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Entrevista: 
Laudecy Alves do Carmo Soares

‘Como política, permite espaços de construção coletiva’

O contexto histórico do surgimento da educação permanente em saúde no Tocantins é o assunto dessa entrevista com Laudecy Alves do Carmo Soares, egressa do Mestrado Profissional em Educação em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 11/10/2019 13h34 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

‘Educação permanente em saúde em ato: desafios para a construção de uma política de educação permanente em saúde viva - concepções e formulação’, título da dissertação de Laudecy Alves do Carmo Soares, egressa do Mestrado Profissional em Educação em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), discorre sobre a análise do processo de construção da Política Estadual de Educação Permanente em Saúde do Tocantins. Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, a professora da Escola Tocantinense do SUS Dr. Gismar Gomes (ETSUS-TO), da qual foi diretora até maio de 2018, conta como se deu seu estudo. Ela resgata o contexto histórico do surgimento da Educação Permanente em Saúde no Tocantins, revelando em seu trabalho como a Política de EPS, quando aplicada conforme o planejamento, contribui para a melhoria das práticas de cuidado em saúde. “Foi possível perceber que os sujeitos, com suas vivências, experiências, histórias, culturas, conhecimentos e saberes, se apresentam como importantes atores e influenciadores no processo de construção da Política Estadual de EPS do Tocantins”, destaca Soares.

Qual foi o objetivo do seu trabalho de pesquisa?

O objetivo geral da minha pesquisa foi analisar o processo de construção da Política Estadual de Educação Permanente em Saúde do Tocantins, buscando investigar os limites e potencialidades desta política no estado. O estudo compreendeu o período de setembro de 2016 a novembro de 2018. Já os objetivos específicos foram descrever o processo de construção da política, compreender o papel dos atores envolvidos nesta construção, as concepções de políticas públicas que eles trazem e entender como esses atores influenciam em sua formulação, além de identificar e analisar elementos e estratégias potentes utilizados ao longo do processo de construção e discutir limites e potencialidades da política, destacando possíveis resultados iniciais da sua construção.

Qual a metodologia usada?

Utilizei a abordagem qualitativa, do tipo exploratório-descritivo, como opção metodológica no estudo. E, como não há neutralidade na ciência, empreguei a observação participante da construção da Política Estadual de Educação Permanente em Saúde do Tocantins, o que de fato possibilitou uma maior interação com os atores do processo e observação de dentro, como partícipe da formulação. Deste modo, para fazer o registro das informações, gravei os encontros e produzi uma síntese em diário de campo sobre as discussões presenciadas, o que facilitou a produção do relatório de observação. Por fim, empreguei as técnicas de coletas de dados: entrevista semiestruturada; grupo focal; observação participante; e pesquisa documental. Utilizei a análise de conteúdo de Bardin, por meio do qual foram elaboradas as categorias de análise. Deste modo, realizei um cruzamento das fontes de dados, a fim de possibilitar um maior aproveitamento e, ao mesmo tempo, a confiabilidade e a concretude dos dados pesquisados. Por conta das questões éticas, submeti a pesquisa aos fluxos internos da Secretaria Estadual de Saúde do Tocantins e à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz.


Por que estudar a educação permanente em saúde? O que a motivou?

Analisando o cenário em que estão inseridas as ações de EPS no Tocantins, verifiquei que a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde no estado, do ponto de vista não somente de um plano de execução de cursos, mas de uma política viva, ainda era incipiente. De tal modo, que a decisão de trabalhar este tema se deve a minha atuação na gestão da Escola Tocantinense do SUS Dr. Gismar Gomes (Etsus), entre o período de janeiro de 2015 e maio de 2018, e, também, como componente do Grupo de Trabalho, instituído com o objetivo de coordenar o processo de elaboração da Política Estadual de EPS do Tocantins.

O que se entende por educação permanente em saúde? Qual a importância dessa política para o SUS?

Vou recorrer a dois grandes autores que estudam essa temática, que é o Ricardo Ceccim e o Alcindo Ferla. Para eles –  eu sigo essa análise –, a educação permanente em saúde deve ser entendida tanto como uma prática de ensino-aprendizagem quanto como uma política de educação na saúde. A educação permanente em saúde como prática de ensino-aprendizagem, parte do fato vivenciado no dia-a-dia dos serviços de saúde e tem como hipótese o experimento prévio dos atores envolvidos, a chamada aprendizagem significativa. Apoia-se no “ensino problematizador”, por meio do qual os problemas do trabalho são identificados pelos trabalhadores envolvidos na produção do problema ou pelas necessidades do trabalho para a produção de conhecimentos e, ao mesmo tempo, pelas propostas de soluções, capazes de provocar as transformações. Como política, permite espaços de construção coletiva, onde os diversos interesses se apresentam de várias formas, produzindo negociações, conflitos e, algumas vezes, consensos. Essa política tem grande relevância para o SUS, uma vez que objetiva a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho, tomando como referencial as necessidades de saúde dos usuários e a aprendizagem significativa, onde o trabalhador também faz gestão.

Como a Política Estadual de Educação Permanente em Saúde se construiu no Estado do Tocantins?

Na verdade, o processo de construção da Política Estadual de EPS no Estado do Tocantins teve início muito antes de a iniciativa ter um documento formal, de se ter uma política escrita e normatizada. Foi um processo que iniciou antes da implementação da política nacional, nos diversos movimentos de capilarizar a EPS para dentro dos mais diversos territórios. Foram criados setores formais nas estruturas de governo, entre eles a Coordenação de Gestão da Educação na Saúde – que depois evoluiu no organograma para Diretoria –, com a atribuição de atender as demandas prioritárias de formação de recursos humanos, e a Escola Técnica de Saúde do Tocantins – que se torna Escola Tocantinense do SUS Dr. Gismar Gomes –, com a atribuição de gerir a educação na saúde e o desenvolvimento de formação de profissionais de nível médio, além de promover a gestão do trabalho e dos processos educacionais e de pesquisa em saúde. O estado do Tocantins conta também com uma Comissão de Integração Ensino-Serviço (CIES) estadual e com Núcleos de Educação Permanente em Saúde (NEPs), criados como estratégia potente para operacionalização da EPS, tanto nos setores de gestão quanto nas unidades hospitalares, objetivando o fortalecimento e capilarização da EPS nos diversos territórios do estado. Todos eles são espaços potentes para a operacionalização e implementação de ações de EPS e, também, da política.

Quem são seus atores?

Os atores são trabalhadores do SUS, em sua maioria mulheres, conformando uma equipe multiprofissional, com destaque para a categoria da enfermagem, odontologia e pedagogia, sendo a maioria na faixa etária entre 40 e 50 anos, com atuação nas áreas da educação, vigilância e atenção à saúde, além do Cosems [Conselho Estadual dos Secretários Municipais de saúde] e dos próprios consultores. Foi possível perceber que os sujeitos, com suas vivências, experiências, histórias, culturas, conhecimentos e saberes, se apresentam como importantes atores e influenciadores no processo de construção da Política Estadual de EPS do Tocantins.

Quais são os limites da Política Estadual de Educação Permanente em Saúde do Tocantins?

Destaco como principais limites desta política a participação incipiente dos técnicos e gestores da Secretaria Estadual de Saúde durante os encontros de construção, que se deu por meio de oficinas, como também a escassez de tempo para a construção e a execução do novo projeto, a partir do PRO EPS-SUS [Programa para o Fortalecimento das Práticas de Educação Permanente em Saúde no SUS], e a carência de recursos financeiros para financiar tanto os encontros para a construção da política quanto às ações para sua implantação e implementação. Da lista de limites fizeram parte também a instabilidade política – foram quatro eleições em um ano – e o contexto de mudanças abruptas na gestão estadual, colocado por alguns sujeitos da pesquisa como um cenário de incertezas, que fragilizou o grupo e o planejamento que havia sido construído, além da sobrecarga de trabalho versus a força de trabalho para desenvolver as ações do EPS e o fato de se depender da vontade  dos outros, de gestores, políticos e dos próprios trabalhadores. Um dos sujeitos da minha pesquisa expressa seu desapontamento quanto às políticas públicas de um modo geral. Para ele, grande parte das políticas públicas tem esbarrado na vontade verdadeira de fazer.

E as potencialidades da política?

Quanto às potencialidades da construção da Política Estadual de EPS do Tocantin, na perspectiva do processo de construção de sua escrita, percebi que houve maior interação e envolvimento de vários setores da Secretaria Estadual de Saúde, um fortalecimento da escola e dos NEPs. A participação da OPAS [Organização Pan Americana da Saúde], com seus especialistas, também contribuiu muito para as discussões. Além disso, o PRO EPS-SUS possibilitou um movimento que contribuiu com a construção da política. Para alguns sujeitos da pesquisa, a potencialidade foi ter como estratégia de construção o foco nas pessoas e foi perceptível que há uma semente plantada em cada um dos sujeitos desta construção.

Para os autores que fiz referência, as políticas públicas não estão no programa, não estão em portarias, a política está no território. Então, parte da potencialidade da política está na própria ação, na própria potência de ação, dos diferentes atores dos territórios. Sua grande potencialidade implica o empoderamento dos atores, trabalhadores e gestores, uma vez que a educação permanente permite a disseminação de conhecimento, a problematização dos processos de trabalho, a melhoria das práticas de saúde e, consequente, dos indicadores de saúde.

Quais foram os resultados da sua pesquisa? O que você observou?

Observei como resultados da pesquisa a notória e intensa transferência de conhecimento entre os sujeitos e demais atores participantes do processo. De acordo com os sujeitos, eles aprenderam – e já aplicaram – a transformar reuniões em encontros. Houve deslocamentos e mobilização para a mudança, mudou olhares, agregou pessoas... É indiscutível que houve a consolidação de um grupo de trabalho, que conseguiu transformar, extrapolar, pois a política não se transformou em um produto, ‘ela é viva em nós’. Mesmo com todas as alterações no cenário político do estado, percebi que houve a aplicação da pedagogia da política, ressignificando, mostrando outro caminho. Constatei que há uma semente plantada, em cada sujeito deste processo.

É possível construir uma política estadual de educação permanente em consonância com as diretrizes nacionais?  O que é preciso para isso?

Sim, é possível. Mas, para que essa construção e para que a política receba a capilaridade e a representatividade almejadas, é necessário o apoio da gestão em todos os âmbitos do SUS. É, portanto, momento de novas articulações, processo de convencimento dos gestores para sua concretude. O que, aliás, destaco como uma atribuição constante dos trabalhadores que militam nessa área, de congregar diferentes atores, para que de fato aconteça a reflexão das práticas e, consequente, a EPS nos territórios. Para tudo isso acontecer, é preciso valorizar os saberes dos profissionais que estão nas unidades e nos espaços de gestão, atenção ou de vigilância. Enfim, é necessário dar voz às pessoas. Na pesquisa, eu deixo algumas questões para reflexão: até que ponto consegue-se dar voz aos trabalhadores em saúde, sem represálias?; Seria a EPS como a utopia de Eduardo Galeano?. Este jornalista e escritor uruguaio confessa que ficou sem resposta, quando perguntado sobre para que serve a utopia, ao passo que seu amigo respondeu de forma estupenda: “A utopia está lá no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se afasta dez passos. Quanto mais eu buscá-la, menos a alcançarei, porque ela vai se afastando a medida que eu me aproximo. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Boa pergunta não, para que serve a utopia? Pois a utopia serve para isso: para caminhar”.