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Entrevista: 
Gustavo Gindre

'Essa relação promíscua do Estado com empresas privadas fica bem clara nas telecomunicações'

O Supremo Tribunal Federal emitiu na semana passada uma liminar devolvendo o PLC 79/2016, que altera a Lei Geral das Telecomunicações, para discussão no Senado, depois que parlamentares da oposição entraram com ação pedindo que a matéria fosse votada em Plenário. O projeto, aprovado pela Comissão Especial de Desenvolvimento Nacional (CEDN) do Senado, foi encaminhado para sanção do presidente Michel Temer em dezembro, sob protesto de senadores da oposição, que alegaram que o projeto não poderia ser apreciado somente pela CEDN, uma comissão temporária, e deveria ter passado por outras comissões permanentes do Senado. A proposta trouxe vários pontos polêmicos, como o fim do modelo de concessão para outorga dos serviços de telecomunicações, o que na prática possibilitaria uma privatização de um patrimônio que hoje é da União e que, pelo modelo de concessão, teria que ser devolvido ao final do período de outorga, em 2025. O projeto ainda perdoa cerca de R$ 20 bilhões em dívidas das empresas com o poder público. Nesta entrevista, o jornalista Gustavo Gindre, membro do grupo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, e servidor da Agência Nacional de Cinema (Ancine), explica o que está por trás da polêmica envolvendo a proposta de mudanças na Lei Geral de Telecomunicações
Redação - EPSJV/Fiocruz | 14/02/2017 12h16 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Quais os interesses por trás do PLC 76/2016?

É uma situação meio kafkiana. Esse projeto é a tentativa de salvar a Oi, que é uma empresa endividada e sucateada e que não consegue sobreviver nas condições atuais. O marco regulatório das telecomunicações hoje do jeito que está coloca a Oi em uma situação de competição desleal, porque ela compete com empresas que praticamente não têm nenhuma obrigação regulatória. Hoje há um conjunto de empresas operando no setor: a Claro e a Net não têm obrigação nenhuma; a Vivo só tem obrigação no estado de São Paulo; a Algar tem obrigação em cerca de 80 cidades no entorno de Uberlândia e a Sercomtel tem obrigação em duas: Tamarana e Londrina, no Paraná. Todo o resto está sob a responsabilidade da Oi, que é obrigada a garantir o acesso à infraestrutura de telecomunicações em cerca de 5 mil municípios. Em mais de 3 mil municípios a única infraestrutura disponível é da OI, não tem outra. A Oi foi conduzida por uma série de interesses, inclusive dos seus acionistas, para uma situação que se tornou insustentável. Então, no Leblon ela disputa com a América Móvel, com a Vivo, com a Telefônica de Espanha; na TV paga ela disputa com a ATT, que agora é dona da Sky, com gigantes internacionais. E lá no interior do Amazonas só tem ela. Uma empresa ficou com todas as obrigações e disputando mercado onde dá dinheiro. E as outras só disputam mercado onde dá dinheiro.
Desde 2008 pelo menos a sociedade civil alerta que isso iria acontecer. Agora vem esse projeto e diz: então é o seguinte, como a Oi tem obrigação nessas cidades, como é injusto com ela, e como as outras não têm obrigação em lugar nenhum, a gente vai isentar também a Oi de obrigações. Para isso você acaba com o modelo de concessão e transforma em autorização. Acabando com a concessão, acaba com a obrigação de universalização da rede de telecomunicações. Veja o caso da NET, que opera só em cerca de 300 cidades do Brasil. Por quê? Porque os mexicanos olharam para o Brasil e disseram: são essas 300 cidades que dão dinheiro. Só que o Brasil tem cinco mil quinhentos e poucos municípios. Então, se você permitir que todas as empresas operem nessa lógica, vai ser um grande problema.

E o projeto acaba com a obrigação de que o patrimônio da União seja devolvido às empresas ao fim do período de concessão?

Sim. Pelo modelo de concessão, ao final do período de outorga, os bens usados pelas empresas para prestar esse serviço em regime público serão revertidos à União. O problema é que isso gerou uma série de distorções. Primeiro - e aí as teles têm até certa razão quando reclamam - é que uma série de bens que eram importantes para a prestação do serviço deixaram de ser importantes ao longo do caminho. Por exemplo, você tem uma série de prédios que, como você digitalizou as telecomunicações, passou a ocupar muito menos espaço. Então a dúvida é: esses prédios que não são mais utilizados para operação do serviço prestado em regime público têm que ser imediatamente devolvidos ao Estado ou podem ser usados pela operadora? A ideia que se criou é que ok, a operadora pode ficar com eles, pode até vendê-los, desde que esse dinheiro seja revertido para a operação, que é uma coisa dificílima de você comprovar.

Isso é o que os defensores do PLC 79/2016 alegam, que o patrimônio da União teria que ser investido na expansão da rede de telecomunicações. Isso não resolve? 

Pois é, mas o problema é que o TCU diz que esse patrimônio é de R$ 100 bilhões. A Anatel diz que é de R$ 17 bi. A própria Anatel reconhece que durante mais de dez anos não manteve nenhum controle sobre esse patrimônio. Então fica difícil ela aparecer e dizer que não são 100, mas 17. Então, repara que esse cálculo vai ser feito ‘daquele jeito’. Vai ter um problema grande de receita para o poder público. No final das contas o cara vai pagar duas mariolas, três balas Juquinha e vai ficar com essa infraestrutura toda. Aí tem duas questões: o patrimônio móvel tem uma importância menor para o país porque é apenas econômico. Significa você abrir mão de um patrimônio que deveria ser público e vai passar a ser privado. Mas, além disso, tem a questão de que essas redes servem a boa parte do território brasileiro. Além da questão econômica propriamente dita, tem uma questão estratégica. O meu medo é que a gente esteja caminhando para um apagão, para uma situação de precarização.  E aí talvez lá na frente você estatize dizendo ‘ah, esses 3 mil municípios aqui, gente, não tem interessado, então deixa com o Estado esses 3 mil municípios’,  enquanto a iniciativa privada fica com o filé mignon desse negócio.

Tem outro problema: à medida que o processo de convergência tecnológica foi caminhando, ficou cada vez mais difícil separar uma rede que é utilizada para telefone fixo de uma rede que é utilizada para outro serviço. O cabo que chega à sua casa para levar internet é o mesmo cabo que chega para levar telefone fixo. E aí você pergunta: que parte daquele cabo é reversível para a União? Aí, quando chegar 2025 eu vou te devolver um terço de um cabo? Como é que você vai fazer essa separação? Então, do ponto de vista tecnológico seria cada vez mais difícil definir o que é reversível à União e o que não é.

Aí qual é a solução, obviamente, que está se encaminhando? É dizer: ‘olha só, tem um monte de problema, esse negócio era um modelo fracassado mesmo, deu errado, estava errado lá atrás, então vamos fazer o seguinte, a gente passa uma borracha, esquece que é bem reversível e toca a vida. Para a Oi, por exemplo, isso vai ser maravilhoso, porque são milhares de imóveis espalhados no Brasil, acho que são 7 mil e poucos imóveis que ela vai poder alienar.

O projeto também traz uma anistia de dívidas da ordem de R$ 20 bilhões das empresas do setor. É mais um ponto que beneficia a Oi?

Há uma grande operação aí para resolver a dívida da OI, que na prática é impagável: R$ 64 bilhões.  É impagável. Então ai já começa uma série de esquemas. Só que isso não resolve, esses problemas vão aparecer lá na frente. Meu temor é que a com a aprovação desse projeto haja um fatiamento da Oi. No Rio de janeiro, por exemplo, onde poderia ser uma operação lucrativa, a Oi não pode vender porque ela é concessionária, e ninguém vai querer comprar uma concessionária porque tem obrigações. Agora, na hora que não tiver mais obrigações, aí de repente começa a encontrar comprador. E tem outra questão que esse projeto altera que é o limite para a compra de espectro de celular pelas empresas. Por que estão querendo alterar esse limite? Porque isso permitiria às outras operadoras comprar o espectro da Oi. Hoje elas estão no limite da compra de espectro. Aí já levanta suspeita. Se esse limite for alterado resolveria esse problema. Só que os caras que aparecem agora para comprar a Oi são um bando de gente duvidosa.

Você tem hoje, na verdade, uma gigantesca operação para salvar a OI. Aí tem um outro problema: a Oi foi gerida de uma forma extremamente prejudicial para a empresa, embora tenha sido extremamente lucrativo para seus donos.

Como assim?

Por exemplo, um caso bem concreto, não é nem o mais grave, mas é talvez o mais fácil de entender. Você tinha Oi fixa. Aí você começa a ter a Oi celular. A Oi celular não era da Oi fixa, a Oi celular era só dos principais acionistas da Oi fixa. Chega num determinado momento a Oi fixa compra a Oi celular. Imagina que você é o dono de uma empresa que está à venda, só você é dono dessa empresa, mais ninguém, e você é acionista da empresa que está comprando, então daquela empresa que está comprando, o lucro você tem que dividir com outras pessoas. Só que você é o controlador daquela empresa. Na hora de definir o preço da empresa que é só sua, você vai jogar esse preço para baixo ou para cima? Você vai jogar para cima. Porque se eu jogo para cima eu estou comprando a minha própria empresa, esse dinheiro que eu vou receber é só meu, o prejuízo que a outra vai ter eu divido com um monte de gente. Então esse é um dos casos da Oi que mostra como ao longo do tempo uma série de negócios foram extremamente benéficos para os donos da empresa, e extremamente prejudiciais para a empresa. Então a empresa hoje chegou ao momento em que ela realmente é insustentável. Eu não concordo com a conclusão que se tira disso, mas eu concordo com a premissa do governo e dos empresários de que o modelo atual tem que mudar, porque o modelo atual diz para a Oi o seguinte: ela é a concessionária, então ela tem obrigações de colocar a infraestrutura de telecomunicações em todo o Brasil.

A OI sempre teve profundas relações com o Estado brasileiro. Ao longo do tempo, todas as vezes que o mercado quis ele mudou o marco regulatório das telecomunicações. A Oi era gerida pela Andrade Gutierrez, que é uma das maiores financiadoras de campanha, tanto de tucanos quanto do PT, e pelo Carlos Jereissati, que é irmão do Tasso. Então, a Oi desde seu nascimento lá atrás como Telemar sempre teve relações muito próximas com o governo e conseguiu absolutamente tudo - como, por exemplo, o decreto do Lula de 2008 que permitiu à Oi comprar a Brasil Telecom e que está em grande parte da origem dessa situação atual.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) tem apoiado as mudanças propostas à Lei Geral de Telecomunicações pelo PLC 76/2016. Como avalia a atuação da agência reguladora?

Com raras exceções, a Anatel sempre se portou como uma agência capturada. Basta ver o seguinte: no dia em que foi aprovada a lei 12.485, que é a Lei da TV Paga, o presidente da Anatel foi flagrado no restaurante em Brasília comemorando com os presidentes das operadoras. Na Operação Lava a Jato, quando pegaram os celulares da Andrade Gutierrez, eles tinham codinome para tratar com o presidente da Anatel. O [Paulo] Bernardo [ex-ministro das Comunicações do governo Dilma Rousseff] era o Caipirão e o [João Batista] Rezende, ex-presidente da Anatel, era o Caipirinha. Então era Caipirão e o Caipirinha, a dupla que eles tinham lá dentro. Fora a porta giratória, não é? O atual presidente do Conselho de Administração da Vivo era da Anatel, o vice-presidente da Embratel era da Anatel, as grandes consultorias do setor são formadas por ex-diretores da Anatel, o atual diretor de regulação da Globo é ex-diretor da Anatel. Esses caras estavam uma hora na agência reguladora, outra nas empresas que eles regulavam. Para você ver, a Oi deve R$ 11 bilhões em multas à Anatel, nunca pagou. Então que raio de regulação forte é essa, que o sujeito deve R$ 11 bilhões de multas e não paga nunca?

A privatização das teles nos anos 1990 costuma ser apontada como um caso de sucesso. Mas gostaria que você falasse sobre como o Estado têm agido para salvar que depois do processo de privatização não necessariamente conseguiram dar conta, como a OI.

Vale lembrar o seguinte: a penetração de banda larga é baixa. 50% das residências no Brasil não tem banda larga. Nós temos uma penetração de telefone fixo na faixa de 40% da população, que é a mesma penetração de telefone fixo que os Estados Unidos tinha no início dos anos 1950. Nós temos uma penetração de TV paga de 30% da população brasileira, e de banda larga fixa para 50% da população brasileira. Quer dizer, 50% da população está excluída desse processo. Aí todo mundo vem e diz assim: ‘ah, mas tem o celular, celular todo mundo tem’. Mas ninguém fala que 20% só dos celulares são pós-pagos. 80% dos celulares são pré-pagos, sendo que boa parte desses são aqueles famosos ‘pai de santo’, que é o celular que só recebe. Então, quer dizer, é um acesso extremamente limitado. Então até o sucesso desse modelo precisa ser relativizado.

Agora, respondendo a tua pergunta, o Estado tem participação acionária nas empresas de telecomunicações desde o início do processo de privatização, através do BNDESPar, Previ, Petros. O Estado se utiliza dos fundos de pensão das estatais para participar disso.  Depois essa presença vai aumentar lá para frente. Agora, em momento nenhum o Estado assume a gestão. Então, por exemplo, o caso da Telemar-OI, é o mais gritante. O Estado era o maior acionista da Telemar-OI, e por acordo de acionistas o Estado se retira da gestão. Então durante muito tempo os maiores acionistas somados da OI eram BNDES, PREVI e Petros, e quem administrava era a Andrade Gutierrez e o Carlos Jereissati, que não eram os maiores acionistas, mas que inclusive administraram de uma forma tão corrupta, tão incompetente, que deu na crise da OI hoje em dia. Mas o Estado era acionista. Então quer dizer, na verdade o Estado foi utilizado para garantir a gestão privada, isso que é pior.

Então essa relação promíscua do Estado com o processo de privatização fica bem clara nas telecomunicações. Nós copiamos em 1997 o modelo que os Estados Unidos em 1996 reconheceram que deu errado. Até 1981 havia nos Estados Unidos um monopólio privado das telecomunicações, uma única empresa operava em todos os Estados Unidos, que era a AT&T. Em 1981, através de uma decisão da Justiça, os Estados Unidos decidem fatiar essa empresa em partes do seu território, que é exatamente o que nós fizemos aqui na privatização. Mas em 1996 os Estados Unidos aboliram esse modelo porque consideraram que ele deu errado, porque ao criar pequenas empresas regionais você criou empresas fracas. E por que a gente copiou esse modelo? Porque era véspera de eleição, o Fernando Henrique tinha que fazer caixa 2, e tinha que agradar a todo mundo. Então ao fatiar a empresas em vários pedaços, criando Telemar, Brasil Telecom, Telefônica em São Paulo, todo mundo levou seu pedacinho, ficou feliz, foi lá em pingou no caixa 2 da reeleição do Fernando Henrique. Tanto é que o ministro que coordenou a venda era o tesoureiro da campanha do Fernando Henrique, que era o Sergio Mota, que morre no meio do processo. Ele era o cara que estava encarregado tanto de fazer o caixa da campanha do Fernando Henrique, quanto de vender as empresas.