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Entrevista: 
João Sicsú

‘Não há relação entre desoneração e emprego, o que há é entre crescimento e emprego’

O professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, João Sicsú, aponta, nesta entrevista, a relação entre o crescente desemprego e a política recessiva colocada em prática pelo governo federal. Para João Sicsú, os postos de trabalho são vão voltar a crescer se o Estado retomar o investimento. Uma das vozes críticas ao atual ajuste fiscal o economista aponta, inclusive, que o Brasil teria condições de garantir o pleno emprego.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 09/10/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O governo parte de um diagnóstico correto de que é necessário reequilibrar as contas públicas?

Na verdade, de 2004 até 2014 nós tivemos déficits orçamentários moderados, excetuando o ano de 2014, mas foi um ano só desde 2003 para cá. Nós tivemos de fato um aumento do déficit nominal em 2014, mas com causas muito claras. Tivemos déficit por conta de pagar juros elevadíssimos, tivemos desonerações da ordem de R$ 100 bilhões, e a economia cresceu pouco em 2014. Nosso déficit nominal é de 6,7% do PIB, desses, 6,1% foram pagamento de juros. Então, é uma situação pontual nesta trajetória e para reverter isso bastava fazer crescimento, aumentar a arrecadação, diminuir a taxa de juros e acabar com as desonerações para o empresariado, que foram de R$ 104 bilhões em 2014, o que representa mais do que o orçamento da saúde anual. A saída então era fácil: crescer baixando juros e acabar com as desonerações.

Então o que está sendo feito está totalmente na contramão disso?

Exatamente.

As medidas que alteram benefícios sociais também caminham no sentido contrário?

Sim. Na verdade, o governo tem tomado medidas de política econômica e medidas estruturais. As medidas de política econômica são totalmente equivocadas, a trajetória deste ano tem mostrado isso. Quais são essas medidas? Cortes de gastos públicos. Cortes de gasto desaceleram a economia. Quando a economia desacelera e entra em recessão, como é o caso, a arrecadação cai, então não é possível equilibrar o orçamento. A outra política econômica é a elevação da taxa de juros que representa elevação de despesas também. Então, alguém que queira equilibrar o orçamento não pode elevar os juros porque eleva a despesa, então, toda a política econômica do governo está levando a um resultado completamente contrário ao que diz que vai ser alcançado. Na verdade, estamos aumentando as despesas e reduzindo as arrecadações. Nós hoje já estamos com um déficit nominal de quase 9% do PIB e acabamos 2014 com um déficit que já era alto, de 6,7% do PIB. Então, a política econômica fez com que nós aumentássemos mais de 2 pontos percentuais no PIB em termos de déficit. E, além disso, medidas estruturais: redução do acesso ao ganho salarial, ao seguro desemprego, aos benefícios previdenciários, isso tudo são medidas que cortam direitos sociais e que não vão equilibrar o orçamento. Porque todo pagamento de seguro desemprego, abono salarial ou benefício da previdência é feito para quem tem renda baixa, e quem tem renda baixa recebe esse dinheiro e vai diretamente gastar no mercado. Então quem recebe isso gasta tudo que recebe e ajuda muito a ativar a economia. No caso do Bolsa Família, por exemplo, quem recebe transforma quase tudo em gasto de alimento. Então, cortar esse tipo de gasto ajuda a equilibrar o orçamento? Não, isso gera desemprego e queda da arrecadação, além do custo social imediato de restringir o acesso a pessoas que antes poderiam contar com este benefício.

Se é falso o argumento de que essas medidas ajudariam a equilibrar o orçamento, a quem o governo está atendendo então com essa política? Eu li em um artigo seu que “desemprego e redução do emprego formal são pilares do projeto liberal para os países não desenvolvidos”. O senhor pode nos explicar melhor esta ideia?

O projeto dos últimos anos era um projeto de redução da taxa de desemprego e formalização do trabalho. A taxa de desemprego estava em torno de 12% ao final de 2012 e início de 2013. Em 2014, a taxa de desemprego estava em 5, 6%. Hoje já saltou para a casa dos 7,5%. Nós tínhamos condições de gerar milhões de empregos formais. De 2007 a 2010, nós geramos mais de 2 milhões de empregos formais, com carteira assinada a cada ano. Nos últimos anos, de 2011 a 2014, tínhamos tido uma média que era superior a um milhão de empregos formais. Hoje estamos com saldo negativo, é provável que este ano fechemos até dezembro um milhão de vagas com carteira assinada. Até o momento já fechamos mais de 500 mil. Então, isso abala muito as estruturas do movimento sindical, não se consegue aumento salarial por conta do desemprego. E a informalidade do trabalho também contribui para a redução de salários. Trabalhadores informais não são sindicalizados, não engrossam movimentos reivindicatórios salariais. Então, essa é uma saída muito ruim porque, além disso, também tem um impacto social muito forte já que a redução que nós tivemos na desigualdade de renda nos últimos anos tem como principal motivo a redução do desemprego e o aumento do emprego formal. Esse é o pilar fundamental da redução da desigualdade e da distribuição de renda dos últimos anos. Então, é exatamente aí que nós estamos entregando a principal conquista dos últimos anos.

O senhor pode explicar pra gente o que exatamente faz o desemprego subir?

A causa é a falta de crescimento econômico. E isso está intimamente relacionado com a política econômica do governo e com o plano de mudanças estruturais que atinge diretamente benefícios sociais. O governo está deixando de fazer investimentos públicos, e investimento gera emprego e renda. O governo está cortando em todas as áreas: saúde, educação e todas as áreas. O orçamento de cada ministério é transformado em gasto e a gente precisa ver gasto como algo extremamente positivo do governo. Por quê? Porque, além de gerar um impacto social positivo imediato, também tem impactos econômicos, que é de geração de emprego e renda. Por exemplo, quando um hospital compra um determinado medicamento ou equipamento, alguém do outro lado participou da produção deste medicamento ou equipamento e, portanto, gerou emprego e renda para essas pessoas, gerou salários. Quando o governo corta, do outro lado ele gera desempregados, perda de salário e agora dificuldade de acessar o seguro desemprego. Então, gastos do governo devem ser considerados positivos. Não devemos demonizar gastos do governo: eles geram impacto social ao beneficiário imediato e impactos econômicos de geração de emprego e renda.

O Programa de Proteção ao Emprego recém-criado é uma política correta?

Não parece uma medida que vá causar um impacto positivo no sentido de neutralizar o aumento do desemprego, mas também não parece uma medida totalmente negativa. Teremos que observar se terá algum impacto, mas certamente não será significativo. Tem baixa utilidade diante da grave situação econômica que estamos vivendo, criada pela própria política econômica do governo. Na verdade é uma cópia de outros países onde o impacto também não é extraordinário. Impacto extraordinário só acontece quando se tem crescimento.

O governo teria outras formas para preservar o emprego no âmbito do ajuste fiscal?

Não. Teríamos que mudar totalmente este projeto de austeridade. Isso já foi aplicado no Brasil e em toda a América do Sul nos anos 1990 e está sendo aplicado na Europa, desde 2011, 2012. Não tem resultado em lugar nenhum. Não há nenhuma experiência que mostre que se equilibra orçamento cortando gastando e criando recessão. A experiência histórica que se tem é que orçamentos são equilibrados em situações de crescimento. Nós iniciamos estes anos 2000 no Brasil com uma situação orçamentária bastante ruim. Qual foi o período em que o orçamento ficou mais organizado, com déficit moderado, relação divida/PIB mais baixa? Foi exatamente em 2010, que foi ápice de uma trajetória de crescimento que teve início em 2007. De 2007 a 2010, o crescimento econômico fez a arrecadação crescer e o orçamento ficou com déficit moderado. A experiência, portanto, não é de que podemos equilibrar orçamento com recessão, é exatamente o contrário. No final de 2002 para 2003, nós tínhamos uma relação dívida/PIB da ordem de 60%. Em 2010, ela caiu para 39%. O déficit nominal que hoje está em quase 9%, no final de 2002 para 2003 estava entre 4,5% e 5%. Nós fechamos o ano de 2010 com um déficit inferior a 3%, o que possibilitaria o Brasil inclusive entrar para a comunidade europeia de acordo com as regras do Tratado de Maastricht. Então, nós conseguimos a melhor situação fiscal não cortando gastos, mas no momento em que mais ampliamos os investimentos públicos e os programas sociais, que foi no período entre 2007 e 2010. Então, foi num período de ampliação de gastos sociais que nós tivemos os melhores resultados fiscais.

O senhor diz que conquistar o pleno emprego deveria ser nossa meta. Isso é possível?

Acho que sim porque temos um mercado interno de consumo de 140 milhões de brasileiros. Isso possibilita geração de emprego em volumes elevados para a gente alcançar o pleno emprego, basta ter uma política econômica correta, uma taxa de câmbio no lugar correto, que estimule a industrialização e a exportação de produtos industrializados. Basta que tenhamos uma taxa de juros baixa e uma política de gastos públicos, de geração de benefícios sociais, emprego e rendas. Isso é compatível com o pleno emprego e era possível ter alcançado. Os erros de política econômica não começaram em 2015, mas em 2011. Se tivéssemos mantido a trajetória que começou em 2007 e foi até 2010, nós certamente teríamos um desemprego muito baixo. Chegamos a ter um desemprego na faixa de 4%, mas poderíamos ter atingido 2% se tivéssemos mantido aquela trajetória. A mesma política econômica que está sendo aplicada hoje foi aplicada também em 2011. A economia foi derrubada em 2010 para 2011. Em 2010 tinha crescido 7,6%, no ano seguinte foi a metade. Isso graças à elevação da taxa de juros, corte de gastos públicos etc que aconteceram em 2011, tal como acontecem agora. Só que agora isso está associado a mudanças estruturais que atingem benefícios sociais; em 2011 não, mas a política econômica era exatamente a mesma. E depois, no final de 2011 e início de 2012, o Brasil, com uma economia desacelerada, entrou na crise econômica internacional e desacelerou completamente. E aí o governo tomou mais medidas incorretas como, por exemplo, desoneração de tributos para os empresários para estimular investimento. Isso dá certo quando a economia está crescendo. Quando a economia está tendendo a estagnação, o que o governo tem que fazer é investir em vez de desonerar porque quando você desonera em um momento de desaceleração, isso se transforma em transferência de renda. Os empresários deixam de pagar impostos para aumentar ou manter os seus lucros, quando o governo poderia pegar esses recursos e ele mesmo gastar, fazer investimentos, ampliar os programas sociais, gerar emprego e renda para enfrentar uma situação de dificuldade.

Eu acho que temos que mudar agora não só a política de juros, gastos e câmbio, nós devemos ter uma mudança específica, que é ampliar o valor e a cobertura dos programas sociais porque isso reverte situações de grave recessão como a que estamos vivendo agora. Simplesmente porque se você dobra o valor do Bolsa Família, por exemplo, o que acontece é que essas pessoas que ganham cento e poucos reais, vão ganhar duzentos e poucos reais e vão continuar fazendo tudo o que faziam, vão gastar tudo no supermercado, nas lojas, comprando alguma roupa, sapato.. Elas não vão pegar esses recursos adicionais e viajar para Nova York, comprar ações na bolsa, carro importado, nada disso, elas vão é dinamizar o mercado interno. Então, o que precisamos é ter coragem de transferir recursos para aqueles que necessitam e transformam esses recursos em gastos, que são sinônimo de dinamização da economia.

Essa mudança dependeria de que para acontecer?

Depende de coragem, de ter direção norteada por um projeto. Eu acho que não temos nenhum projeto, portanto não temos coragem e direção para seguir um caminho de desenvolvimento no Brasil. Na verdade todos esses ziguezagues que o Brasil faz em termos de política econômica é porque não temos um projeto. Por que mudamos a política econômica de 2010 para 2011? Exatamente porque não temos um projeto, vai se fazendo política econômica no varejo, às vezes dá certo, às vezes dá errado. Deu certíssimo de 2007 para 2010, em 2011 começou a dar errado, em 2015 está dando muito errado.

Essa falta de projeto nos torna mais suscetíveis a pressões?

Acho que sim. Um projeto não significa um plano feito por intelectuais nos gabinetes: é algo muito mais amplo do que um conjunto de medidas. Na verdade deveríamos ter feito nos últimos anos um projeto com a sociedade, com o envolvimento dos setores mais organizados da sociedade, as pessoas deveriam estar mais conscientes dos seus direitos. E nada disso foi feito. Há uma ideia de que se governa em gabinete, se senta no gabinete para tomar medidas e fazer acordos no legislativo. Quando na verdade deveria se governar para e com a sociedade. E nós não temos esse projeto. Gostaria de enfatizar que, quando eu falo projeto, não significa uma carta de intenções que fica na gaveta, significa o envolvimento da sociedade com o governo, o governo tomar medidas que a sociedade apoie e nós caminharmos nesse sentido em direção ao desenvolvimento. Isso acontece inclusive em lugares como os países nórdicos: a sociedade é muito envolvida com o governo, é muito consciente de direitos e existe um projeto permanente. No Brasil não. Houve uma pesquisa recente que mostrou que metade dos brasileiros diz que não paga impostos, então, as pessoas não sabem nem se pagam ou não impostos, como vamos conseguir fazer uma reforma tributária? A outra metade menciona o IPVA, o IPTU. Na verdade, todos pagamos impostos, basta ir ali na esquina comprar um pacote de macarrão e estamos pagando impostos. As pessoas não têm nenhuma noção sobre o sistema tributário brasileiro. Falta um projeto construído junto com a sociedade e que a sociedade tenha consciência sobre os seus direitos dentro desse projeto.

Voltando ao tema das desonerações progressivas que o governo foi concedendo a partir de 2012, é possível estabelecermos alguma relação entre as desonerações e o aumento de empregos?

No ano passado foram R$ 104 bilhões em desonerações. Não se verificou nunca em lugar nenhum aumento de emprego a partir de desonerações. Empresários na verdade contratam trabalhadores quando precisam de trabalhadores. E quando precisam? Quando têm perspectiva de crescimento do seu negócio. Se o empresário está olhando para frente e vendo o seu negócio minguar, as vendas não estão sendo realizadas, o governo pode diminuir o imposto que quiser, o empresário vai dizer: ótimo, tem que reduzir impostos mesmo. E vai transformar esta redução em lucro. Agora, se a economia está crescendo, como foi de 2007 a 2010, em que a economia cresceu em média 4,5% ao ano, não é preciso haver desoneração nenhuma porque estávamos contratando mais de dois milhões de trabalhadores novos com carteira assinada todo ano e a taxa de desemprego estava despencando de 12% em direção aos 5% que atingimos recentemente. Então, não há nenhuma relação entre desoneração e emprego, o que há é entre crescimento e emprego. Se quer gerar emprego, tem que estimular crescimento, não desonerar empresário.

Então, esta medida que o governo anunciou de redução da desoneração agora é positiva neste cenário?

Acho que é positiva. É uma pena que o governo vá transformar esses recursos em pagamento de juros, portanto, não vai ter resultado algum. Na verdade, o que deveria ter feito há muito tempo é não ter desonerado e ter transformado esses recursos em gastos para gerar benefícios sociais, emprego e renda. O que agora vai acontecer é que vão acabar com a desoneração, mas o governo está pagando de juros R$ 484 bilhões nos últimos 12 meses. Esse valor é quase o orçamento da previdência social no Brasil, que fica em torno de R$ 500 bilhões. No Brasil, o Ministério com o maior orçamento é da previdência, e o segundo é o Ministério do Pagamento dos juros, com quase R$ 500 bilhões, e lá em baixo, com menos de R$ 100 bilhões, temos educação e saúde. Não podemos aceitar que educação e saúde juntas não tenham nem R$ 200 bilhões e R$ 484 bilhões para o pagamento de juros. É óbvio que isso é desproporcional e gera concentração de renda. Porque quem recebe juros basicamente são as instituições financeiras.