Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Ana Lucia Soutto Mayor

'As bolsas cumprem o papel de reconhecer a iniciação científica no ensino médio como política pública’

Em meados de agosto, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), uma das principais agências de fomento à pesquisa do país, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), publicou nota informando que o orçamento para o órgão não seria integralmente recomposto em 2019. Por conta disso, a agência não teria como garantir o pagamento das cerca de 80 mil bolsas – de iniciação científica (graduação e ensino médio), mestrado, doutorado e pós-doutorado –, a partir de setembro de 2019. O problema decorre de um déficit orçamentário, da ordem de R$ 300 milhões, que atinge a agência, já que, de R$ 1,2 bilhão destinado a ela pela Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2019, apenas R$ 784,8 milhões foram aprovados neste ano. Para garantir ao menos o pagamento das bolsas referente ao mês de setembro, o MCTI conseguiu remanejar de forma emergencial R$ 82 milhões da área de fomento para a área de bolsa do CNPq. Mas o CNPq segue sem recursos para suprir com todas as bolsas até o fim de 2019, acendendo um alerta nas várias instituições de ensino e pesquisa do país, que são responsáveis pela operacionalização das bolsas de fomento à pesquisa. Na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por exemplo, das 123 cotas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica para o Ensino Médio (PIBIC-EM), uma das modalidades de bolsas do CNPq, 72 foram suspensas no início de setembro de 2019. Essas cotas, no valor de R$ 100 cada, estão sob a coordenação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), destinando-se a estudantes de escolas públicas que fazem parte do Programa de Vocação Científica (Provoc) da Fiocruz, criado em 1986. Entrevistada pelo Portal EPSJV, a coordenadora do Pibic-EM da Fiocruz e professora-pesquisadora da Escola Politécnica, Ana Lúcia Soutto Mayor, destaca a importância das bolsas de iniciação científica e revela como a unidade busca garantir o pagamento das bolsas até o fim de 2019. Segundo ela, apesar do pequeno valor, que não é reajustado há anos, existe um valor simbólico agregado à bolsa. “Você passa a ter a chancela de uma agência de fomento reconhecida nacionalmente”, observa.
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 27/09/2019 10h22 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Como o déficit orçamentário do CNPq atingiu a EPSJV/Fiocruz?

Nós conseguimos, para o biênio 2019-2020, 123 cotas de bolsas de iniciação científica para o ensino médio, alocadas exclusivamente no Provoc, sob a coordenação da EPSJV, por ser a unidade de ensino médio da Fiocruz. Essas bolsas foram concentradas dessa forma no fim de 2018, já por conta de um estrangulamento orçamentário que começou ainda em 2016, quando o CNPq reduziu pela metade a cota de bolsas da Fiocruz e a instituição passou a fazer a complementação de 41 bolsas com recursos próprios. Em 2019, especificamente, na virada do dia 14 para o dia 15 de setembro – pois todo dia 15 atualizamos o sistema de bolsas –, fomos informados que o CNPq, por ordem da Presidência da República, suspendeu qualquer movimentação nas bolsas. Foi então que 72 bolsas da nossa cota ficaram retidas, ou seja, foram suspensas.

Como a EPSJV/Fiocruz está tratando a questão?

Assim que tomamos ciência do problema, procuramos a Vice-Direção de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Escola, que, por sua vez, marcou reunião com o vice-presidente de Pesquisa e Coleções Biológicas da Fiocruz [Rodrigo Correa de Oliveira]. Sensível à situação, que envolve não apenas as bolsas do ensino médio, como também as da graduação e da pós-graduação, a Fiocruz pautou o problema nas Câmaras Técnicas e no Conselho Deliberativo da Fundação. O encaminhamento dado pela Fundação é que cada unidade que tem alunos do Provoc avaliem sua condição orçamentária, na tentativa de suprir essas bolsas que foram suspensas até o fim do ano, de forma emergencial. Isso não quer dizer que o problema está resolvido.

Como o Pibic-EM funciona?

O Pibic Ensino Médio é uma política de bolsas do CNPq que passou a reconhecer o valor da pesquisa nesse nível de ensino. Inicialmente, na Escola Politécnica, as cotas das bolsas de iniciação científica para o ensino médio eram divididas entre o Provoc e o PTCC [Programa, Trabalho, Ciência e Cultura], que é um programa curricular que atende exclusivamente os alunos do ensino médio integrado da EPSJV.  Por causa dos cortes em bolsas do CNPq, ainda em 2016, resolvemos no fim de 2018concentrar o Pibic Ensino Médio no Provoc. As bolsas do PTCC, consequentemente, passaram a ser custeadas exclusivamente pelo orçamento da Escola. Essa decisão encontra também justificativa na concepção do Pibic-EM, que foi inspirado no modelo Provoc.

Qual a pertinência do Provoc para os estudantes do ensino médio?

O Provoc é um programa de iniciação à pesquisa, a partir da vivência da pesquisa como processo de trabalho. Os alunos selecionados são, em sua maioria, de escolas públicas, como o Colégio Pedro II. Eles são acompanhados por pesquisadores renomados das mais diversas áreas de atuação da Fiocruz. Em uma primeira etapa, que é a de Iniciação – realizada em 12 meses –, os alunos têm contatos com os laboratórios de pesquisa, são alocados em um projeto de um orientador e os orientadores, por sua vez, respondem a um edital interno. O objetivo é colocar os alunos diante das técnicas e objetos de pesquisa em saúde. Em uma segunda etapa, o chamado Provoc Avançado, o aluno desenvolve todas as etapas de execução de um projeto de pesquisa em ciência e tecnologia em saúde. Esta etapa leva em torno de 22 meses. Muitas vezes, o aluno termina o Avançado já na graduação. O Provoc contribui também para aproximar a Escola Politécnica das outras unidades da Fiocruz.

Qual é a importância da bolsa Pibic-EM?

Quando fomenta a pesquisa no ensino médio, o Estado passa a fazer com que o estudante comece desde cedo a lidar com os rituais acadêmicos, com a pesquisa, faz com que esse aluno vislumbre a pesquisa como um campo de formação e trabalho. A bolsa, apesar do valor, é bastante relevante para o currículo do aluno e o currículo do seu orientador. Você passa a ter a chancela de uma agência de fomento reconhecida nacionalmente. Vou te dar um exemplo: hoje mesmo, como coordenadora do Pibic-EM, eu dei um ‘de acordo’ na declaração de uma colega que orientou um estudante do PTCC em 2017, quando ainda as bolsas do PTCC eram pagas pelo Pibic-EM. Ou seja, ter na declaração a chancela ‘Pibic Ensino Médio/CNPq’ agregou valor simbólico ao currículo da professora. Por isso, também foi bastante difícil decidir por concentrar o Pibic-EM no Provoc. O próprio PTCC reconhece que a bolsa Pibic trouxe em certa medida reconhecimento ao trabalho de pesquisa, embora os programas tenham mecânicas distintas. Em suma, as bolsas cumprem o papel de reconhecer a iniciação científica no ensino médio como política pública. Elas também dão valor acadêmico aos currículos do aluno e do orientador. Por fim, ainda que pequena, a bolsa de iniciação científica para o ensino médio, muitas vezes, ajuda no orçamento familiar. Na seleção deste ano dos alunos do Provoc, perguntamos se ‘a bolsa seria condição para participar do programa?’. A maioria esmagadora disse que não, ainda que a gente saiba que muitos poderiam ter dito sim. Pois, ao mesmo tempo, muitos alunos responderam que a mãe ou o pai estavam desempregados. O que quero dizer com isso: embora muitos alunos ao se candidatarem ao Provoc tenham afirmado que a bolsa não era condição primeira para participar do programa, sabemos que, para alguns, essa bolsa, que deveria servir para comprar um livro ou pagar uma atividade, acaba por complementar sua alimentação ou seu transporte, que muitas vezes entra como parte do orçamento da família.

Quais são os resultados práticos do incentivo à iniciação científica na EPSJV?

Primeiro é preciso reconhecer que a formação não passa somente pelo professor, que a pesquisa também é uma maneira de formar os alunos. Seja o Provoc ou o PTCC, os dois programas de iniciação científica são construtores de conhecimentos. Do ponto de vista prático, quem passou pela iniciação científica, quando entra na graduação, sai na frente para disputar uma bolsa. A iniciação científica agrega valor tanto do ponto de vista da formação quanto do currículo.

Quais seriam as perspectivas futuras?

Eu falo agora não mais como coordenadora do Pibic Ensino Médio, mas como servidora pública dessa instituição, como alguém que acompanha a política federal há muitos anos. Eu acredito que a EPSJV terá que pensar uma política de bolsas mais autônoma, mesmo reconhecendo a importância do CNPq. Mas, antes disso, é preciso manter vivo o diálogo e a parceria com as unidades da Fiocruz, a exemplo do que foi feito em 2016. Na ocasião, passamos a contar com apenas 110 bolsas. Esse número não conseguiu abarcar todos os alunos inscritos no programa de bolsas de iniciação científica e a Fiocruz complementou com recursos próprios 41 bolsas. A Fiocruz tem conseguindo driblar o problema de cortes de bolsas de uma maneira positiva, porque é uma instituição que tem uma movimentação orçamentária considerável, com recursos que vem do Tesouro, por estar vinculada a uma pasta que tem força política, que é o Ministério da Saúde. Mas, em um contexto de incertezas sobre o futuro das agências de fomento, que atinge também a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, vinculada ao Ministério da Educação], torna-se fundamental buscar maior autonomia.  E buscar maior autonomia nesse momento é também reconhecer dois importantes programas de iniciação científica, o Provoc e o PTCC. Este último, por sua vez, já está consolidado, faz parte do sistema de bolsas da EPSJV, o que vejo com muita alegria, pois faz com que nossos alunos, do ensino médio integrado, não passem pelo o que os alunos do Provoc estão passando.