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Entrevista: 
Ana Pitta

'A saúde mental está enclausurada, estamos em pleno retorno ao primitivo'

O movimento da luta antimanicomial completa 30 anos de existência em 2017. Foi durante o 2º Congresso Nacional dos Trabalhadores da Saúde Mental, ocorrido na cidade de Bauru em 1987 que aconteceu a primeira manifestação pública organizada no Brasil pela extinção dos manicômios, aos quais até então era destinada a maior parte dos recursos públicos destinados para a saúde mental. O evento, segundo a vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Ana Pitta, foi um momento decisivo para que o movimento ganhasse capacidade de articulação e projeção nacional, sendo, por isso, considerado o marco inicial do movimento que teve sua maior vitória com a aprovação da lei da Reforma Psiquiátrica em 2001. Nesta entrevista, ela resgata a história do movimento antimanicomial, fala sobre seus avanços e conquistas ao longo desses 30 anos e alerta que o modelo manicomial, longe de ter sido extinto, se encontra em ascensão em meio aos retrocessos que marcam o atual cenário político brasileiro.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 19/05/2017 14h13 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

O movimento da luta antimanicomial comemora 30 anos de existência em 2017. Gostaria que falasse um pouco da importância do o Congresso Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental que aconteceu em Bauru em 1987, considerado o marco inicial do movimento. 

Esse congresso acontece num momento em que muitas coisas estão acontecendo. O movimento da luta antimanicomial tem uma história que vem de bem antes de 1987, embora não como um movimento forte, com unidade. Essa incomodidade, essa insatisfação com o desrespeito humano, com a degradação que os asilos psiquiátricos trouxeram, tem uma história. Nise da Silveira, por exemplo, embora tenha trabalhado em um hospital, também criou a Casa das Palmeiras, que foi um embrião do CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], diversos serviços territoriais. Então havia a gestação de um sentimento antimanicomial. O sentimento antimanicomial começa com as pessoas que defendem a democracia, como a Nise, o Luiz Cerqueira. Durante a ditadura militar, houve uma espécie de caldo de cultura, que no momento da distensão emergiu como uma coisa mais forte. No final da década de 1970 recebemos pessoas como Franco Basaglia [psiquiatra italiano que capitaneou a reforma psiquiátrica naquele país], Felix Guattari [filósofo e psicanalista francês],que tinha um movimento libertário importante, não tão articulado politicamente em serviços, mas como um pensador ousado, Robert Castel [sociólogo francês], Michel Foucault, todas essas pessoas nos visitam no final da década de 1970, atravessando a década de 1980. Essas pessoas deram força a um bando de jovens que militavam na área, mas ainda de forma desarticulada. Em 1983, quando o Franco Montoro assume o governo de São Paulo, nós já começamos lá uma inflexão importante em termos de implantarmos serviços ambulatoriais, embriões dos CAPS, atenção de saúde mental na rede básica de saúde. Mas, realmente, como movimento social, a gente pode assinalar o dia 18 de maio de 1987 como o início de uma união nacional contra a violência, contra o desrespeito radical aos direitos humanos que os manicômios psiquiátricos brasileiros representaram. Acho que houve uma maturidade em perceber que tínhamos que estar muito juntos, trabalhadores, usuários, familiares. E aí houve mobilização de parlamentares, o Paulo Delgado foi uma pessoa importante naquela ocasião; juristas, como o Dalmo Dallari, que foi um grande companheiro nesses momentos. Então, eu acho que o encontro de Bauru traz essa marca revolucionária, de nos articular a todos e iniciar uma trajetória que teve consequências legislativas, jurídicas, mas, prioritariamente, políticas, no sentido de nos organizar. Foi aí que começaram a surgir as associações de usuários, de familiares, o movimento de trabalhadores de saúde mental funcionando como rede, com diversas manifestações em diferentes estados brasileiros, mas com uma certa condução majoritária do Sudeste.

Quais foram as consequências desse movimento iniciado em 1987?

Nas consequências jurídicas, foi muito importante nós contarmos com apoios como Dalmo Dallari, Geraldo Peixoto, com a incorporação de familiares de modo mais articulado à luta, e também esses vínculos internacionais que nós pudemos estabelecer. De sorte que, quando em 1989 o Paulo Delgado faz um projeto de lei para modificar a lei vigente até ali, de 1932, que prescreve o manicômio como a forma justa e adequada de cuidado, ele vai catalisando uma série de movimentos jurídicos favoráveis e contrários à mudança. Mas foi interessante que, naquela ocasião, a ABP, Associação Brasileira de Psiquiatria, que atualmente assume uma posição absolutamente retrógrada, esteve conosco nos debates no Senado e na Câmara para fazer passar a lei que modificava o cenário anterior. Naquela época 97% dos recursos para saúde mental estavam aplicados em leitos psiquiátricos, a maioria privado. E lucrativos. Por quê? Porque o grande ministro da saúde da ditadura militar nos anos na década de 1960 era o Leonel Miranda, o mesmo dono do manicômio psiquiátrico de Paracambi, o maior da América Latina na época, com 2,5 mil a 3 mil leitos psiquiátricos. A luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica não são uma luta restrita a um modelo de atenção. É uma luta maior, pela liberdade, pela democracia, pelas formas participativas do ser em sociedade, que advoga que a melhor estratégia para reduzir confinamentos, até mesmo quadros mentais severos e persistentes, é oferecer às pessoas chances de sobrevida digna, de liberdade, de poder ser na sociedade, esporte, lazer, cultura, teatro. Não é à toa que talvez um dos maiores movimentos de reabilitação psicossocial da última década sejam os programas de economia solidária, que deram chance de sobrevida digna a muitas pessoas que estavam marginalizadas, hospitalizadas há muito tempo.

Outra consequência foi a aprovação de leis como o “de volta pra casa”, que pôde garantir às pessoas que estavam internadas em longas internações o acesso ao beneficio de reabilitação psicossocial, que era um pouco de dinheiro, e a regularização dos serviços residenciais terapêuticos. Esse movimento de apoio à renda e economia solidária  também vem como desdobramentos desse movimento no plano parlamentar e jurídico. E por que essas coisas vão acontecendo? Porque há um caldo de cultura. Talvez o grande ganho da luta antimanicomial, e o que, talvez, tenhamos mais a celebrar, é o movimento cultural, a transformação da cultura. Hoje é muito difícil você encontrar alguém que defenda o manicômio. Se você for fazer uma consulta à população em geral, as pessoas demonstram perplexidade quando veem cenas de manicômios antigos. Mas há muitos psiquiatras que defendem o hospital psiquiátrico humanizado, com algumas relíquias.

O que a luta antimanicomial representa na atualidade?

A defesa hegemônica dos modelos medicalizadores e biomédicos está ainda presente. Mas de vez em quando a gente vê o modelo manicomial, e agora não mais apenas como hospital psiquiátrico: você vê asilos de idosos e as instituições que estão pretendendo cuidar fechadamente de usuários de drogas, como as comunidades terapêuticas. Você vê que há uma reprodução ideológica, estética, do modelo manicomial. Por isso não podemos perder a vigília e esse sentido de luta.

Os inimigos do movimento da luta antimanicomial são eternos. O Giovanni Berlinguer escreveu um livro legal, Psiquiatria e poder, em que afirma que a psiquiatria sempre foi utilizada para disciplinar corpos e mentes indisciplinados no contexto social mais geral. É claro que quando a gente exercita a democracia, esses parâmetros são mais dilatados, mas quando a gente deixa de exercitar a democracia - e eu considero que, no momento, nós estamos deixando de exercitar a democracia -, através de diferentes sintomas, volta a aparecer a proposta manicomial como solução. Quando fui coordenadora de saúde mental do Ministério da Saúde, já existiam as comunidades terapêuticas, elas já abrigavam sua fatia de mercado no financiamento público. Mas nós resistimos. Jamais as comunidades terapêuticas entraram na política pública oficial. Mas nessa última década a portaria que prescreve as redes de atenção psicossocial, que é do Ministério da Saúde, inclui a comunidade terapêutica como dispositivo que integra a rede como um todo. E, a partir disso, nós estamos vendo avassaladoramente essas corporações comunitárias abocanharem recursos expressivos do financiamento público.

Qual é a fatia dos recursos públicos que é abocanhado pelas comunidades terapêuticas?

Pelo menos o último conhecimento que eu tive existem cerca de 2 mil no país.  Quando nós tivemos o máximo de hospitais psiquiátricos implantados e conveniados, foram 465. Então você imagina que não é uma coisa pequena. Nós tivemos a política do crack do governo Dilma que começa a colocar droga em evidência, no sentido financeiro. Então, havia recursos financeiros. E esses recursos poderiam ser muito bem utilizados na expansão de serviços comunitários. A despeito de termos cerca de 2,8 mil CAPS, ainda é muito pouco para um país com mais de 5,7 mil municípios. Mais ainda, esses serviços, para serem eficazes, efetivos e eficientes, têm que ser potentes, com equipes fortes, e não vínculos precários, como agora existem, e nem casas tão desadaptadas que não podem oferecer continência e tratamento para pessoas, por exemplo, em crise ou pessoas que necessitam de um suporte maior. Então, eu acho que o movimento social, algo acomodado, não pôde pressionar o suficiente para que a comunidade e a liberdade fossem os organizadores do sistema de cuidado. Porque a liberdade é organizadora da vida. Ninguém quer ficar privado de liberdade. Então também as pessoas que sofrem com transtornos mentais, se precisarem em algum momento [ficarem internadas], devem ser pequenos momentos, apenas para sair de uma situação de grande angústia, para logo a seguir novamente estarem expostos à vida cotidiana. Porque se é na vida cotidiana que elas apresentaram dificuldades, é na vida cotidiana que elas têm que superar essa dificuldade, e cabe ao sistema e a nós, técnicos, pensarmos alternativas para isso.

Uma comunidade terapêutica com 23 usuários, eu até poderia dizer: essa pode complementar o sistema, desde que tenha certo monitoramento ético, técnico para não piorar, poder verdadeiramente ajudar as pessoas. Porque algumas vezes, realmente, sair da cena do uso da droga pode ser algo bastante vital para uma pessoa. Agora, quando você vê comunidades com mil leitos, é complicado. Porque a gente já viu que mil pessoas juntas institucionalizadas não vai dar nada de bom. Em cárceres não é bom, em instituições de menores não é bom, em hospitais psiquiátricos não é bom, em hospitais de hansenianos nunca foi bom. Então por que estamos nesse momento reeditando experiências ultrapassadas, onerosas e desabilitadoras? Isso acontece quando começamos a navegar no Estado de exceção, que eu acho que é o que nós estamos atravessando. Então, quando você fala da questão do manicômio atual, eu não vejo apenas uma ameaça técnica, de escolher comunidades terapêuticas e não pequenas instituições comunitárias para fazer o trabalho reabilitador. Eu vejo como alguma coisa de mais doente que está se passando na sociedade.

Até maio de 2016 o coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde foi Valencius Wurch, que era diretor clínico da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, a mesma que na década de 1960 era tocada pelo então ministro da saúde, Leonel Miranda, como você citou anteriormente. É sintomático desse momento de regressão democrática, na sua opinião?

Vejo sim, como absolutamente sintomático, um retorno ao primitivo. Nós temos um presidente impopular, que todo mundo grita “fora Temer” e ele está aí como se nada estivesse acontecendo.Nnós estamos dizendo que não queremos recuar nos avanços sociais e estamos recuando. É como se tivéssemos um conjunto de seres muito surdos. Nós temos um ministro que não é uma virtude nos seus posicionamentos, e que, atualmente, quase não o vemos falando sobre nada, que está lá porque é de uma facção do governo que tem que ser contemplada. Anteriormente o PMDB, para ser legal e legitimo, buscava, por exemplo, o Temporão, que era um técnico respeitado, para ser a figura do PMDB que iria, naquele momento, exercer a sua função de ministro. Agora não. Pode ser qualquer um, desde que contemple aquela facção que possa estar lá. Nós tivemos uma mudança de coordenação de saúde mental, parece ser uma pessoa tecnicamente mais habilitada do que o Valencius, mas eu nem posso dizer isso, porque eu nem o vejo falar. A saúde mental está enclausurada. Estamos em pleno retorno ao primitivo. As lideranças não se posicionam.  A despeito das nossas fragilidades, nós temos nos manifestado, mas parece que o governo que aí está é surdo para essas manifestações, prefere ouvir o que eu acho que é o falar de uma minoria.

Você citou a Associação Brasileira de Psiquiatria como uma entidade que esteve presente no nascedouro do movimento antimanicomial, mas que hoje assume posições retrógradas. Que posições são essas?

O posicionamento oficial da diretoria da Associação Psiquiátrica Brasileira hoje é público e é retrógrado no meu juízo. Acabam de ser divulgadas diretrizes da Associação Psiquiátrica defendendo esse hospital humanizado e os leitos psiquiátricos arraigadamente. Mas a comunidade acadêmica que está defendendo hospitais psiquiátricos fechados não representa a maioria dos psiquiatras, por exemplo, que estão trabalhando em CAPS, em centros de saúde, em unidades de urgência e emergência. São pessoas que estão defendendo apenas antigos modelos, modelos em que você tinha 500 pacientes sendo atendidos por três psiquiatras, equipes habitualmente desfalcadas da riqueza interdisciplinar e multiprofissional. Então é defender o modelo retrógrado. Aí dizem: “não, mas tem as novas tecnologias”. Quais são as novas tecnologias? A clínica do eletrochoque, uma tecnologia inventada em 1932. Não há novidade nisso. Eletrochoque é uma coisa que você induz uma perda de consciência, induz uma crise convulsiva. Pode ter até alguma utilidade numa minoria extrema de casos, mas eu não acredito que tenha qualquer utilidade para uma rede comunitária de cuidados.

Como essa concepção antimanicomial se reflete na ação dos profissionais de saúde?

A psiquiatria precisa se reciclar. Uma coisa é exercer a psiquiatria num hospital psiquiátrico tradicional, você dá doses que lhe parecem mais indicadas e deixa a pessoa lá. No máximo é o técnico de enfermagem que tem algum nível de acompanhamento da pessoa. No entanto, quando você faz psiquiatria a céu aberto, você tende a dosar a mão para não deixar a pessoa sem condições no seu exercício humano, de vida comunitária e social, para que ela possa pegar o ônibus, atravessar a rua sem ser atropelado. Tudo isso tem que ter uma dose ótima de medicamento que o ajude a viver, e não que o faça dormir apenas. E não são apenas médicos que são assim educados. Eu vejo assistentes sociais com muita dificuldade de colocar a pessoa na comunidade, os psicólogos, que se recusam a intervir em crise. Aí terminam empurrando para as práticas mais tradicionais da psiquiatria a intervenção em pessoas que requerem um cuidado mais intensivo. Conclamar os trabalhadores da saúde mental foi essencial para que os movimentos de reforma psiquiátrica dessem certo, quando os trabalhadores daqueles serviços, que também são violados convivendo com o cuidado opressivo, o cuidado de agente carcerário ao invés de agente terapêutico, para serem os sujeitos das mudanças, de novas propostas. Então não vejo por que um assistente social, um enfermeiro, um técnico de enfermagem, um auxiliar de limpeza que trabalha no manicômio, no hospital, não pode ser um bom operador de equipe de CAPS, um bom operador de serviço residencial terapêutico, um bom operador de oficinas de geração de renda. É o mesmo ser humano, precisa apenas, obviamente, de uma reciclagem, uma mudança ideológica, mental, de um modelo arcaico para um modelo que possa, inclusive, lhe trazer maior satisfação pessoal.

No início do ano tivemos inúmeros casos de violência em presídios brasileiros, que colocaram em foco essa questão da superlotação, que para muitos analistas é consequência direta dessa abordagem proibicionista com relação às drogas que ainda é hegemônica no país. Você vê pontos de convergência entre a luta antimanicomial e o debate sobre o sistema prisional e sua relação com a política de drogas?

Eu sinto que o que a gente presenciou no início do ano, essa violência em cárceres, é fruto de uma sociedade que adoece muito velozmente justamente por falta de democracia, de participação, de alegria nos parques, de oferta de trabalho, lazer, comida. A grande solução,me parece, para os cárceres, assim como para os manicômios, está aqui fora e não lá dentro. O Carandiru foi uma bela metáfora: ele precisou ser demolido para deixar de ser aquela casa de horrores. E, ao ser demolido, não tivemos propostas substitutivas de força que pudesse realmente reduzir o fluxo de encarceramentos, mas tivemos algumas. Tivemos uma política de inclusão social como o ‘De Braços Abertos’ no centro de São Paulo. Toda vez que a gente tem instituições superlotadas, instituições sem portas abertas, a gente tem a receita ótima para aumentar a violência, tornar os caldeirões explosivos, já que a humanização, a personalização do contato, o cuidado se torna uma tarefa impossível.

Estamos comemorando 30 anos da luta antimanicomial, que é o final de um tempo ditatorial - em que a participação, a alegria da vida comunitária democrática nos foi impedida - para um exercício democrático. Eu estou sentindo que nós, nesses últimos tempos tivemos recuos imperdoáveis, então precisamos estar atentos e fortes. O tempo atual é um tempo de sobreaviso, de alerta, mas que nos motiva muito a buscar uma articulação das forças nacionais para lutarmos a luta justa, para retomarmos aquilo que conquistamos e que estamos vendo esvair-se.