movimento feminista que não passa por essa discussão da exploração e da divisão sexual do trabalho e fica muito mais em torno da dimensão da sexualidade, do corpo, da autonomia, uma dimensão mais subjetiva. Claro, isso também envolve análises e compreensão teórica diferenciadas, que se desdobram na questão da ação política. Não que eu queira secundarizar ou dizer que isso é menos importante — eu penso que também é muito importante —, mas não dá para a gente pensar a liberdade e a autonomia das mulheres apenas na sua dimensão subjetiva, sem enfrentar questões que são estruturais para a grande maioria das mulheres que são as trabalhadoras. E isso envolve a questão do trabalho, tanto o trabalho doméstico quanto no mundo produtivo. Mas tem alguns grupos que estão mais na perspectiva pós-moderna, que se limitam muito ao subjetivismo, às identidades, à autonomia do corpo e não relacionam isso com a dimensão mais estrutural.

Uma polêmica permanente no interior do movimento feminista é sobre a participação do homem. Que papel o homem pode desempenhar dentro da luta feminista?

Eu vou falar na minha perspectiva. Não tenho condições de falar pelo feminismo materialista porque isso é muito polêmico em todos os cantos do feminismo. Alguns concordam com a participação dos homens, outros não. Na minha avaliação, os homens são também importantes para a luta feminista. Agora, o sujeito central do feminismo são as mulheres por uma questão óbvia: porque de forma geral e estrutural são as mulheres as mais exploradas e oprimidas dentro desse sistema. Prova disso é que 70% dos pobres do mundo são mulheres. Não tem como a gente desconsiderar que as mulheres são o sujeito central. Eu digo central porque não considero exclusivo. Existem também outros sujeitos que precisam e demandam a luta feminista, por exemplo, os transgêneros, travestis, que sofrem diretamente a opressão patriarcal porque quebram com o padrão do binarismo homem-mulher. Mas, além desses sujeitos, os homens entram aí na condição humana. Eu acredito que todo ser humano que esteja voltado a buscar a construção de uma sociedade radicalmente livre, sem opressões e explorações, necessariamente precisa considerar e fortalecer o feminismo e também a luta antirracista. Acredito que para os homens militantes não é apenas importante, é um dever incorporar uma perspectiva feminista para a luta política e para a sua vida privada, para ter coerência quando abre a boca para dizer que é revolucionário. É revolucionário na vida política e dentro de cada é reacionário? Não tem como. A coerência da construção de novos homens é absolutamente necessária para a construção dessa nova sociedade com a qual a esquerda diz se comprometer. Agora, isso não é fácil. Sempre digo aos meus amigos homens quando sou questionada sobre isso que eu, infelizmente, ainda não conheço nenhum homem feminista. É difícil na estrutura dessa sociedade você romper inclusive com os privilégios que os homens têm. Eu conheço homens que são pró-feministas, demonstram compreender a importância e são até apoiadores da luta. Mas incorporar de fato o feminismo na sua vida cotidiana, até para as mulheres muitas vezes é difícil, porque nos coloca em contradições. A gente não está imune ao patriarcado, mesmo sendo feministas. O feminismo acaba exigindo da gente um “policiamento” diário para corresponder de fato a uma perspectiva libertária e a gente não reproduzir nenhuma prática, nenhum tipo de valor conservador.

Mas como se identifica a fronteira entre ser feminista, pró-feminista, apoiador do feminismo?  O que é ser feminista, afinal?

Passa fundamentalmente pela condição do sujeito que vivencia a opressão. Acredito que esse é o conteúdo fundamental que leva a pessoa a se perceber, se tornar feminista dentro de uma perspectiva militante. Porque inclusive há mulheres que têm uma consciência feminista, individualmente, para suas vidas, mas isso não está vinculado à luta feminista com outras mulheres. É diferente. Os homens que eu conheço apoiam pontualmente, no 8 de março, no 25 de novembro — que é dia de luta contra a violência —,apoiam, dizem que querem romper com o machismo, mas muitos inclusive reconhecem que caem em muitas contradições. Algumas namoradas desses amigos relatam que existe o ciúme, a concepção sobre o corpo da companheira como propriedade privada. Então, acaba que muitos que se abrem para conhecer e até apoiam totalmente ainda não conseguem incorporar de fato isso na sua vida cotidiana. Nesse sentido é que eu ainda não conheço, de fato, um homem feminista. O primeiro passo seria abrir mão dos privilégios que esta sociedade patriarcal dá aos homens, e eu não estou me referindo só à relação homem-mulher em termos afetivo-sexual, mas também na relação com a maternidade, porque é a mãe que entrega o prato, lava roupa, passa roupa, ou as irmãs fazem isso. Então, é lógico que é sutil, mas são privilégios. Abrir mão desses tipos de privilégios “menores” até outros estruturais, que vão inclusive para o campo da política. Eu já participei de alguns grupos políticos e observo que há uma divisão sexual também na política, mesmo na esquerda. Então, se a gente vai pra direção de partidos, ainda que haja cotas, a gente percebe que a produção teórica ainda é centralizada nos homens e cargos burocráticos, como secretaria, ainda ficam com as mulheres, de forma geral – é claro que tem exceções. Em associações, da mesma forma. Ainda é muito forte a naturalização da relação homem-política, homem-poder e a mulher como apoio, mesmo na esquerda. Mas é um desafio que a gente precisa enfrentar.

Mas a História mostra situações em que burgueses de origem assumem a luta do lado dos trabalhadores: Engels é o exemplo clássico. É diferente isso quando a gente pensa a relação entre os sexos?

Não completamente. Especialmente no que diz respeito ao processo de formação de consciência. Acho que o Engels é realmente o exemplo clássico: embora a origem de classe seja burguesa, a consciência dele se associava a dos trabalhadores. Pensando no processo de formação da consciência, ainda que o homem esteja numa sociedade patriarcal e tenha privilégios por conta disso, ele pode romper com isso e construir uma consciência diferenciada, não patriarcal, não machista. Por isso que eu acredito que é possível um homem virar feminista, embora eu não conheça nenhum. Mas posso vir a conhecer e quero conhecer muitos homens feministas, queria que todos fossem. Mas eu acho que tem uma diferença talvez porque a perspectiva da construção da consciência feminista traz consigo uma dimensão também de subjetividade e vida privada muito forte. Então, muitos homens que se colocam na perspectiva de classe voltados para os trabalhadores, na sua vida privada contrariam absolutamente os valores que a gente acredita que sejam socialistas, exatamente por conta desses privilégios. Então, eu acho que nessa dimensão, o feminismo enfrenta mais diretamente a questão da subjetividade. Como tem essa diferença mais no âmbito da vida privada, eu acho que o feminismo acaba enfrentando ou tensionando algumas dimensões que a questão de classe não chega a fazer.

Por fim, quais são os principais marcos de conquistas do movimento feminista no Brasil, ontem e hoje?

Para trás, para mim, os principais marcos são a conquista à educação, inclusive rompendo com a educação baseada em disciplinas apenas voltadas para a vida doméstica: o direito a frequentar universidade, biblioteca, o espaço público. Porque isso acaba possibilitando também às mulheres ampliarem seus horizontes e terem uma formação diferenciada da lógica privada, doméstica. Tem também os direitos políticos que foram conquistados, o de votar e ser votado, para possibilitar o exercício da política — acho que não dá para a gente descartar isso, embora seja polêmico, porque alguns dizem que o voto das mulheres foi manobra da direita, mas eu considero que foi conquista sim. Um outro direito conquistado que foi fundamental para a quebra dessa lógica patriarcal em torno da luta contra a violência contra a mulher é que até pouco tempo – coisa de menos de 20 anos —, os homens que matavam suas companheiras alegavam legítima defesa da honra e eram absolvidos por isso. Isso foi derrubado. Mais recentemente, temos a lei Maria da Penha, que foi resultado de um longo processo de lutas dos movimentos feministas no Brasil. Foi uma imensa conquista, embora sua concretização, na forma como a lei preconiza, seja um desafio enorme: me refiro a todos os equipamentos sociais, à rede de proteção que a lei preconiza mas que na grande maioria das cidades do Brasil não existe. Delegacias só existem concentradas nas maiores cidades e funcionam precariamente, a maioria não funciona final de semana nem à noite, que são os horários em que as mulheres mais sofrem violência. Mas não deixa de ser uma conquista o reconhecimento da violência contra a mulher como um crime e não um direito do homem.