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Entrevista: 
Gastão Wagner

'A república federativa não foi uma concepção do sanitarista. A divisão de responsabilidades não foi bem definida’

Em 5 de outubro de 2023, o Brasil comemorou os 35 anos de promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Para avaliar como a Carta e a legislação posterior – como a Lei Orgânica (8.080/90) que regulamentou o Sistema Único da Saúde (SUS) – definiram os direitos e deveres de saúde pública, entrevistamos Gastão Wagner, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em Saúde Coletiva.
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 06/10/2023 13h40 - Atualizado em 11/10/2023 09h18

Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos indicou que a saúde é um direito humano fundamental. Naquele mesmo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu que a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doença. Promulgada 40 anos depois, a Constituição respeitou esses dois princípios?

Em alguma medida, sim. Dentre as cidadanias garantidas pela chamada Constituição Cidadã estão os artigos que reconhecem o direito universal à saúde e indicam a criação do Sistema Único de Saúde como forma para que esse direito seja garantido. Na Constituição estão descritos os princípios do financiamento público, da gratuidade e da integralidade, uma integralidade que respeita essa perspectiva holística ampliada da Organização Mundial de Saúde.

A Constituição define que o SUS deve ser responsável pela prevenção, promoção e assistência. Dessa forma, considero que nossa política de saúde, nosso SUS e as suas diretrizes estão dentro desse escopo dos direitos humanos consolidados no pós-II Guerra Mundial, definidos pela ONU e pela Organização Mundial de Saúde.

O movimento sanitarista internacional teve algum impacto na formulação de nossa Constituição na área de saúde? A Declaração de Alma-Ata sobre Cuidados Primários ocorreu apenas uma década antes, em 1978...

O SUS é herdeiro de uma tradição que extrapola nossas fronteiras e a maior parte de suas diretrizes, como a Atenção Primária – que também está em Alma-Ata – já constava do Nacional Health Service (NHS) britânico, dos sistemas nacionais públicos sueco e canadense, que são anteriores à nossa Constituição.

Em 1988, já existiam sistemas de saúde pública que adotavam as diretrizes da OMS e que constam do SUS, sistemas universais públicos com financiamento público e garantia de gratuidade no atendimento à população. O termo que usávamos naquele período era o de sistema hierarquizado, uma hierarquia relativa à complexidade técnica do atendimento à população.

No caso específico de Alma-Ata, a declaração de 1978 propôs a Atenção Primária para todos, mas não incluiu transplantes, tratamento de câncer, vigilância sanitária e epidemiológica, dentre outras obrigações dos sistemas de saúde. Portanto, Alma-Ata é um avanço e foi superimportante, mas a principal influência para o texto referente a saúde na Constituição Brasileira de 1988 foi a 8º Conferência Nacional de Saúde.

A 8º Conferência antecede a Constituinte, ocorre em 1986, sendo a primeira a ter participação tripartite, com representação de usuários, trabalhadores da saúde e gestores. Essa Conferência aprovou um documento muito sintético e 90% das propostas se transformaram em diretrizes constitucionais.

Havia um movimento de base que compôs um movimento sanitário muito forte e que teve a sabedoria de construir a unidade, de estabelecer um documento com foco no essencial, com cerca de vinte páginas. É claro que nesse documento estão representados conceitos de outros sistemas de saúde, como o cubano, o do Reino Unido e outros, sendo o NHS aquele que mais nos influenciou.

A Constituição trouxe alguma inovação brasileira? Algo nosso que agora seja exemplo para outros sistemas de saúde?

Nós avaliamos essas diretrizes internacionais mais avançadas e customizamos, adaptamos ao nosso contexto. O que apareceu de novo? Nitidamente, o que nenhum outro sistema tinha e agora começa a ocorrer em outros locais são o controle social e a gestão participativa. Parafraseando Clausewitz e a ideia de que a guerra é muito importante para ficar só na mão dos generais, legislamos que a saúde é muito importante para ficar sob poder apenas dos técnicos da área.

O controle social se traduz em conferências e conselhos deliberativos, com composição majoritária de usuários. Esta é uma invenção e uma marca brasileira importante, que alguns poucos países começaram a implementar nos anos 2000, mas ainda sem a amplitude e a radicalidade brasileira em sua diretriz de gestão participativa.

Tanto a Constituição quanto a Lei Orgânica (8.080/90) preveem colegiados e conselhos tripartites com a participação de usuários e atribuem a eles poderes de fiscalização e de deliberação sobre as prioridades, as políticas municipais, estaduais e a nacional. Há ainda a existência das conferências, que definem as diretrizes políticas. Um último ponto, específico e singular do Brasil, é nosso grau de descentralização.

Essa descentralização decorre do tamanho de nosso território ou da forma como nossa federação foi estabelecida na Constituição?

A Constituinte deliberou que a república seria federativa. Há outras repúblicas federativas, como os Estados Unidos da América, a Itália, a Espanha – com a descentralização chegando às comunidades autônomas. No Canadá também há um certo sentido federativo.

No Brasil, esse federalismo vai até o município, e é preciso deixar claro que até hoje ele gera dificuldades para a gestão do SUS, porque a integração em rede ocorre em um sistema que é fragmentado, já que a gestão municipal detém grande poder de autonomia.

A minha interpretação não é a de um jurista, sou médico, mas a Constituição parece ter gerado um grau de autonomia que dá ao município o poder até mesmo de decidir não entrar no SUS. Isso aconteceu com a cidade de São Paulo durante a gestão de Paulo Maluf. O município não entrou no SUS, mesmo perdendo os repasses da União e do Estado de São Paulo para a Saúde.

O Brasil possui 5.570 municípios e, em muitos deles, a política do SUS é contratar uma Santa Casa e oferecer um posto de vacinação. Como fazer integração de rede assim? O Brasil ainda não conseguiu, embora, outros países populosos, como Inglaterra e Itália, tenham solucionado isso criando um espaço intermediário de gestão, chamados de regiões de saúde.

No Brasil, as regiões existem formalmente, mas, na prática, a saída que o poder público estabeleceu foi a instituição das comissões com participação dos diferentes níveis de governo, como a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e as comissões estaduais bipartites.

Toda política e todo e qualquer programa nacional de saúde precisam ser aprovados nessas esferas que, em teoria, estão abaixo do Conselho Nacional de Saúde (CNS) mas possuem o poder, de fato, de aprovar as políticas de saúde.

A Comissão Tripartite é composta para que os municípios, os estados e a União deem, cada um, um terço dos votos. E o Brasil segue o modelo do Comitê de Segurança da ONU, em que não se aprova por maioria, mas por consenso. A nova Estratégia de Saúde da Família, por exemplo, foi aprovada por essa estrutura e isso levou um ano de duração, pois ali se debateu a composição da equipe, a forma de financiamento, a avaliação e as diferentes diretrizes da estratégia. Foram, em teoria, 5.570 municípios e 27 estados debatendo, através de suas representações na CIT, com a União.

Há outro fenômeno decorrente da descentralização, cujo maior exemplo talvez tenha sido o do estabelecimento da política de saúde mental no Brasil. Ela começou localmente, em cidades como Belo Horizonte (MG) e Campinas (SP), mas só se estabelece como política nacional, com orçamento federal e apoio da União a estados e municípios, em 2001.

Outra consequência importante é a dificuldade de o Brasil definir uma política de pessoal integrada para o SUS, pois o entendimento e as negociações políticas na Constituinte geraram o ordenamento jurídico de que cada município tem a sua política de pessoal.

São 27 estados e 5.570 municípios, cada um com a sua política de pessoal, com diferentes salários, regras de aposentaria e modelos de contratação. Desde 1988 foi incorporado o modelo das OSs (organizações sociais), a terceirização e outros modelos de contratação de pessoal, e até hoje o SUS não conta com uma política de pessoal integrada e esta também é uma diferença do modelo brasileiro de sistema universal gratuito.

A Constituição instituiu responsabilidades para a União, estados e municípios, não apenas financeiros como o de responsabilidade pela oferta da alta, média e baixa complexidade, além da vigilância, imunizações e outros programas e políticas. A população está esclarecida sobre quem é responsável pelo que?

Não está e nem gestores e trabalhadores do SUS estão esclarecidos. A identidade do SUS e o respeito ao usuário na comunicação é um dos piores fatores do Sistema. As pessoas não sabem onde o SUS está, o que o SUS realiza e quem trabalha no SUS. Uma coisa simples, como o estabelecimento de um crachá unificado para os trabalhadores do Sistema não existe. Não existe política de identidade para cartazes informativos nas unidades de saúde, algo que seja nacional e informe “Aqui é SUS”, “Esse pedaço da Santa Casa presta serviços do SUS”, “Este Hemocentro é do SUS”, “Esta farmácia de dispensação é dos SUS”.

Não é que falte identificação visual, os cartazes são imensos e contém as informações. Só que pelo fato de não haver uma política nacional integrada, os prefeitos colocam “Prefeitura Municipal”, os governadores “Governo do Estado X”.

Se você perguntar para os próprios profissionais de saúde, ninguém falará que trabalha para o SUS. As respostas serão: “eu trabalho no hospital universitário, hospital das clínicas, eu trabalho no hospital federal, no pronto socorro”. Ninguém trabalha no SUS, embora tudo isto seja SUS e só exista com o financiamento tripartite do SUS, como estabeleceu a Constituição.

Quando a Constituição foi promulgada o movimento sanitarista não alertou para isso?

Isso foi imposição da lei. A república federativa não foi uma concepção do sanitarista. A divisão de responsabilidades não foi bem definida. Uma parte do movimento defendia a tese do “tudo para o município”, vamos fugir de Brasília. Houve, em parte do movimento, essa aposta na municipalização.

Eu participei de um evento com a Lenir Santos, uma pesquisadora especializada em Direito Sanitário, e ela nos lembrou que a Constituição, e depois a Lei Orgânica, não estabeleceram a divisão de responsabilidades. Não está claro! Temos a integralidade, mas quem garante o sistema? Não há definição, há espaços e fóruns de participação, deliberação e convencimento, mas essa integração de responsabilidades não foi definida até hoje. A legislação é vaga.

Em tudo? No caso do Programa Nacional de Imunizações, por exemplo, não está definida a divisão de responsabilidades de que a União fornece as vacinas, os estados distribuem aos municípios, mas a aplicação fica a cargo destes?

Existem protocolos e portarias que podem ser alteradas pelo gestor sem precisar passar pelo Congresso ou assembleias estaduais. Há casos de estados que, individualmente, decidiram incorporar determinada vacina, na pandemia cada ente definiu o público que iria vacinar, faixa etária, comorbidades.

Mesmo em situações de rotina, quem vacina as populações ribeirinhas e povos indígenas quase sempre é o Governo Federal. Então todo mundo tem a sua atribuição e a Constituição diz que é preciso existir solidariedade entre os gestores. Então, precisamos contar com a solidariedade entre quase seis mil gestores de municípios, estados e União.

A lei não regula, não obriga, não constrange e não normatiza, e chegamos ao ponto de 80% da Atenção Primária no Brasil ser feita pelos municípios.

A definição da saúde como um direito também permite a judicialização, correto? Qual o impacto para o gestor planejar o sistema?

Isso é inevitável, tendo em vista a Constituição: o direito universal à saúde é cláusula pétrea. Ou seja, mesmo uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) não poderia alterar.. Para tentar diminuir isso, o Brasil criou um órgão composto por cientistas, gestores e usuários que definem a lista de procedimentos e medicamentos do SUS, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec).

A pandemia reforçou na população a importância de termos um sistema público universal de saúde, como definiu a Constituição?

Participei de uma pesquisa feita em uma parceria entre Fiocruz, a Unicamp e o Instituto de Saúde de São Paulo na qual pesquisamos a avaliação dos usuários sobre o sistema de saúde sobre a pandemia nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas. Ela indica que houve um reconhecimento da necessidade e da importância do SUS.

Por outro lado, também retratou os problemas do SUS, como filas, burocracia e demora no atendimento. Pessoas que estavam em tratamento e ficaram desassistidas durante a pandemia, pois se mobilizou todo o pessoal e equipamentos para o enfrentamento à Covid-19. Pessoas em tratamento de hemodiálise, hipertensos, tuberculosos, com câncer, como ficaram e qual o impacto disso em sua percepção do SUS? O Ministério da Saúde não orientou, as secretarias estaduais de saúde não orientaram sobre o que fazer.

De toda forma, em geral a população reconhece que o SUS precisa existir, então, a pregação privatizante perdeu espaço.

Se você pudesse voltar 35 anos no tempo e lutar por alguma alteração no texto da Constituição sobre saúde, qual seria sua prioridade?

As diretrizes ficaram muito genéricas. Critérios de financiamento federais, estaduais e municipais precisavam ficar mais explícitos. Na Lei Orgânica, definimos que os municípios precisam destinar 15% do orçamento ao SUS, os estados 12% e a União reajustar, com base na inflação e no crescimento do PIB, algo muito vago.

Também precisava ter ficado escrito que a relação com entidades filantrópicas não poderia ser a de compra de serviço, mas a de incorporação à rede SUS com as unidades adotando as normas do SUS.

Por fim, faltou definir que a Atenção Primária é para todos. Todos! Caso contrário temos essa situação de um sistema capenga, com fila para atendimento na Atenção Primária.