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Entrevista: 
Roberto Leher

‘A maior parte da conta hoje está sendo jogada nas costas das instituições públicas’

Quando se elegeu reitor Universidade Federal do Rio de Janeiro, maior instituição federal de ensino do país, Roberto Leher assumiu em uma situação de crise: atraso no início das aulas, trabalhadores terceirizados sem salários há meses e um contingenciamento que retirou R$ 70 milhões do orçamento da UFRJ. Ainda era 2014. Nesta entrevista, ele mostra que agora, com o ajuste fiscal, é simplesmente impossível fechar as contas — e ressalta que essa realidade se repete na maioria das universidades federais brasileiras, que vivem uma verdadeira crise. Com o acúmulo de quem pesquisa as relações público-privado na educação desde muito antes de chegar à reitoria, ele mostra que a tesoura do ajuste atingiu muito mais o ensino público e defende que a solução estrutural da crise passa pelo fim de uma política que vem transferindo montantes crescentes de recursos do Estado para a oferta de cursos em instituições privadas.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 14/10/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Tratado como um sacrifício pontual, de curto prazo, o ajuste tem sido muito associado ao corte de orçamento que as políticas sociais sofreram este ano. Mas você assumiu a UFRJ já denunciando uma falta de recursos que é anterior. Para a educação pública, já havia ajuste antes?

Seguramente as universidades já vinham sofrendo restrições orçamentárias. Em primeiro lugar em decorrência do fato de que todo pessoal que é terceirizado outrora eram servidores públicos. Eles foram incorporados nas despesas de custeio da universidade e, em muitos casos, correspondem a mais da metade dos recursos de custeio. Até então o pagamento era efetivado na rubrica de pessoal diretamente pelo Tesouro Nacional. Então, na realidade, isso já significou uma redução relativa de aproximadamente 50% do recurso de custeio.

E isso não foi acompanhado de um aumento de orçamento?

Não na proporção do aumento dos gastos de pessoal terceirizado. Por exemplo, na UFRJ, nós tínhamos em 2011 em torno de 900 trabalhadores terceirizados. Em 2015 nós já temos 5 mil terceirizados. Na prática, com isso o MEC [Ministério da Educação] se desobrigou de manter seus gastos com pessoal, transferindo essa conta para a universidade. Em 2014, a UFRJ já teve uma redução muito significativa de recursos em decorrência do contingenciamento da ordem de R$ 70 milhões. A crise financeira das universidades federais em 2015, a rigor tem dois determinantes fundamentais: primeiro, o gasto com terceirizados; segundo, o contingenciamento de 2014, porque tivemos que arcar no orçamento de 2015 com despesas que não foram cobertas em 2014. A rigor, nós já tivemos uma redução real do orçamento antes do anúncio do corte.

Como fica agora com o corte? Como está o curto prazo?

A curto prazo, o que nós temos hoje em um número significativo de universidades — seguramente mais de 12 estão com a situação mais grave, e são as maiores universidades — é um quadro muito difícil de fechamento das contas do ano de 2015. No caso específico da UFRJ, nós temos este ano uma redução orçamentária correspondente a 10% de custeio e 50% do investimento. Teremos novamente uma perda da ordem de R$ 70 milhões. Todas as federais tiveram esse corte. Diante dessa situação, o Ministério da Educação chamou todas as universidades federais para uma apresentação de contas sobre como ficaria o ano, pagamento de contas, conclusão de obras emergenciais, etc. E o ministério constatou que as universidades demandariam R$ 1,6 bilhão em 2015 para fechar o ano. Mas o MEC recalculou dentro da sua restrição orçamentária a possibilidade de apenas R$ 470 milhões. Diante desse quadro, muitas universidades federais não vão conseguir fechar o ano sem ultrapassar três meses de dívida com fornecedor. Isso coloca um cenário de enorme intranquilidade e incerteza. O MEC está ciente disso, mas é necessário que ele apresente uma alternativa. Seguramente não só a UFRJ, mas também outras universidades federais, se não receberem suplementação emergencial — no nosso caso, de R$ 120 milhões —, chegarão ao final do ano com dívidas que vão ultrapassar os três meses com fornecedores, o que vai gerar uma desorganização completa que pode levar, inclusive, à interrupção de atividades essenciais, como limpeza e segurança, algo que já aconteceu em 2013. Temos que lembrar que nós iniciamos as aulas com duas semanas de atraso em virtude de trabalhadores terceirizados que estavam sem receber não estarem trabalhando. Esse é um cenário que pode se repetir no final do ano, talvez em maiores proporções.

Você assumiu a reitoria problematizando o processo de fortalecimento da educação privada com recursos públicos, que já vinha em curso. No que diz respeito ao orçamento, o ajuste cortou recursos tanto das instituições públicas quanto das privadas? Como se equilibram os cortes nas instituições públicas e em programas como Fies, Prouni e Pronatec?

Esse é um dos elementos centrais da crise porque as instituições públicas, tanto da educação superior quanto da educação básica, estão sofrendo restrições orçamentárias que decorrem do corte de R$ 10,5 bilhões no orçamento do MEC. No entanto, os gastos e repasses para o setor privado foram mantidos de maneira praticamente integral, praticamente não houve mudança. Ao contrário: em 2010, o governo federal gastou R$ 1 bilhão com o Fies. Em 2014, R$ 13,5 bilhões. Em 2015, a previsão é de R$ 16 bilhões. Somado a isso, nós vamos agregar ainda algo como R$ 4 bilhões que foram gastos no ano passado com o Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao empregp]. Mesmo que este ano tenha havido uma redução, seguramente temos uma rubrica superior a R$ 2,5 bilhões do Pronatec repassado ao setor privado. Temos também os recursos do Prouni [Programa Universidade para Todos], de isenção tributária, que é da ordem de R$ 1 bilhão. Na realidade, o corte que o Ministério da Educação fez foi necessário não para o esforço do ajuste fiscal, mas em virtude do aumento desproporcional de gastos com o setor privado mercantil. Nós podemos constatar que a maior parte da conta hoje está sendo jogada nas costas das instituições públicas.

Tem-se dividido o ajuste entre medidas mais pontuais, como o corte imediato do orçamento, e medidas ditas mais “estruturantes” para equilibrar as contas públicas. A grita por uma reforma que acabe com o suposto déficit da previdência é um exemplo. Existem medidas estruturantes que atendam aos objetivos do ajuste fiscal em curso na educação?

Certamente uma muito grave é o fim do abono permanência dos servidores públicos. Somente na UFRJ nós temos aproximadamente 2 mil servidores que estão recebendo abono permanência. Entre esses, aproximadamente 700 são professores. Então, perdem-se os mais qualificados, com maior experiência, que recebem um incentivo após a aposentadoria para permanecerem atuando. Com o governo extinguindo esse abono, certamente muitos servidores vão perceber que a sua dedicação à instituição não está sendo apoiada e retribuída pela política governamental. Isso vai significar uma descontinuidade geracional na universidade semelhante à que aconteceu no período Fernando Henrique Cardoso por conta da Reforma da Previdência. Então, aqui temos uma preocupação com isso, assim como com as mudanças que já aconteceram na previdência. Temos que lembrar que os novos servidores novos já não recebem aposentadoria integral. O professor universitário, o servidor público, faz uma opção que a gente pode dizer que é muito radical de vida. No serviço público, o salário dos professores universitários é muito abaixo da média. Quem faz a opção pelo estudo, pela docência, sabe que não vai ganhar o que seria esperado, mas pelo menos tinha a possibilidade de vislumbrar uma aposentadoria integral. Isso já acabou. Acrescido a isso, temos um espectro que segue rondando a cabeça dos servidores públicos, que é uma nova geração de reformas, que inclusive podem alcançar os atuais servidores públicos que já estão computando na sua vida que terão aposentadoria integral. Isso traz uma preocupação, desânimo, desalento, que muitos começam a se perguntar se fizeram uma opção certa de vida.

O Brasil viveu um processo de expansão e interiorização das instituições federais de ensino por meio do Reuni. Mas já começam a surgir muitas denúncias de que essa expansão se deu sem a estrutura mínima necessária a uma real democratização dessas instituições. Como isso fica agora com o ajuste fiscal?

O ajuste certamente atinge em cheio a consolidação. Nós tivemos uma expansão de fato muito relevante entre 2007 e 2012, mas 2012 foi o último ano em que houve de fato uma previsão orçamentária — já insuficiente, mas pelo menos havia uma previsão orçamentária. Nós não temos o planejamento do que foi chamado na época de Reuni 2, que era o processo de consolidação da expansão. Nós temos hoje uma quantidade enorme de novos cursos em que os professores e alunos não têm sala de aula adequada, não têm lugar de trabalho, gabinete, sala, e o mais estrutural: nós não temos os recursos para manter o custeio cotidiano da universidade. Particularmente nas instituições mais antigas, deveria ter havido, na época da contratualização do Reuni, a previsão de que os prédios que já constituem as universidades teriam que ser mantidos, reformados, melhorados. Temos uma degradação muito grande na infraestrutura existente na universidade, não temos hoje recurso para manutenção e desenvolvimento de laboratórios – subestações de energia, processos de melhoria da eficiência energética que exigem investimento... Portanto, existe risco real de retrocessos em conquistas importantes da sociedade brasileira, como a expansão das matrículas. À época, quando o Reuni foi aprovado, a principal crítica feita era à falta de planejamento, que era evidente no projeto. Nenhum reitor precisava ser grande planejador para vislumbrar que o projeto requeria reforços no planejamento e estrutura e uma mudança na matriz de financiamento. Nada disso foi feito. E agora estamos aí com esse quadro dramático em que, de fato, se vislumbra uma possibilidade de retrocesso em conquistas democráticas fundamentais da sociedade brasileira.

O campo da educação crítica tem propostas alternativas para o ajuste fiscal neste momento?

A primeira delas, a mais importante, é a construção da transição para condições que possibilitem o uso exclusivo da verba pública para as instituições públicas. Essa é a questão mais estrutural. Porque se não houver reversão dessa racionalidade — de que não importa se a instituição é pública ou privada, de que a educação é um serviço que pode ser ofertado no mercado, de que, em nome da democracia, o Estado compra vaga —, o aumento da verba do Ministério da Educação não vai ser revertido em melhorias para as instituições públicas. O exemplo do crescimento do Fies é evidente: a previsão para 2016 é de R$ 21 bilhões. Aonde isso vai parar? Essa é uma primeira grande questão que eu diria que é estrutural. Segundo, precisamos ter uma regulamentação adequada dos recursos do pré-sal e que haja de fato o repasse desses recursos decorrentes das receitas do pré-sal para a rede pública, com critérios que sejam republicanos, que independam de que dirigente está à frente do Estado. É preciso haver regras. Seguramente uma parte desses recursos deve ser direcionada às instituições públicas que estão atuando na formação universitária da população. O terceiro ponto, que hoje seria muitíssimo importante para o futuro da educação pública, é uma reforma tributária, que é um tema que é geral para todos. A estrutura tributária do país não contempla os anseios de um Estado de Bem-Estar social, os anseios de direitos universais. É uma estrutura regressiva, em que os pobres pagam relativamente mais imposto do que os ricos, que incide basicamente sobre o consumo e o trabalho, isentando o capital de tributos. No caso específico da educação, é importante lembrar que a vinculação constitucional se dá por meio de impostos e não contribuições. Então, na reorganização tributária, é importante que haja um redimensionamento dos impostos e um subdimensionamento das contribuições. Porque isso tem a ver com a estrutura tributária injusta.

Você estuda a influência dos organismos internacionais, principalmente Banco Mundial, nas políticas de educação no Brasil. Existem relações entre o que é pregado por esses organismos e a forma como o ajuste está se dando no Brasil neste momento?

Há uma forte congruência porque toda a racionalidade hoje dos organismos internacionais se dá no sentido de que não devemos mais trabalhar com o conceito de direitos sociais universais. As políticas devem ser focalizadas, direcionadas, a distintos públicos, distintas políticas, seja na educação profissional, seja no ensino superior. A lógica focalista de política tem uma fortíssima congruência. E, sobretudo, a compreensão de que não cabe mais a oposição público X privado, de que devemos trabalhar com parcerias público-privadas que apagam as diferenças. O que é importante na chamada democratização de acesso aos serviços é o fato de que uma parte da população receberá os serviços gratuitamente, não importando se quem oferece é um ente público ou privado. Então, essa é a lógica da racionalidade de que não temos mais direitos sociais, temos serviços. E o mercado, como tem desigualdades, pode ser corrigido por uma ação indutora do Estado. Essa é uma racionalidade muito forte que está a reboque da estruturação hoje, não só no Brasil. Essas políticas ortodoxas são a saída para a crise em praticamente todos os países. E isso de fato afronta todos os princípios básicos de um Estado democrático, um Estado que tenha comportamento republicano e universalista, que possibilite a todos os seres humanos igual acesso à cultura, arte, saúde, etc.