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Entrevista: 
Luiz Filgueiras

‘Não há dúvida alguma: o ajuste tem caráter de classe e os mais atingidos são os trabalhadores’

Existem alternativas ao ajuste fiscal em curso? Diante da crise política, a correlação de forças permite uma virada a favor dos trabalhadores? Qual a relação entre o caminho escolhido para enfrentar a crise e a política macroeconômica que já vinha sendo implementada? Nesta entrevista o professor titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Luiz Filgueiras, responde essas e outras questões, nega que o ajuste seja um “remédio” passageiro e critica a comparação entre o Estado e as famílias para justificar os cortes e outras medidas que estão sendo tomadas pelo governo federal.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 16/10/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

EPSJV/FiocruzPara o pensamento econômico de esquerda, a crítica, neste momento, é à implementação de um ajuste fiscal ou à forma do ajuste fiscal em curso? O caminho alternativo que tem sido apresentado, considerado keynesiano consiste em incentivar o crescimento em vez de cortar gastos é um caminho considerado keynesiano: essa é a única (ou a melhor) alternativa no momento?

Na teoria econômica ortodoxa (neoclássica), o desiquilíbrio orçamentário dos governos (déficit púbico) é identificado necessariamente como algo negativo, pois, segundo ela, pressionaria os preços e também deslocaria os investimentos privados – ocupando o seu lugar na economia. Essas duas consequências, por sua vez, reduziriam o crescimento econômico e elevariam a inflação; por isso, o equilíbrio fiscal seria uma regra geral que deveria ser seguida pelos governos. Na teoria keynesiana o déficit público (principalmente o referente aos gastos de capital) não é necessariamente um problema, pois ele pode ser fruto de uma política fiscal e monetária anticíclica, de incentivo à produção e ao emprego, que permitirá, no momento seguinte, a cobertura desse déficit - em razão do crescimento econômico e da maior arrecadação de impostos e, portanto, do aumento da receita do governo. Portanto, o “ajuste fiscal”, isto é, o reequilíbrio das contas do governo se faria ou pelo corte de gastos (teoria neoclássica) ou pela própria dinâmica da economia (teoria keynesiana). Em ambas as perspectivas, o ajuste fiscal aparece como algo passageiro, um “remédio” que deve ser aplicado sempre que a doença (o déficit fiscal) surja. Mas isso tudo está formulado num nível de abstração elevado; em macroeconomia e política econômica é sempre necessário considerar a história, as circunstâncias de cada lugar (cada economia) e de cada momento.

Nas circunstâncias atuais do capitalismo, mais do que nunca um sistema mundial de produção e distribuição de riqueza, o déficit público não é mais um problema eventual a ser corrigido por uma política passageira de cortes dos gastos do governo ou uma política anticíclica. Na verdade, o ajuste fiscal tornou-se uma política permanente do capital financeiro e da direita. Por quê? Porque com a mundialização (globalização) do capital, em especial do capital financeiro, os estados de todos os países do mundo passaram a ser uma espécie de plataforma de acumulação para esse capital. A dívida pública passou a ser o instrumento fundamental de valorização do capital financeiro rentista, que vive da apropriação de uma parte crescente dos impostos cobrados da população em geral. Daí a necessidade permanente de obtenção de superávit fiscal primário (receitas - despesas correntes), para que possa ser transferido para o pagamento da dívida pública.

Desse modo, o ajuste fiscal permanente é, hoje, uma necessidade da acumulação financeira e, concomitantemente, um instrumento poderoso de “disciplinamento” dos países e de chantagem sobre os governos, através da ameaça de fuga de capitais (crise cambial), rebaixamento da nota dos países pelas agências (desmoralizadas) de riscos. Em suma, a questão central é a dívida pública: o déficit público nominal do governo (que inclui o pagamento dos juros) é permanente em razão do crescimento e da rolagem da dívida, ela cresce mesmo com o pagamento de seus juros. Ela não é para ser paga e nunca será paga; ela é “galinha dos ovos de ouro”; a preocupação do capital financeiro é tê-la sob o seu controle, monitorá-la, mantendo a sua relação com o PIB (dívida/PIB) dentro de certos limites que garantam o pagamento dos serviços da dívida. Se não fosse pelas dívidas dos Estados nacionais, o montante gigantesco de recursos que se alimenta dela (capital fictício, que não tem correspondência com os bens materiais existentes) não teria onde ser aplicado, não teria utilidade, simplesmente evaporaria.

O que fazer diante desse cenário?

O foco da esquerda deve ser o ataque à dívida pública, o questionamento de sua legitimidade e mesmo de sua utilidade para os países. Além disso, no curto prazo, o controle do fluxo de capitais é condição decisiva, para se conseguir alguma autonomia da política macroeconômica - sem que se incorra no risco de fugas de capitais e crises cambiais. A adoção de uma política de incentivo ao crescimento, em especial agora, num momento de crise internacional, não pode ignorar a fragilidade de nosso balanço de pagamentos e a inserção subordinada (comercial e financeira) do país na divisão internacional do trabalho. Não é um caminho trivial, inclusive porque dependeria das distintas frações do capital admitirem e se empenharem pela nova política.

A Presidente Dilma se reelegeu fazendo a crítica da política econômica da direita e destacando a defesa das pequenas melhorias sociais conjunturais conseguidas, principalmente, no segundo Governo Lula. Portanto, apontava para adoção de outro tipo de política. No entanto, imediatamente após as eleições, assumiu o diagnóstico da direita - elevando sistematicamente a taxa de juros e anunciando um novo ajuste fiscal; provavelmente tentando reeditar o que foi feito no primeiro Governo Lula: primeiro recobra-se a confiança dos mercados (eufemismo para designar o capital financeiro) e depois se flexibiliza o tripé macroeconômico de novo. Do ponto de vista imediato, a consequência política foi desastrosa para o governo; em vez de a oposição de direita ficar satisfeita e dar uma trégua, pois afinal a sua proposta está sendo implementada, ocorreu justamente o contrário. Tornou-se mais agressiva, incentivou e aproveitou o descontentamento de segmentos variados da classe média - e não apenas de suas frações com maior renda – e passou a pedir o impeachment da Presidente. Esse é um caso paradigmático de como piorar a correlação de forças contra si a partir de suas próprias ações; e, para piorar ainda mais, o governo passou a perder o apoio de suas bases de sustentação tradicionais.

Para defender que o Estado gastou demais, os jornais e economistas pró-ajuste apresentam números que indicam o crescimento dos gastos públicos nos últimos anos. Houve de fato aumento significativo dos gastos ou esses números são mal interpretados?

Ao longo do primeiro Governo Dilma (2011-2014), a economia brasileira entrou numa trajetória oposta à do segundo Governo Lula: o seu ritmo desacelerou, as taxas médias de crescimento do PIB reduziram-se drasticamente (de 4,5% para 2,1% ao ano) e a taxa de inflação elevou-se (de 5,9% para 6,4%), embora ainda mantendo-se dentro da meta. Apesar disso, a taxa de desemprego caiu de 6,7% para 4,8% da população economicamente ativa, atingindo o seu menor nível histórico. Na esfera das finanças públicas, que é a que mais interessa ao capital financeiro, o superávit primário, que foi de 2,2% do PIB em 2010, transformou-se em um déficit de 0,6% em 2014, enquanto o déficit nominal (quando se inclui os juros da dívida) que havia sido de 2,4% do PIB atingiu 6,3%. Por isso, a dívida pública como proporção do PIB voltou a crescer em 2014 (34,1%), depois de cair sistematicamente desde 2003. A defesa, pelo capital financeiro, da “inevitabilidade” do ajuste fiscal diz respeito a esses números, ou seja, a transferência de recursos para o pagamento de juros em 2014 não foi suficiente para reduzir ou estabilizar a dívida pública como proporção do PIB.
Mas o problema fundamental, ao longo do primeiro Governo Dilma, que condiciona todos os demais, foi o fato de as contas externas do país terem se deteriorado continuadamente: a balança comercial evoluiu de um superávit de US$ 30 bilhões para um déficit de US$ 4 bilhões, enquanto o déficit da conta de renda e serviços elevou-se de US$ 70,3 bilhões para quase US$ 89 bilhões, como consequência o déficit da conta de transações correntes passou de US$ 52 bilhões para mais de US$ 90 bilhões.

Essa relativa deterioração do quadro macroeconômico ocorreu apesar de a política econômica implementada ter sido, essencialmente, a mesma da adotada no segundo Governo Lula. Qual o significado dessa reversão de trajetória e porque isso aconteceu?

A resposta da direita econômica é taxativa: a culpa foi da política macroeconômica e das políticas sociais irresponsáveis, que produziram concomitantemente déficit orçamentário do governo e, ao sustentarem a demanda global da economia artificialmente, juntamente com a redução da taxa de juros, estimularam o crescimento da inflação. Adicionalmente, essas políticas teriam desestimulado a poupança interna e, desse modo, os investimentos. Tudo isso combinado levou à desaceleração da economia. Portanto, a sua conclusão é óbvia: o problema é o Estado, são os gastos do governo; devem-se retomar as políticas fiscais e monetárias “austeras”, para que haja reequilíbrio das contas do governo, redução da demanda global e estímulo à poupança interna. Desse modo, no momento seguinte, depois de algum sofrimento (para quem?), a inflação cairá, a poupança crescerá, serão retomados os investimentos e a economia voltará a crescer. No entanto, o aumento da inflação que vem ocorrendo não decorre de uma demanda global excessiva. Ao contrário, a desaceleração da economia, com o PIB apresentando taxas de crescimento menores (média de 2,1% ao ano nos últimos quatro anos e pífios 0,1% em 2014), é a evidência de que essa demanda caiu. Na verdade, os preços que têm empurrado a inflação para cima são os chamados preços administrados pelo governo que não têm relação com a demanda, assim como os preços que são influenciados pelo câmbio e os preços influenciados momentaneamente por circunstâncias climáticas. Em nenhum dos três casos a elevação da taxa de juros e os cortes nos gastos do governo têm capacidade de afetá-los diretamente e no curto prazo.

E a que se deve esse aumento da inflação?

Na verdade, o que controla os preços é um câmbio valorizado, a custa da elevação da dívida pública e da competitividade internacional da economia brasileira - que estimula o processo de desindustrialização do país. Daí o processo de reprimarização da economia ter se acentuado na última década e meia. Do mesmo modo, não são os gastos primários do governo a razão fundamental do déficit público. É só olharmos para a estrutura do orçamento: quase 44% do seu total se destina ao pagamento do serviço da dívida (juros e amortizações); em contrapartida, apenas um pouco mais de 4% para saúde e um pouco mais de 3% para a educação. Quando se observa que o gasto com a Previdência ocupa o 2º lugar do gasto orçamentário (quase 22,5%), entende-se a ideia fixa do capital financeiro em bombardear a Previdência Social e propugnar por sua privatização. O 3º lugar é ocupado pelas transferências para estados e municípios (um pouco mais de 10%). O montante individual das demais rubricas do orçamento é insignificante; em geral não chega a 1%, como, por exemplo, Ciência e Tecnologia (0,34%), Organização Agrária (0,11%), saneamento (0,04%) e habitação (0,01%).

A composição do déficit público nominal em 2014 aponta na mesma direção: o seu total foi de 6,7% do PIB, enquanto o déficit primário foi de 0,63%. Isso significa que o montante dos juros da dívida pública correspondeu a mais de 6% do PIB, ou seja, quase totalidade do déficit público nominal. Desse modo, fica evidente que os gastos financeiros com a dívida pública são decisivos para o resultado final das contas públicas. Em 2014, o setor bancário, ao contrário dos demais setores da economia, apresentou lucros crescentes: as três maiores instituições obtiveram um lucro líquido de R$ 41,8 bilhões. No entanto, o que incomoda o capital financeiro é não ter havido superávit primário que permitisse a redução do déficit nominal, com mais transferência de recursos públicos para o pagamento de juros. Para eles o Estado deve priorizar, em primeiro lugar, o pagamento das despesas financeiras e só depois cumprir suas outras obrigações.

Claramente, portanto, a razão fundamental da fragilidade financeira do Estado é a chamada dívida pública, que só faz crescer, porque já há muito tempo se descolou e não depende, principalmente, das contas primárias do governo. Ela ganhou autonomia, tem um movimento próprio, que amplia o seu montante permanentemente e que está associado à abertura financeira - entrada de capitais estrangeiros especulativos. O ajuste fiscal não tem capacidade de resolver o problema, simplesmente porque a dívida é recriada permanentemente na relação do governo com os mercados financeiros. O que o ajuste fiscal faz é transferir uma parcela maior das receitas do governo para o capital financeiro; por isso passou a ser uma política permanente da direita.

Quando, por uma conjuntura específica, se relaxa o superávit fiscal primário para que o Estado financie um pouco mais os gastos sociais e as atividades produtivas, a chamada economia real, o problema reaparece e as pressões aumentam em virtude do crescimento da dívida pública como percentual do PIB. O superávit primário, mesmo representando elevados percentuais do PIB, como deseja o capital financeiro e como ocorreu no segundo governo FHC e no primeiro governo Lula, não é suficiente para pagar os juros da dívida. Por isso ela cresce em termos absolutos permanentemente. E para que ela não cresça também como proporção do PIB é necessário um permanente ajuste fiscal, porque é necessário um permanente superávit primário elevado.

Não se pode deixar iludir; o papel do ajuste fiscal não é “sanear” as finanças públicas, como foi no passado, quando o padrão de desenvolvimento era hegemonizado pelo capital industrial. Esse tipo de política não tem mais essa função nem capacidade, o seu papel é garantir a transferência permanente de recursos públicos e de renda das atividades produtivas para a especulação financeira, da população em geral para os mais ricos. Na verdade se trata de ajustar todas as demais despesas do Estado em função do aumento da despesa financeira; daí os cortes das despesas primárias, sem redução das despesas com o serviço da dívida. O ajuste tem, claramente, um caráter de classe: é uma escolha a favor do capital, em especial do capital financeiro, e dos mais ricos, e contra os trabalhadores, em especial seus segmentos mais fragilizados. A natureza das medidas provisórias 664 e 665, já aprovadas no parlamento, é clara: elas atingem diretamente os direitos dos desempregados, dos trabalhadores afastados por doença e dos pensionistas.

Em resumo, além de uma política deletéria do ponto de vista produtivo e social, o ajuste fiscal é, na verdade, um permanente processo de “enxugar gelo”; ele necessita ser implementado permanentemente, caso contrário o problema retorna, inexoravelmente. É um eterno retorno; os problemas estruturais permanecem, a pobreza continua existindo, a concentração de renda não se altera no fundamental, o mercado de trabalho se precariza, mas os ricos ficam mais ricos.

Como o tripé macroeconômico (superávit primário, juros altos e câmbio flutuante) que tem sido adotado pelos sucessivos governos impacta a vida do cidadão comum?

O capitalismo em seu processo de desenvolvimento, em virtude de circunstâncias históricas (tempo e lugar), assume formas econômicas e políticas variadas, tanto no centro como na periferia do sistema mundial. Essas formas definem o que se denomina de padrões de desenvolvimento, cuja caracterização deriva da combinação das seguintes circunstâncias: o bloco político de classes que ocupa o poder a partir do Estado; o tipo (a forma) de relação estabelecida entre o capital e o trabalho; o tipo (a forma) das relações estabelecidas entre as várias frações do capital (a concorrência); o modo de inserção do país (da economia) na divisão internacional do trabalho; e o papel desempenhado pelo Estado no processo de acumulação e de regulação da economia. O atual padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil foi constituído a partir da crise do padrão anterior, denominado de “Modelo de Substituição de Importações”, cuja característica central era a hegemonia do capital industrial - nacional, estatal e multinacional.

A partir dos anos 1990, com o governo Collor, foi-se configurando o que já era uma realidade no plano mundial: uma nova hegemonia, comandada pelo capital financeiro, que subordinou a lógica produtiva à sua própria lógica volátil e de curto prazo. Essa nova hegemonia no Brasil foi incontestável até o início do segundo governo FHC (1999), quando a política econômica do Plano Real, centrada na chamada “âncora cambial”, levou à sobrevalorização do real e a uma crise cambial arrasadora, que obrigou a mudança dessa política. A partir daí, o bloco no poder passou por uma acomodação, com a incorporação de frações do capital exportador - indústria extrativa mineral e agronegócio -, condição crucial para redução da vulnerabilidade externa do país. Mais adiante, já na virada do primeiro para o segundo governo Lula, o bloco no poder sofreu uma segunda acomodação: incorporaram-se a ele outras frações do capital, como as grandes empreiteiras e as grandes redes de comércio varejista -, na esteira da retomada dos investimentos do Estado e de uma política econômica de estímulo ao consumo.

Durante todo esse período a hegemonia do capital financeiro nunca foi questionada, nem muito menos superada - apesar de ter sido obrigado a partilhar o poder com outras frações do capital, que se expressou durante o segundo governo Lula na flexibilização do chamado tripé de política macroeconômica, implantado pelo governo FHC desde a crise cambial de 1999: metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante. Essa flexibilização significou a redução da taxa de juros, a diminuição do superávit fiscal primário e intervenções no mercado de câmbio para a acumulação de reservas. Por fim, mais recentemente, ainda no primeiro governo Dilma, e na esteira da persistência da crise internacional, o capital financeiro voltou a ter protagonismo mais ativo e exigiu o retorno da aplicação rígida do tripé macroeconômico como política econômica permanente de Estado. É nesse contexto que se deve compreender o “cavalo de pau” que vem sendo dado pelo segundo governo Dilma e é aí que se insere o chamado ajuste fiscal, que não é meramente um ajuste nas contas do governo e sim uma retomada do regime de política macroeconômica implementada no segundo governo FHC e em parte do primeiro governo Lula.

Em suma, e de forma sintética, o Brasil é um país dependente tecnológica e financeiramente. De um lado, não gera endogenamente, com raras exceções, tecnologia própria e se afasta, cada vez mais, da fronteira da 3ª revolução tecnológica. De outro, como todos os demais países periféricos, não tem moeda conversível internacionalmente, o que significa dizer que sua inserção internacional está condicionada ao acesso às moedas dos países centrais (euro e dólar). A consequência dessa subordinação, do ponto de vista da dinâmica macroeconômica, se expressa historicamente em reiteradas crises (cambiais) do balanço de pagamento, pressões inflacionárias com ameaça de perda de seu controle e desequilíbrios orçamentários com crescimento da dívida pública. Tudo isso implicando uma grande vulnerabilidade externa estrutural e uma permanente fragilização financeira do Estado. Essa situação de subordinação, instabilidade e volatilidade da economia brasileira piorou sistematicamente, a partir do novo padrão de desenvolvimento capitalista sob a hegemonia do capital financeiro.

Em suma, dentro do mesmo padrão de desenvolvimento, pode-se ter distintos regimes de política macroeconômica: no primeiro governo FHC o regime se caracterizou pelo uso da “âncora cambial”, abertura da economia e valorização dor real; no segundo governo FHC instituiu-se o tripé (metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante); na virada do primeiro para o segundo governo Lula flexibilizou-se esse tripé e foram adotadas políticas complementares; no primeiro governo Dilma manteve-se essa mesma política e, por fim, agora no segundo governo Dilma, voltou-se ao tripé rígido. Com exceção do breve período de flexibilização do tripé, o resultado para a vida das pessoas, da população em geral, foi péssimo: desemprego, redução de rendimentos, precarização do trabalho. O tripé rígido significa a adoção do ajuste fiscal permanente e, portanto, a estagnação econômica e a piora das condições sociais. Basta observarmos os indicadores econômico-sociais do país nos últimos 25 anos.

A metáfora da economia doméstica é usada diariamente para justificar e legitima o ajuste. Para defender o superávit, lança-se mão do discurso de que uma família não pode gastar mais do que ganha. Para defender o pagamento da dívida, usa-se o discurso ‘moral’ de que é preciso honrar os compromissos e que a dívida só evidencia que o governo gasta demais. Qual a pertinência dessas comparações?

O bordão da direita de que “o Estado deve, da mesma forma que uma família, só gastar o que arrecada” é absolutamente ridículo. O Estado é uma instituição, por várias razões, de natureza completamente distinta da família e, mesmo assim, as próprias famílias também não gastam apenas o que ganham. No capitalismo, todos os agentes econômicos tendem a trabalhar alavancados, isto é, com base em recursos de terceiros, com o objetivo de aumentarem o seu poder de compra. Os bancos, tipicamente, disponibilizam poder de compra (empréstimos) para o consumo e para a realização de investimentos, cujo montante não guarda correspondência estrita com seus depósitos (poupança) prévios. Ao contrário, e como é típico do capitalismo, os bancos, os empresários e até as famílias e os “consumidores” atuam de forma alavancada, isto é, para conseguirem poder de compra antecipado, anterior à geração de suas rendas, se endividam. Portanto, há um comprometimento de parte da renda futura, na forma de pagamento de juros. Por outro lado, as famílias, do ponto de vista econômico, se constituem em unidades de reprodução e de consumo. Já o Estado está no centro do poder político, de dominação de classe e, ao mesmo tempo, expressa a dinâmica da luta de classes em cada momento. Além disso, o Estado está no centro do processo de acumulação capitalista, participando direta e indiretamente dele — influenciando e sendo influenciado pelas vicissitudes desse processo. As políticas econômicas sempre expressam uma determinada correlação de forças e variam o seu escopo e alcance conforme a etapa do ciclo econômico. Os superávits ou déficits públicos, assim como a dívida pública, sempre fizeram parte da dinâmica do capitalismo em todas as latitudes. O que é novo é o fato de que hoje essa dinâmica está subsumida aos ditames e movimentos do capital financeiro.

Do ponto de vista de um “ajuste fiscal”, os resultados para o governo e a família são totalmente diferentes. Quando uma família tem um déficit, e na impossibilidade de obter um empréstimo ou de elevar seus rendimentos, ela corta compulsoriamente os seus gastos, reduzindo o seu consumo e o seu padrão de vida, esse procedimento não tem nenhum reflexo ou consequência para o montante dos rendimentos que ela recebe — estes últimos são determinados por outras razões. Mas, quando se trata do governo, a depender do montante, o corte de gastos afeta fortemente o crescimento econômico e, no limite, provoca uma recessão; esta, por sua vez, reduz o montante de impostos arrecadados pelo governo e, portanto, reduz as suas receitas (uma espécie de “efeito bumerangue”) e compromete a meta inicial estipulada para o superávit primário. Foi exatamente isso que aconteceu agora no ajuste fiscal do governo Dilma: a meta de 1,1% inicialmente anunciada foi reduzida para 0,6% e, mais recentemente, apesar de todos os cortes já promovidos, já se admite que o ano terminará com um déficit primário.

O ajuste tem sido sentido principalmente pelo corte de orçamento deste ano. No entanto, economistas e colunistas de jornais já cobram do governo medidas mais estruturais, visando ao equilíbrio mais permanente das contas públicas como, por exemplo, uma nova reforma da previdência. Você poderia identificar quais medidas ditas “estruturantes” já foram tomadas, estão em curso ou estão entrando na pauta em função do ajuste?

Essas medidas estruturais são, de fato, o iceberg todo. A ponta do iceberg, o que mais chama a atenção, é o ajuste fiscal, mas o objetivo maior é retomar as reformas neoliberais, momentaneamente interrompidas por uma conjuntura internacional favorável para a economia e o governo Lula. Potencialmente elas são as seguintes: nova reforma da previdência (tanto dos trabalhadores do setor privado quanto do serviço público), a reforma trabalhista (a generalização da terceirização e o predomínio do “negociado sobre o legislado”, ambas em andamento no Congresso Nacional); a reforma tributária (piorando ainda mais o seu caráter regressivo); e o pagamento de mensalidades na universidade pública (já aprovado na Câmara a autorização de se cobrar mensalidades em cursos de pós-graduação e extensão), entre outras.
No cenário internacional, apesar da crise do capitalismo em curso - em grande medida estimulada pelas políticas liberais e a desregulação das finanças -, assiste-se, de novo, após um curto período na defensiva, a uma ofensiva da direita econômica, em especial na Europa. A crise está sendo enfrentada com mais do mesmo. Quanto mais o capitalismo se mostra incapaz de resolver necessidades fundamentais das populações, mais políticas reacionárias são implementadas. O caso recente da Grécia é exemplar. No Brasil, estamos vivendo, claramente, uma onda conservadora e reacionária no país – evidenciada em projetos e votações no Congresso: terceirização, redução da maioridade penal, definição do conceito de família etc., além de manifestações de rua comandadas por organizações de direita e extrema direita — direita econômica e direita do ponto de vista moral e dos costumes. A ação política dos trabalhadores e da esquerda será decisiva para barrar essa nova onda de reformas à vista. Se não conseguirmos reagir, o grande capital, em especial o grande capital financeiro, transformará cada vez mais a economia e a sociedade brasileira à sua imagem e semelhança.

Críticos ao ajuste fiscal que, no entanto, se mantêm em defesa do governo, costumam argumentar que não seria possível outro caminho por conta, principalmente, de um congresso conservador. Existem medidas alternativas, que indiquem outro caminho de ajuste ou de enfrentamento à crise, que dependam exclusivamente do Executivo?
Essa questão pede uma reflexão histórica e política mais ampla. O transformismo político, que vem caracterizando parte da esquerda brasileira desde os anos 1990, em especial o Partido dos Trabalhadores e o PCdoB, se explicitou e se acelerou a partir da eleição de Lula, jogando por terra a oportunidade de se caminhar em direção a reformas estruturais da economia e da sociedade brasileira, com o apoio de uma nova política econômica. Mais uma vez, o argumento foi o de que a correlação de forças não permitia fazer esses avanços e, portanto, o caminho foi o de se adaptar à ordem e, conforme a conjuntura, avançar marginalmente em pequenas melhorias sociais conjunturais, como no período do segundo governo Lula, favorecido pela fase ascendente de um novo ciclo econômico internacional — melhorias essas facilmente reversíveis em uma conjuntura mais adversa, como estamos constatando agora.

Essa escolha, em termos imediatos, conseguiu promover pequenas melhoras para os segmentos mais frágeis da população, mas, na sequência, foi desastrosa para os trabalhadores e os setores populares: a “grande política”, de disputa de projetos antagônicos para transformação estrutural da sociedade, foi substituída pela “pequena política” (negócios com cargos, fisiologismo, nepotismo, aparelhamento do Estado e, no limite, a corrupção), tudo em nome da coesão da chamada “base aliada” e da governabilidade dos governos “progressistas”. Os escândalos do chamado “Mensalão” em 2005 e, agora, o da Petrobrás evidenciaram o quanto essa parte da esquerda se transformou — reproduzindo a mesma cultura política da direita enraizada em nosso sistema político. Neste último ficou muito claro o cruzamento da “pequena política” com os interesses privados e o financiamento privado de campanhas políticas, expondo a prática corrupta de grandes grupos econômicos na sua relação com os partidos políticos, os políticos profissionais e o Estado.

Desse modo, os sucessivos “governos progressistas” (2003-2015) ao invés de caminharem para a realização de uma reforma agrária massiva, fortaleceram o agronegócio; em vez de fazerem uma reforma fiscal em sentido oposto a do atual sistema tributário injusto que privilegia descaradamente os mais ricos, mantiveram-no praticamente intacto; em vez de implementarem uma reforma urbana para tirar o poder e o controle do capital imobiliário sobre as cidades garantindo moradia popular decente e mobilidade, facilitaram o financiamento que alavancou a especulação fundiária e jogou os preços da moradia para o alto; em vez de realizarem uma reforma da educação para resgatar de fato a combalida educação fundamental e ampliar a educação superior do país com qualidade, estimularam o ensino superior privado através da concessão de bolsas e financiamento e ampliaram o ensino superior público de forma precária, desorganizada e irresponsável; em vez de patrocinarem uma reforma do sistema público de saúde para ampliá-lo e dar maior efetividade e funcionamento digno ao SUS, se limitaram a apostar, inicialmente, no crescimento da arrecadação da CPMF e, depois, na disputa pela sua manutenção — para garantir, sobretudo, a remuneração dos hospitais e clínicas privados; em vez de estimularem, financiarem e apoiarem a produção de tecnologia e incentivarem a criação de novos segmentos industriais de ponta, optaram por financiar os grandes grupos econômicos nacionais produtores e exportadores de commodities e construir uma infraestrutura voltada para eles (o PAC); em vez de controlarem o fluxo de capitais especulativos, mantiveram a abertura financeira e continuaram a garantir lucros enormes a esses capitais com a prática de taxas de juros elevadíssimas. Em suma, em lugar de trilharem uma rota de transformações estruturais, ou pelo menos tentarem construir essa rota, esses governos, em nome da correlação de forças e da “governabilidade”, escolheram o caminho mais fácil, de pequenas melhorias através de mecanismos de mercado, como o Bolsa-Família, Prouni, Fies, a ampliação do financiamento ao consumo popular (crédito consignado) com o consequente endividamento das famílias, os programas Minha Casa Minha vida e Minha Casa Melhor. Nesse contexto, destacou-se positivamente a política de aumentos reais do salário mínimo e o seu impacto nos benefícios da Previdência Social. Mas, mesmo esta, por si só, é completamente frágil e pode ser revertida, como todas as outras, em uma conjuntura adversa como a que estamos passando atualmente.

No curto prazo, a alternativa imediata a esse estado de coisas, ainda dentro da ordem capitalista e de uma condição de país dependente, exige a inversão da lógica do ajuste fiscal, com a aglutinação das forças sociais adormecidas que são amplamente contrárias a essa política. O perfil conservador do Congresso é resultado também das escolhas políticas feitas por esses “governos progressistas” ao longo dos últimos doze anos. A governabilidade construída se alicerçou em forças políticas conservadoras e fisiológicas; portanto, a dificuldade presente foi construída pelo próprio transformismo dessa parte da esquerda que assumiu o comando do Estado — que agora chantageia e coloca o governo de joelhos. Nas difíceis condições econômicas e política atuais, o eixo fundamental de uma ação defensiva, com o intuito de acumular força política para mudanças sociais mais profundas, deve ser no sentido de combater a inflação e a fragilidade financeira do Estado com aumento da produção, a penalização do capital financeiro e a implementação ou sinalização da implementação de reformas cruciais, com a adoção, entre outras, das seguintes medidas imediatas: controle do fluxo de capitais (condição primeira), elevação da taxação sobre as operações financeiras, aumento do imposto sobre herança, regulamentação do imposto sobre as grandes fortunas inscrito na Constituição desde 1988, alteração do imposto de renda com a criação de mais alíquotas que de fato o tornem progressivo, redução da taxa de juros e do superávit fiscal primário — reduzindo o crescimento da dívida pública e redirecionando os recursos para obras públicas de extrema importância (saneamento básico e mobilidade urbana). Mas essa política alternativa, para ser implementada, exigiria que o governo Dilma construísse outro tipo de governabilidade, que não se restringisse ao parlamento e trouxesse para a cena política os movimentos sociais organizados.

A correlação de forças imediata é favorável à adoção dessas e outras propostas mais profundas? Não, e nunca vai ser, se não ousarmos reivindicá-las e não tentarmos operacionalizá-las. As forças sociais que serão beneficiadas com essa nova política são a maioria da população e também são sujeitos da correlação de forças; não podem ser meros expectadores, precisam ser mobilizadas para acreditarem em sua força e em seu potencial político. Mas para isso é imprescindível que existam lideranças e vanguardas que acreditem que isso é necessário e possível de ser feito, e que tenham disposição e coragem de dirigirem o processo. A lição recente propiciada pela capitulação da Presidente da República ao capital financeiro e às forças de direita é um exemplo paradigmático de como nossas ações, para o bem ou para o mal, interferem na correlação de forças no curto prazo. Outro exemplo é o da recente mobilização dos sindicatos e demais forças sociais contrárias ao projeto de lei 4330 que generaliza e permite a terceirização em qualquer tipo de atividade: aprovado inicialmente na Câmara de Deputados em primeira votação com grande folga, quase foi rejeitado na segunda votação, criando outra situação para a sua tramitação no Senado. As manifestações de rua contrárias, a denúncia e listagem dos deputados que votaram a favor e a ameaça de uma greve geral foram decisivas para a criação de outro clima político. A volatilidade política é uma marca do nosso tempo histórico: há uma aceleração dos acontecimentos e as mudanças na correlação de forças acontecem, muitas vezes, com muita rapidez.

A desoneração da folha de pagamento, que foi fartamente usada pelo empresariado no primeiro governo Dilma, também tem sido revista no contexto do ajuste. Isso é coerente com as demais medidas do ajuste? Dados mostram que essa política não impediu a demissão de pessoas na maior parte dos setores beneficiados, no entanto, num momento de crise, isso pode gerar mais desemprego e significar mais um sacrifício para os trabalhadores?

Subjacente a essa questão há o seguinte problema: o que determina a contratação de trabalhadores pelas empresas? A teoria ortodoxa (neoclássica) foca o custo de contratação (salário e encargos trabalhistas) como elemento determinante para a empresa contratar mais ou menos. Daí, a sua proposta de redução dos custos trabalhistas (com a flexibilização e/ou extinção de direitos sociais) para estimular uma contratação de trabalhadores por parte das empresas. Nessa perspectiva, os salários são sempre vistos do ponto de vista microeconômico, como um custo para as empresas. Por outro lado, a teoria keynesiana (nesse aspecto compatível com a teoria marxista) foca a demanda efetiva: de nada adianta o custo de contratação da força de trabalho ser baixíssimo, ou mesmo de graça, se não houver para quem vender os seus produtos. Portanto, o que define, fundamentalmente, o nível de emprego da empresa e do conjunto da economia é a expectativa de lucros dos empresários decorrente da venda de seus produtos. Portanto, o empresário manterá ou expandirá o seu nível de produção (ocupando a capacidade ociosa já existente em suas empresas ou fazendo novos investimentos para ampliação dessa capacidade) a depender da perspectiva da evolução das vendas e dos lucros. Nessa ótica, os salários são vistos do ponto de vista macroeconômico, como um componente da demanda agregada. Assim, no caso concreto atual, o fato de se manter ou retirar as desonerações, por si só, não significa dizer que vai haver mais demissões; isso dependerá da capacidade das empresas atingidas em manter suas margens de lucro e da demanda por seus produtos. Mas, de fato, o encarecimento do produto pode reduzir a demanda por seus produtos, reduzindo suas receitas e, eventualmente, se o retorno do imposto não for repassado aos preços, suas margens de lucro também se reduzirão. O impacto sobre o emprego tem que ser observado concretamente, caso a caso.

É correto dizer que os trabalhadores estão pagando, sozinhos, a conta dessa crise? Medidas como a diminuição da desoneração podem ser interpretadas como um sinal de que a conta está sendo dividida também entre o empresariado?

A conta da crise está sendo paga, fundamentalmente, pelos trabalhadores (desemprego, redução de salário e estreitamento da rede de proteção social) e pequenos e médios empresários (redução de faturamento e das margens de lucro e, no limite, falência). As desonerações dizem respeito a impostos que eram normalmente cobrados e que, em virtude de uma política econômica anticíclica de estímulo à demanda, desde o estouro da crise mundial em 2008, foram retirados. Portanto, as desonerações (um tipo de renúncia fiscal por parte do governo) foram de caráter excepcional (passageiro) e o seu uso poderia a qualquer momento vir a ser suspenso, o que de fato ocorreu. Em suma a crise e o ajuste fiscal afetam diferenciadamente os agentes econômicos, como sempre acontece no capitalismo; no caso do capital, afeta diferenciadamente as suas várias frações. Por exemplo, o capital financeiro está se dando muito bem com a elevação da taxa de juros e o capital exportador, em especial o agronegócio, vai muito bem também, em razão da desvalorização cambial. Os pequenos e médios empresários, por sua vez, passam atuar num ambiente de forte concorrência, radicalizada pela queda da demanda. Mas não há dúvida alguma: o ajuste tem caráter de classe e os mais atingidos são os trabalhadores, em especial os seus segmentos mais frágeis: os mais jovens e os mais velhos, os menos escolarizados, os negros e as mulheres.