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Entrevista: 
Anna Paula Feminella

"As ações para superarmos a violação de direitos das pessoas com deficiência passam por uma mudança cultural da sociedade"

Em julho de 2023, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, pela primeira vez, um módulo com dados específicos sobre pessoas com deficiência na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD Contínua. O estudo mostra que a população de dois anos ou mais com deficiência é de 18,2 milhões de pessoas. A taxa de analfabetismo entre pessoas com deficiência é de 19,5%, enquanto a de pessoas sem deficiência é de 4%. A participação na força de trabalho também é bastante discrepante entre pessoas com e sem deficiência: 29% ante 66%. Diante de tantos desafios, a secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Anna Paula Feminella, uma mulher cadeirante, fala das consequências de uma sociedade que fez avanços, mas ainda é bastante capacitista, e detalha os principais eixos do segundo Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, também conhecido como Plano Viver sem Limite 2.
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 22/08/2023 15h32 - Atualizado em 23/08/2023 10h13

Vivemos numa sociedade capacitista? Quais políticas você destaca como atuantes para mitigar esse fato?
Eu acho que estamos começando a quebrar os paradigmas anteriores de deficiência, mas ainda existe uma cultura muito forte que nos coloca na condição de beneficiários dos serviços previdenciários, assistenciais ou de serviços de saúde e habitação. Essa perspectiva é tanto caritativa quanto biomédica, mas estamos começando a vencer essa invisibilidade a partir do diálogo, da paciência para explicar que as pessoas com deficiência existem, são importantes ao longo da história e que nossas especificidades precisam ser abordadas não como algo que nos desabone, mas sim como um dado da realidade. As experiências, as nossas especificidades, a diversidade e a heterogeneidade de corpos e comportamentos na humanidade não nos exclui de participar e contribuir na sociedade.

As ações para superarmos a violação de direitos das pessoas com deficiência e as próprias violências sofridas por essas pessoas passam por uma mudança cultural. Esse é um tema ainda tabu não só para a sociedade brasileira, mas para toda a sociedade ocidental, principalmente, que não trata o tema da deficiência com a devida necessidade e com o devido entendimento de que é um assunto de interesse público coletivo. Apesar do grande número de pessoas com deficiência na sociedade, ainda encontramos muitas barreiras para nos sentirmos parte de uma coletividade, para além do espaço privado da casa ou de instituições que segregam as pessoas com deficiência.

Acreditamos que a cultura tem o potencial de mudar o discurso em relação às pessoas com deficiência na escola, em todas as políticas públicas e também no cotidiano com uma abordagem anticapacitista. De que forma? Mostrando o quanto as pessoas com deficiência estão na sociedade, contribuem para o desenvolvimento econômico, humano e para a democratização dessa sociedade. Há diversas formas de ver, de sentir, de perceber a realidade e de contribuir na sociedade. E tudo isso
ainda é uma novidade dentro do espaço da gestão pública.

Por que novidade?
Essa não é uma pauta polarizada, não há quem diga “sim, sou contra pessoas com deficiência”. No discurso político, ninguém diz ser contra, dizem que querem nos proteger, mas nos isolam e nos segregam. Gestores públicos em geral não são contra a inclusão das pessoas com deficiência em qualquer espaço, mas muitas vezes não têm as ferramentas para fazer a gestão dessa inclusão. E apesar da existência da política de cotas no serviço público, no mercado de trabalho e nas políticas educacionais, só o acesso não é o suficiente. A continuidade e a qualidade dessa participação social ainda são fatores que precisamos evoluir e construir juntos.

Nesse sentido, qual é a importância de ter um plano nacional para pessoas com deficiência?
A importância é exatamente esse diálogo entre a sociedade e os governos – municipais, estaduais e federal – tanto no âmbito governamental quanto na articulação com a sociedade civil. Hoje a maior experiência de inclusão de pessoas com deficiência está na sociedade civil que atua sob o lema “conosco e não sem nós”. A perspectiva desse diálogo com a sociedade civil nos ajuda a vencer as barreiras de um capacitismo que está institucionalizado, de um capacitismo não plenamente desvendado por muitas pessoas que criam e implementam as políticas públicas. Precisamos do fortalecimento do controle social para aumentarmos o protagonismo de diversos agentes da sociedade, não apenas das pessoas com deficiência, mas também, por exemplo, dos familiares das pessoas com deficiência, que também são impactados por esse capacitismo, assim como os profissionais que são ativistas de direitos humanos, dos profissionais cujas atividades promovem a inclusão da pessoa com deficiência, como o fonoaudiólogo, o intérprete de Libras, a pessoa que faz a audiodescrição. Então, temos um caminho longo para trilhar e precisamos realmente desse pacto social para construção do Plano Nacional.

Você poderia falar dos pontos positivos do primeiro plano nacional e quais são os desafios para a segunda edição?
O primeiro Plano, criado em 2011, teve um desenho bastante arrojado, no qual a Casa Civil, a pedido da então presidente Dilma Rousseff, monitorava muito de perto as metas de cada ministério integrante do Plano Nacional Viver Sem Limite 1. Naquele momento, havia uma articulação com 15 órgãos federais que compunham o Comitê Interministerial de Monitoramento e Avaliação do Plano. Então, ele foi elaborado inicialmente por 15 ministérios, sob a coordenação do António José Ferreira, que era o secretário Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência em 2011 e, junto à Casa Civil, faziam essa aproximação das políticas setoriais com as demandas que a sociedade civil propõe por meio do Conade [Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência]. Naquele momento, o Viver Sem Limite tinha quatro eixos de ação: acesso à educação, acesso à saúde, inclusão social e acessibilidade. Então, eram os quatro principais. A saúde e a educação ainda são prioridades para nós, porque são importantes para a qualidade de vida.

A educação recebeu esse destaque por ser o primeiro espaço de sociabilidade fora do ambiente privado, é aquele momento que integra, é o Estado no dia a dia. No entanto, muitas pessoas com deficiência ainda estão no ambiente privado, nós ainda não estamos na arena pública. Precisamos vencer essa barreira da visibilidade. Quando a gente vai para a política, a gente sabe que, literalmente, quem não é visto, não é lembrado. Então, a gente tem no Viver Sem Limite 2 a intenção de ampliar essa participação social com o protagonismo da pessoa com deficiência.

Você poderia detalhar os quatro eixos do novo plano?
São muitas as lacunas assistenciais para a plena equiparação de direitos da pessoa com deficiência, por isso, pensamos em quatro eixos de atuação. O primeiro é a gestão inclusiva e participação. O foco é qualificar essa participação em todas as esferas da sociedade. Por exemplo, identificamos que os empregadores, no âmbito público e privado, têm dificuldades em fazer a inclusão das pessoas com deficiência, porque a cota é apenas a porta de entrada. Além da porta de entrada, é preciso haver acessibilidade, oportunidades de desenvolvimento profissional, condições objetivas desse indivíduo estar lá, contribuindo com seu trabalho, sua profissão. Também queremos qualificar essa participação nos nossos conselhos de direitos, nas conferências e desenvolver estratégias efetivas para ampliar essa participação social. Acreditamos que os Direitos Humanos não cabem só no Ministério e a participação social das pessoas com deficiência não cabe só no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Ao mesmo tempo, ainda há uma lacuna no entendimento dos movimentos, porque, em geral, entendem muito das demandas específicas das pessoas com deficiência, mas ainda precisam entender como o Estado brasileiro está formado, como funcionam as instâncias de participação e a incidência da sociedade civil junto à formulação, desenvolvimento e controle social. É preciso qualificar e formar novas lideranças com deficiência. Temos ações nesse âmbito, inclusive coordenadas pela Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência em diálogo com todos os outros ministérios.

No eixo dois, vamos abordar um tema bastante complexo, que é o enfrentamento do capacitismo e da violência por meio da difusão dos meios de denúncia e do acesso ao Poder Judiciário para a proteção e reparação das violações e violências. Além das campanhas nos meios de comunicação, queremos a inclusão de conteúdo referente à deficiência pela perspectiva de direitos humanos em todos os currículos, nos sistemas educacionais, em todos os níveis. O terceiro eixo de atuação é a acessibilidade de tecnologia assistiva, promovido bastante pelo plano anterior e que foi mantido também como tema central no novo plano. Acessibilidade como aquela ferramenta que promove acesso a todos os direitos. Entre as primeiras medidas, vamos mapear o que é que tem de acessibilidade em cada prédio público do governo federal no território brasileiro e vamos construir com eles planos de acessibilidade. Vamos prever também orçamento, pois não tem como fazer acessibilidade sem planejamento, sem orçamento adequado para fazer direito a ter direitos. A regulação da acessibilidade está aí. Então há várias regras e vários artigos da LBI [Lei Brasileira de Inclusão] que precisam ainda ser regulamentados. Vamos lançar em breve um cadastro de centrais de Libras [Língua Brasileira de Sinais] em todo o país e apresentar publicamente quais são os municípios que já têm essa centrais.

O quarto e último eixo é a promoção dos direitos humanos alinhada aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Nesse eixo entram todas aquelas políticas universais que precisam ser efetivas para nós. Aqui entramos no rol dos estudos demográficos sobre a população com deficiência, entre eles a política de enfrentamento à fome e insegurança alimentar, em que é preciso identificar quantas pessoas com deficiência estão nos estratos mais empobrecidos, assim como a saúde da pessoa com deficiência não pode ficar só no âmbito da saúde especializada. Isso já aconteceu comigo. A gente chega na porta de um posto de saúde e o segurança, já do portão, diz que o atendimento é no Sarah Kubitschek, por exemplo, no caso de Brasília. Mas eu sou uma legítima demandante dos serviços de Atenção Primária à Saúde. O eixo também inclui as mudanças climáticas e situações de desastres naturais, como nas enchentes que vivemos
aqui no Brasil, levamos também para esse debate ambiental a necessidade de uma política cultural anticapacitista.

No terceiro eixo você citou as centrais de Libras. O que seriam?
É uma iniciativa e uma inovação que veio do plano anterior, provendo recursos para que as capitais tivessem centrais de intérpretes de Libras, contratados pelos governos, e demandados pela comunidade surda. Por exemplo, uma pessoa surda tem uma consulta pré-natal e precisa do acompanhamento do intérprete no posto de saúde para garantir a chegada da informação completa daquele atendimento. Isso serve também para audiências judiciais e para todo tipo de atendimento voltado para as pessoas quem tem a Libras como uma primeira língua. E o impulsionamento dessas centrais depende muito de construirmos laços com os governos estaduais e municipais para que essa comunidade surda tenha esses serviços. Hoje mesmo, só para exemplificar, acabamos de ser acionados para uma situação aqui no Distrito Federal, na qual a intérprete de Libras da central do governo do Distrito Federal estava sendo impedida de acompanhar uma mulher surda que entrou em um hospital aqui em Brasília. Então, acionamos o Conade do DF e já foi resolvido. Esse é o tipo de coisa que precisa entrar no fluxo da atenção de todos os serviços públicos. E é isso que a gente quer consolidar. Por isso, o primeiro eixo da gestão inclusiva é entrar no fluxo de trabalho de todos os serviços públicos, reconhecendo essas especificidades e diversidade de recursos que a gente precisa ter para prover a efetividade do direito que está na nossa própria Constituição.

A PNAD Continua, divulgada em julho de 2023, mostra que o percentual de pessoas com deficiência com ensino médio concluído é de 25%, enquanto o da população geral é de 57%. O que pode ser feito para aumentar os índices de escolarização desse segmento populacional?
Esta é a primeira vez que a PNAD Contínua conta com o módulo “pessoas com deficiência”, que se propõe a pesquisar a realidade da vida da pessoa com deficiência no Brasil. Essa pesquisa segue a metodologia utilizada em muitos países e tem dados de pessoas acima de dois anos de idade que vivem em domicílios; não inclui aquelas que estão em situação de aprisionamento, em situação de rua ou instituições de longa permanência segregadas da sociedade. Então, há que se explicar isso, há necessidade de qualificar esses dados e já começamos essa conversa com o IBGE. Há a necessidade agora, com o lançamento dessa pesquisa, que novos pesquisadores façam essa análise mais aprofundada, inclusive questionando esses números. Eu acho que o mais importante para mim foi escancarar o nível da desigualdade social e o fato desses indicadores serem absurdamente mais baixos do que os nossos pares sem deficiência. Mas considero que o grau de desigualdade que temos nessa amostragem ainda é pequeno. Temos um grande percentual de pessoas com deficiência que não estão ali presentes, descoladas completamente dos índices e dos serviços públicos, que deixaram de procurar os serviços públicos porque têm certeza de que não serão atendidas. Mas estamos aprofundando esse diálogo, tanto com o IBGE, quanto com o Ministério do Planejamento e Orçamento para dar continuidade e aperfeiçoar a pesquisa.

Você poderia citar exemplos da necessidade de aperfeiçoamento?
Na 16.ª Conferência Internacional dos Estados Partes da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência [realizada em junho de 2023, em Nova Iorque, nos Estados Unidos], tivemos a oportunidade de conversar com dirigentes de diversos países que utilizam outras abordagens sobre a análise censitária. Então, por exemplo, na Espanha, eles incluem perguntas como ‘quais barreiras você encontra para poder se manter na educação, para chegar no mercado de trabalho?’ É importante detalhar essas barreiras para então fazer política pública baseada nas evidências da existência dessas barreiras.
Mas, especificamente na Educação, tivemos, nos últimos anos, um deixar de lado a educação inclusiva. Não houve investimento nos últimos dois anos do governo anterior no desenvolvimento de políticas de educação inclusiva. E isso impacta em um sucateamento das salas de recursos multifuncionais nas escolas públicas do Brasil inteiro. Uma das metas é a ampliação das salas de aula e dos recursos existentes. Para quê? Para promover o acompanhamento desse aluno, não só na sala de aula regular, mas também em um acompanhamento auxiliar. A educação inclusiva se faz quando a escola inteira está engajada nessa inclusão das pessoas com deficiência em todos os níveis. O que inclui a necessidade de pensar cursos técnicos. Por exemplo, temos uma ausência, uma diminuição das oficinas ortopédicas, oficinas de construção das órteses [equipamentos de uso provisório que auxiliam no desempenho motor de uma parte do corpo] e próteses [dispositivos de uso permanente, que substituem um membro amputado], porque precisamos de mais profissionais ortesistas e protesistas.

Em relação ao acesso ao mercado de trabalho, a taxa de ocupação das pessoas com deficiência é de 29%, menos da metade do que as pessoas sem deficiência. As cotas têm ajudado a diminuir essa diferença? O que mais precisa ser feito?
As cotas são uma conquista histórica do movimento de pessoas com deficiência. Então, essa é uma legislação que já tem 32 anos [Lei nº 8.213/1991]. Não queremos mexer na legislação, mas queremos ampliar as medidas que qualifiquem a inserção no mercado de trabalho. Precisamos fortalecer essa atuação e isso passa, por exemplo, por campanhas de sensibilização para combater a discriminação no mercado de trabalho. Não falamos que, por exemplo, [o ex-presidente estadunidense Franklin] Roosevelt tinha deficiência [paralisia da cintura para baixo, após contrair poliomielite aos 39 anos], não falamos que [a artista plástica mexicana] Frida Kahlo, também com deficiência física, contribuíram para o desenvolvimento da nossa sociedade. Entendemos que, além da fiscalização, que é uma medida repressiva, a gente precisa ter as medidas de promoção. É preciso casar a ideia de política afirmativa, com política repressiva, com política formativa e valorativa. A política repressiva ainda é necessária porque a impunidade incentiva o descumprimento da legislação e de conquistas históricas.

O acesso a equipamentos de qualidade, como cadeiras de rodas e muletas, foi uma demanda bastante enfatizada na atividade autogestionada realizada na 17ª Conferência Nacional de Saúde, em julho de 2023. O Plano Nacional pode facilitar esse acesso?
Essa pergunta está relacionada ao quarto eixo, que trata da promoção de direitos humanos, econômicos, sociais e culturais. Queremos incentivar a indústria brasileira a produzir mais tecnologias assistivas de qualidade e, para isso, precisamos de fomento à industrialização. É preciso estar em diálogo com outros ministérios para que a aquisição de equipamentos atenda a critérios de qualidade para não termos, por exemplo, cadeiras de rodas extremamente pesadas que inviabilizam a locomoção. O gasto público precisa ser eficiente no sentido de gerar a mudança e a melhoria da qualidade de vida dessa população.

A formação de profissionais foi também bastante debatida na CNS. Como essa formação deve ser feita?
O que eu vejo e acho importante é que precisamos primeiro incidir numa formação nacional de educação em direitos humanos para gestores públicos e para a população em geral. Uma política de formação em direitos humanos é fundamental. Essa formação não é com foco no tipo de deficiência, temos que reconhecer a especificidade quando chegamos na implementação, no detalhamento do acesso ao serviço público. Se chegamos direto no mecanismo da acessibilidade ou em questões muito específicas, as pessoas têm dificuldades de entender a necessidade de reconhecer as especificidades. Então, precisamos antes abordar o que nos embasa, o entendimento de direitos humanos na agenda da pessoa com deficiência. O reconhecimento das especificidades está no detalhamento, o que nos fundamenta a acessar direitos humanos mais fundamentais, como o direito de ir e vir, a uma vida digna, ser tratada com dignidade, com respeito, o de participar da sociedade, ter voz, vez e expressão. Então, são muitas as questões. Por isso, não basta ir diretamente na regulação da acessibilidade, estamos tratando de uma coisa mais profunda, que envolve mexer na cultura política da sociedade brasileira como um todo.