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Entrevista: 
Alessandro Mariano

'Discutir o fechamento de escola passa por discutir o próprio projeto de campo'

Durante cinco dias, mais de 1500 educadoras e educadores ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, pesquisadores e professores convidados se reuniram em Luziânia, nas proximidades de Brasília, para compartilhar experiências sobre a educação no campo, apontar desafios e perspectivas, e, acima de tudo, lutar. Foi para denunciar o fechamento de mais de 4 mil escolas rurais só em 2014 e cobrar compromisso do governo federal com uma educação de qualidade também para quem mora nas cidades que os educadores ocuparam as avenidas de Brasília em uma marcha e também os ministérios da Educação e da Agricultura. Neste último, a parada foi também para protestar contra a estagnação da reforma agrária no país e uma série de políticas que ameaçam os trabalhadores e trabalhadoras do campo e toda a sociedade brasileira, como a utilização de agrotóxicos. Nesta entrevista, Alessandro Mariano, do setorial de educação do MST, detalha as dificuldades pelas quais passam atualmente os estudantes camponeses em todo o Brasil e como o modelo de agricultura baseado no agronegócio é insustentável.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 25/09/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Por que priorizar o tema do fechamento das escolas do campo durante o 2º Enera? Esse processo está se intensificando?

O Enera coloca vai se expressar como um momento importante de denúncia e enfrentamento. A partir do congresso do MST, quando os sem-terrinha ocuparam o Ministério da Educação, tivemos uma resposta do MEC, que foi a proposição de um adendo à Lei de Diretrizes e Bases da Educação apontando a necessidade de se consultar as comunidades para fechamento de escolas. No entanto, isso não resultou ainda num processo contrário ao fechamento. Eu venho do estado do Paraná e este ano de 2015 foi o que mais se ressaltou o fechamento de escolas. É um processo crescente. A análise que a gente vem fazendo é que discutir o fechamento de escola passa por discutir o próprio projeto de campo. O Enera se coloca nessa tarefa, por exemplo, quando a gente faz a ocupação do Ministério da Agricultura no sentido de denunciar o modelo de agricultura vigente sob o agronegócio. Porque um campo sem gente, que é o que o agronegócio apregoa, evidentemente vai resultar no fechamento das escolas, no definhamento das comunidades do campo. Essa é a lógica do capitalismo no campo: que ele se torne um espaço de produção de mercadoria unicamente em detrimento a um campo como espaço de relação, de vida, de cultura. Isso exalta a necessidade de se construírem espaços como as escolas do campo.

Que resposta foi essa que o MEC deu em relação à LDB?

Houve um adendo na LDB, que acho que é de agosto do ano passado. Foi a inclusão de um parágrafo colocando a necessidade de consulta à comunidade local sobre o fechamento das escolas do campo, indígenas e quilombolas. Com esse adendo na LDB, há uma mudança na tática constituída: fecham-se cursos e turmas e isso vai definhando a escola. Por exemplo, no Paraná, que é de onde eu venho, não houve fechamento de escola, mas a estratégia posta é o fechamento das turmas, o desaquecimento dessa escola para que daqui a pouco a própria comunidade ache que não tem fôlego para manter a escola no campo. Se você fecha uma turma de primeiro ano de ensino médio, isso significa que no ano seguinte também não vai ter um segundo ano. A curto prazo a comunidade não consegue identificar isso, mas a médio prazo, daqui a três anos, significa que a escola não tem mais fôlego.

Quando as escolas são fechadas, para onde vai a população que depende de uma escola próxima?

A saída posta é o transporte rural, o transporte escolar. O Paraná, por exemplo, gasta R$ 80 milhões por ano com transporte rural. O que isso implica efetivamente nos municípios? É a velha permuta. Porque quem é o empresário do transporte rural? Praticamente são os amigos das lideranças, do prefeito, vereador. No Paraná, os educandos ficam 40, 60 dias sem poder acessar a escola porque as estradas estão num estado deplorável. Essa é uma alternativa que acaba prejudicando de forma efetiva até a possibilidade dos 200 dias letivos. Mas, ao mesmo tempo, favorece, nos pequenos municípios, alguns grupos que vão dar sustentação política para os partidos em torno do próprio governo do estado.

Quando se fecham escolas do campo, qual a distância que os alunos precisam percorrer para estudar?

Temos realidades distintas, não existe uma média. Mas no Paraná, que é um estado com uma condição razoável, eu conheço comunidades em que os educandos têm que andar 80 quilômetros diariamente para acessar o ensino médio. Claro que tem assentamentos mais próximos ao núcleo urbano mas, ao mesmo tempo, temos esses extremos. Em dia que chove, praticamente não se vai.  E isso se reflete na perda de 40, 60 dias de aula.

Além de minimizar esse sacrifício dos alunos para terem acesso à escola, qual é a importância de existirem escolas no campo, mais próximas da população?

Hoje nós temos uma demanda junto ao MEC de construção de 300 escolas em locais de reforma agrária. É uma pauta já antiga, vencida. Só no estado do Paraná nós temos encaminhada, junto ao MEC e à Secretaria de Educação, a construção de 20 escolas de ensino médio em assentamentos da reforma agrária. Porque a escola acaba, junto com outras instâncias da comunidade camponesa, se constituindo como esse centro cultural da própria comunidade. Então, a escola tem um papel fundamental, que é possibilitar ao jovem, à criança e até ao adulto que não pode frequentar a escola numa idade determinada, um espaço de acesso ao conhecimento. Por isso denunciamos a impossibilidade de nossos educandos frequentarem a escola 40 ou 60 dias em função das chuvas. Pode não resolver de forma total, porque a infraestrutura das escolas do campo tem que ser discutida, mas se a escola está mais próxima, o jovem, a criança e o próprio adulto tem mais condições de acessá-la. Mas junto desse papel da escoa de acesso ao conhecimento produzido, a escola também se constitui como um núcleo de cultura na comunidade. Além de desempenhar o papel de ter aulas, conteúdos curriculares, a escola também vai se constituir como esse espaço de reunião da comunidade, onde outras ações podem ser desenvolvidas no contraturno. Nós temos experiências em nível de Brasil, no Coletivo das Mulheres, o Coletivo da Juventude, cooperativas de assentamento nas comunidades têm na escola esse espaço de unidade da própria comunidade. É importante a gente destacar o papel que a escola tem na nossa sociedade, relacionado ao conhecimento historicamente construído, mas ela tem outra tarefa no campo que é se construir como esse espaço difusor de cultura, que vai para além do conhecimento sistematicamente elaborado a partir dos conteúdos.

O fechamento de escolas atende a que interesses e a que projeto de campo?

Hoje nós vivenciamos no Brasil uma crise financeira e política. E a principal resposta assumida pelas forças que estão na nossa sociedade é esse modelo que a gente chama do agronegócio, um modelo composto pelas grandes multinacionais do agronegócio – Monsanto, Cargyl, Syngenta —, que produzem as sementes e dominam toda a comercialização dos produtos do setor agrícola. Isso se coloca como a grande saída da crise. No Plano Safra 2015, o agronegócio ganhou R$ 180 milhões enquanto a agricultura camponesa familiar recebeu, na política geral, R$ 28 milhões do Estado. Mas se pegarmos os planos Safra anteriores, vemos que o acesso da agricultura camponesa a esses recursos é ainda menor pela condição burocrática. Porque o camponês não tem a estrutura que as grandes empresas e cooperativas do agronegócio têm. Então, nem esse valor tão menor a gente consegue acessar. Essa é uma estrutura da política agrícola no Brasil que vai determinar a expulsão dos camponeses, povos indígenas e quilombolas do campo e vai efetivamente implicar o fechamento das escolas. É esse processo que a gente está denunciando e enfrentando. Mas, ao mesmo tempo, a gente — como MST, como movimento social e até como luta indígena — é a resistência no campo. Fazemos ocupação de terras e, se a gente pega a realidade do Mato Grosso, por exemplo — onde os indígenas têm se colocado no enfrentamento do agronegócio no cerrado, que hoje é o grande espaço de expansão do agronegócio —, vemos que, ao mesmo tempo que a política se torna hegemônica a partir do agronegócio, a população do campo também se coloca no enfrentamento, seja na ocupação de terra – que o MST se coloca como tarefa — seja na resistência na terra que já estão sob o domínio dessas comunidades tradicionais, como é o caso das comunidades indígenas. A escola tem um papel central no sentido de fortalecer a luta dessas comunidades ao mesmo tempo que vai construir a possibilidade de acesso ao conhecimento e fortalecimento da luta.

O MEC sinalizou a criação de um Grupo de Trabalho para discutir a situação das escolas do campo. Como vocês avaliam essa resposta?

O anúncio do MEC é um elemento bastante importante, mas não resolve. Nós temos uma pauta de reivindicações com oito pontos. O primeiro é o investimento de 10% do PIB e dos royalties do Petróleo na educação, o que já foi aprovado mas não se efetivou. O segundo é a certificação das licenciaturas em educação do campo, que estão sendo oferecidas, como fruto da luta dos movimentos sociais, mas que ainda não conseguimos efetivar o reconhecimento do curso para que os egressos possam participar dos concursos, dos processos em seus espaços. O que eu já disse pra ti, a necessidade de construção de 300 novas escolas, apontando também a necessidade de desburocratizar esse processo porque a burocracia tem sido o principal empecilho para a gente acessar isso. Há mais de oito anos a gente tem a pauta de 20 escolas lá no Paraná com o processo todo iniciado junto à Secretaria de Estado da Educação e junto ao MEC mas a gente não consegue de fato implementar essas escolas. E um quarto elemento é o centro de educação infantil que na própria campanha da Dilma colocou como um dos grandes elementos desse novo governo.  Hoje a gente está pleiteando a construção de 100 centros de educação infantil nas áreas de reforma agrária. Um quinto elemento é a implementação de 30 institutos federais, que já foram negociados e acordados nas áreas de assentamento de reforma agrária. No Brasil todo isso já é um acordo firmado, mas não foi implementado. Outro elemento que aqui o Enera traz com bastante ênfase é a criação de um Programa Nacional de Alfabetização de Jovens e Adultos para enfrentar o analfabetismo que se coloca hoje no Brasil. Hoje, 26% da população que mora no campo no Brasil é analfabeta. A gente tem que superar esse analfabetismo e nós do movimento Sem-Terra adotamos o método ‘Sim, Eu Posso’, que já é utilizado nas áreas de reforma agrária e queremos que o MEC se coloque nessa tarefa e assuma isso como o programa de superação do analfabetismo. Um outro elemento, o sétimo então, é um termo de cooperação entre o MEC e o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário], para o fortalecimento do Pronera, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, que é o grande programa que tem possibilitado o acesso das comunidades camponesas e, mais especificamente, dos assentamentos e acampamentos de reforma agrária, ao ensino superior. Hoje, da população jovem que se vincula à reforma agrária, apenas 1% tem conseguido acessar a universidade. O que a gente tem indicado como uma reivindicação é que o MEC se coloque como um parceiro do MDA e do INCRA no fortalecimento do Pronera  e que isso chegue ao conjunto das universidades públicas do Brasil, que se coloque como um política de forma mais efetiva. E o oitavo ponto é um programa de capacitação profissional para os assentamentos de reforma agrária mas que estejam de acordo com a realidade e as especificidades presentes em cada realidade do país e que também se vincule às instituições públicas de ensino. Não queremos a forma do próprio Pronatec Campo, que coloca o Sistema S como seu principal parceiro. Nós queremos que, de fato, tentemos um programa de capacitação profissional, mas que seja vinculado às instituições públicas e às demandas e necessidades postas aí pelos movimentos sociais, as entidades de trabalhadores que se vinculam aos trabalhadores do campo. Então esses oito pontos  se colocam como uma pauta de reivindicação. A divulgação pelo MEC desse Grupo de Trabalho da Educação do Campo é importante, mas só isso não resolve. Nós temos que ter de fato ações concretas e estruturantes.

Comenta-se que, por conta do ajuste fiscal, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que entre outras coisas desenvolve o Pronera, pode ser extinto. Como é que o MST está lidando com esse risco?

A nossa resposta é a resposta de luta. O próprio Enera se coloca no enfrentamento do modelo agrícola que é hegemônico hoje no Brasil e que está levando, por exemplo, ao consumo acelerado de agrotóxicos.  Por isso nós tivemos a ocupação do Ministério da Agricultura e Pecuária. Se isso se efetivar, eu não tenho dúvida de que nós, enquanto movimentos sociais, tanto MST como outros movimentos sociais, vamos fazer uma luta muito fervorosa no sentido de defender essas conquistas —que são poucas mas que concretamente têm nos possibilitado avançar. E o MDA se coloca nesse grande marco de reversão. Comentários a gente ouve muitos, mas isso ainda não se oficializou.  Se de fato o governo federal assumir essa postura, eu nãoi tenho dúvida de que a gente vai fazer o enfrentamento, vai fazer a denúncia. Vamos fazer a crítica ao governo federal, a alguns erros e equívocos que a gente tem divulgado, mas ao mesmo tempo temos que entender que esse governo hoje foi o que nos permitiu algumas conquistas que são fundamentais. O próprio MDA, o Incra e o Pronera se colocam nesse contexto. Então, é uma critica ao processo desencadeado que a gente está vivenciando mas ao mesmo tempo temos que defender essas conquistas que são fundamentais para a gente continuar nesse momento de resistência. De fato é resistir, tentar qualificar as ações que a gente vem desenvolvendo e ampliá-las dentro da conjuntura e da correlação de forças posta na sociedade brasileira.