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Entrevista: 
Gastão Wagner

‘Eu defendo que não tem que gastar mais do que tem, só que tem que rever o padrão de gasto público’

Nesta entrevista, Gastão Wagner, sanitarista e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), analisa a falta de prioridade que a saúde teve nos últimos governos, fala sobre as consequências do ajuste fiscal na saúde, defende que, antes de pensar em novas fontes de financiamento, é preciso rever o padrão do gasto público, que só tem beneficiado o grande capital.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/10/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O Ministério da Saúde teve um corte importante no orçamento, em nome do ajuste fiscal, que é apresentado como de curto prazo, para responder à crise. Essa é a principal medida do ajuste que atinge a saúde?

Eu acho que o mais grave, do ponto de vista político, ideológico, de valores, é que o ajuste vem com a ideia de que a responsabilidade do desequilíbrio fiscal e de orçamentário é das políticas sociais, saúde, educação, aposentadoria. E quando algum governante admite que o SUS pode precisar de mais recursos, fala que só com uma nova fonte. E aí há uma reação muito grande da população, da sociedade civil, estimulada pela mídia contra imposto em geral. Eu acho que esse ajuste fiscal está lançando uma cortina sobre o padrão de gasto do orçamento público. Tem dois velamentos sendo produzidos. Um é esse: que o padrão de uso do orçamento público, o gasto excessivo — inclusive ao longo da gestão da Dilma nos últimos cinco anos — foi muito mais com o desenvolvimentismo sem política pública, como eu costumo chamar, um desenvolvimentismo em que os operadores foram as grandes empresas: toda essa coisa de isenção fiscal, isenção da arrecadação previdenciária. O cálculo que os economistas da Unicamp fizeram agora é que na gestão anterior o governo federal deixou de arrecadar ou gastou R$ 550 bilhões repassando a grandes empresas: linha branca, indústria automobilística. Deu uma média de R$ 60 bi por ano, no último ano foram R$ 100 bilhões. Então, se calcula que com despesas da dívida pública mais essas isenções, 7% do PIB foi retirado do orçamento público para o grande setor empresarial – não a pequena propriedade rural, o cabeleireiro. O SUS todo, somando estado, município e União, tem 3,7% do PIB. Eu defendo que não tem que gastar mais do que tem, só que tem que rever o padrão de gasto público, que está sendo investido para os mais ricos, com a justificativa de que isso aceleraria o crescimento econômico. E isso não tem ocorrido. Esse é um ponto que a gente está perdendo nessa discussão do ajuste. Fica no horizonte do povo que o ensino público, o SUS não podem receber mais nenhum recurso porque seria irresponsabilidade fiscal, econômica, administrativa. O segundo ponto que a gente tem que olhar antes de pensar em novas fontes é que a arrecadação de impostos no Brasil é regressiva. Proporcionalmente, os mais pobres, os assalariados pagam mais do que quem vive de renda, de lucro. A gente tem um sistema em que 70% da arrecadação é baseada em imposto sobre mercadoria, produtos industriais, que se distribui entre a população, e não sobre a renda. Em outros países da Europa é exatamente o inverso, a maior parte do imposto é sobre a renda: financeira, do trabalho, industrial, renda do capital, enfim. Eu acho que, na verdade, esse ajuste é uma ferramenta da luta de classes, de disputa da riqueza — no caso, do orçamento público — e, ao mesmo tempo que retira recursos das políticas sociais, ele está concentrando riqueza no setor financeiro, na grande indústria. Esse é o drama político e eu acho que a gente tem dificuldade de conversar isso com a sociedade civil, de falar isso numa linguagem, com uma mensagem que desarmasse essa hipocrisia discursiva, dos economistas e boa parte dos jornalistas.

O SUS é fruto de um momento político de consolidação de direitos, de reconhecimento do papel do Estado na garantia de direitos sociais e de aposta na solidariedade social. Hoje, no entanto, facilmente se denuncia, por exemplo, que a previdência é deficitária, ignorando a parcela do financiamento que vem das contribuições sociais exatamente prevendo o envelhecimento da população, e com isso pede-se reforma da previdência, diminuição dos gastos com saúde e educação. Como essa mudança tão radical se deu?

Primeiro eu acho que é a vitória desse pensamento liberal contemporâneo. Não se criou um discurso único, que é exagero, mas se criou um discurso dominante, de meritocracia, competitividade, um discurso antissolidariedade. A ideia de que o mérito tem que vir não pelos direitos humanos, por ser pessoa humana, mas pela quantidade de trabalho, pelo que sabe fazer melhor, por alguma habilidade atlética na olimpíada, enfim. Um discurso de que tudo é paternalismo. Mas eu atribuiria isso também ao funcionamento concreto das políticas públicas. A distância entre o que está prometido na Constituição para o SUS, a educação pública, a previdência, a segurança pública e a dureza da nossa vida cotidiana, é muito grande. E isso é crônico: são 30 anos construindo o SUS e a gente diz que é uma reforma incompleta. É muito incompleta, fragmentada. Estendeu o acesso, ampliou a facilidade de direitos, vários programas são excelentes, mas o que falta é muito. Isso deslegitima a escola pública, a universidade pública e também o SUS. A gente tem uma resistência interna, eles não conseguiram mudar a Constituição mas impediram a completude do SUS, a radicalidade do direito universal à saúde, da integralidade. A gente não tem uma carreira nacional, o SUS é hiperfragmentado. O SUS não acabou mas se trouxe a lógica do privado para dentro dele. A gente tem problemas de gestão, não pelo gerencialismo, mas a nova Constituição e a nova república, depois com FHC, Lula e Dilma, não fez uma reforma do Estado. As normas do SUS são as mesmas do Estado burocrático dos anos 50, de licitação, contratação de pessoal,  normas que não anularam o patrimonialismo e o clientelismo do Estado brasileiro. Boa parte desse orçamento público que é constituído de forma regressiva, como eu já falei, é reapropriado por corporações privadas que representam a elite do poder político. A relação que essas empreiteiras e outras grandes empresas têm com vereadores, deputados, partidos políticos, consolidou uma apropriação privada do Estado. O Estado privilegia algumas corporações e não a necessidade de saúde ou de educação pública. Eu acho que isso deixa muito a desejar. O SUS não tem sustentabilidade. Cada prefeito, governador ou ministro que entra muda, para, desconstrói. Isso é contraditório porque o SUS que nós temos, esse pedaço que existe, é a nossa grande força, é o que nos salva. Porque prova que é possível, é o que estimula muita gente a lutar, tanto os trabalhadores quanto segmentos da sociedade civil, principalmente os que dependem muito do SUS, usuários, familiares. Mas ao mesmo tempo as pessoas ficam procurando saídas privadas: convênio privado, morar em condomínio, transporte privado... Essa dificuldade que a gente teve com a democratização de juntos criarmos um Estado mais comprometido com as necessidades sociais, menos permeável aos interesses particulares, através de grupos de interesses, de pedaços de partidos políticos, isso levou a população a ter um desrespeito muito grande pelo público. Isso mais o subfinanciamento crônico, o discurso fica crível, de que a saúde pública não funciona. Aí é um prato feito. Parece que tem veracidade.

O movimento sanitário vinha denunciando o subfinanciamento do SUS e lutando pelo aumento dos recursos, desde antes do aperto no ajuste fiscal. Se o dinheiro não dava antes, qual o diagnóstico sobre a sobrevivência do SUS agora?

Isso ainda não foi calculado. A Sonia Fleury tem insistido muito com a Abrasco e o Cebes para que a gente monte grupos de trabalho de epidemiologistas e economistas da saúde para fazer essas estimativas. Porque é concreto, né? Se o dinheiro já não é suficiente, você desativa programa, vai produzir desassistência tanto coletiva quanto do atendimento individual. Mas a gente não fez essa estimativa. Mas é evidente que nós vamos ter uma queda de qualidade. Os gestores procuram fazer cortes nos setores menos ligados ao atendimento direto, cortar comunicação e propaganda e principalmente cortar investimento. Então, o que está faltando não vai ser reposto. O programa Mais Especialistas, da Dilma e o Artur Chioro, apesar de eu ter várias críticas a ele, sumiu. Não está conseguindo pagar o que tem, vai expandir? E a gente tem a volta de alguns problemas de saúde. Com essa precariedade da vida social, essa ausência de defesa das políticas públicas, a gente volta a ter transmissão vertical de Aids, para crianças, quando a gente tinha quase zerado isso no Brasil, apesar de ter um monte de pré-natal; temos crianças nascendo cegas por toxoplasmose; a sífilis neonatal volta. Temos surtos disso. E boa parte fazendo o pré-natal, mas a rede não funciona: alguém identifica mas o tratamento não chega a tempo para a mãe, a maternidade não é avisada, boa parte desses casos são em gestantes mulheres da periferia, muito jovens, que têm articulação com o crime empresarial (o tráfico), então vivem em ambientes muito violentos, em que o território é difícil de ser defendido pela Saúde da Família...  Então é um circuito, entre diminuição da capacidade de atendimento e uma produção social desse tipo de problema gravíssimo. Tem essa guerra, em que só morrem soldados, soldados do tráfico e soldados da polícia — ninguém prende oficial, os empresários do tráfico, do contrabando de armas, que mantêm esses empregados todos estão protegidos. Uma guerra num território contra a juventude, contra os menores de 25 anos dos dois lados. Uma coisa horrível.

As análises menos otimistas apontam tempos de desemprego, perdas de direito e de qualidade de vida para boa parcela da população em função do ajuste. Pela perspectiva do conceito ampliado de saúde e, sobretudo, direcionado pela ideia de determinação social da saúde, é possível prever um impacto maior sobre o sistema de saúde?

O ajuste tem um impacto direto no orçamento, na possibilidade de investimento e manutenção do que já existe e tem também esse outro impacto. O ajuste fiscal foi experimentado na América Latina primeiro, foi para a Europa em 2008 e agora rebate sobre nós outra vez. E lá na Europa foi uma agressão ao Estado de Bem Estar Social, aos direitos. Na verdade, esse ajuste fiscal é um acirramento da luta de classes. O empresariado — capital financeiro, capital industrial — quer se apropriar de uma parte grande da riqueza pública que foi transformada em impostos e em políticas públicas e incorporar diretamente ao capital, sem o clientelismo e o patrimonialismo, sem ter esse trabalho. Então, são políticas muito violentas. Esse livro do Piketty termina dizendo que o ajuste leva uma parte da democracia porque nós somos manipulados mas não somos tontos. A tendência é rejeitar os representantes dessa política mais conservadora e votar no centro, na centro-esquerda, na esquerda, no populismo na América Latina, no neopopulismo na Europa... E tem atritos. Então, eu acho inclusive que a democracia está ameaçada, o emprego está ameaçado e isso tende a acirrar porque os grupos explorados, dominados, que tiveram um contexto melhor, tendem a responder não só com o voto. Estou falando com o voto mas também com muitas outras formas. E para a saúde é terrível porque não tem no horizonte política pública. Como vamos ter política pública de transporte? Como vamos urbanizar as periferias? Como a gente vai afastar essa guerra entre soldados dos dois lados? Isso tudo rebate na saúde. Violência urbana, no trânsito, violência familiar, dependência química cada vez maior. Eu fiz a conferência de abertura da Conferência Estadual de Saúde aí do Rio de Janeiro e disse que tínhamos que ter três propostas para a violência. A primeira é escola até o ensino médio pelo menos seis horas por dia, com atividades várias, esporte. Acho que é fundamental para que os meninos e meninas fiquem mais tempo em instituições humanizadas, em período integral de escola. O segundo é acabar com essa guerra dos soldados, fazer inteligência, prender os oficiais, os empresários do crime, reprimir, cobrar da segurança pública outro tipo de ação e ver se a gente consegue, pela sociedade, dizer não a essa violência. Em alguma medida, é o que o povo da Colômbia conseguiu fazer, depois de muitos anos de sofrimento. E a terceira é retirar a mercadoria do narcotráfico, regulamentar o uso dessas drogas, aí a saúde ajuda, umas mais livres, outras mais restritas. Nas duas primeiras eu fui muito aplaudido, nesta última não fui aplaudido. Hoje eu vi uma pesquisa que dizia que só 7% dos brasileiros são a favor da descriminalização das drogas. Só não é um círculo vicioso porque a política não deixa a gente ter um círculo vicioso nem virtuoso. Não é porque a gente tem essa opressão que não tem resistência a ela. Então quebra o ciclo.

Na saúde, o debate sobre as alternativas ao ajuste tem se concentrado muito na defesa da CPMF. Essa é a principal medida ou o movimento sanitário, e instituições como a Abrasco, têm outras propostas? E quais são as estratégias de pressão previstas?

A principal é aquela primeira que eu falei: rever o padrão de gasto do orçamento público.

E para o imediato?

Isso é imediato. Poderia, em uma lei, suspender toda a isenção fiscal que tem para a classe média pagar o seu médico e o seu dentista. Segundo estudo da Ligia Bahia e do Áquilas [Mendes], isso daria R$ 18 bilhões, R$ 20 bilhões a mais para o SUS por ano. Ou seja, é muito. Então, isso pode ser feito de imediato. Sobre a CPMF, eu não sou economista, mas os economistas progressistas dizem que é uma forma mais progressiva do que regressiva, principalmente se incidir a partir de tal valor de transação financeira. Mas mesmo pegando todas as transações, 80% do valor de todas as transações financeiras são das grandes fortunas. Então é uma forma considerada progressiva de arrecadação, taxando um setor que paga pouco imposto, que é o setor financeiro. Então eu acho que é uma coisa boa, não deveria ter sido tirada. Agora, esse sistema regressivo interessa ao empresariado, ao capital. A CPMF seria uma forma de começar a inverter isso. O maior problema que a gente tem é político: a maioria dos deputados federais são empresários, estão ligados organicamente à concepção conservadora. Vi num jornal — acho que Folha de S. Paulo — uma enquete que mostrava que eles são mais radicalmente liberais — contra a intervenção do Estado — do que a sociedade brasileira. Nós estamos num contexto de representação política difícil, muito pró-ajuste e contras a políticas públicas, contra a constituição de 1988. Minha esperança, e minha aposta, é na sociedade civil. Se a gente ficar falando economês, a gente vai perder essa luta.

Então, quais são as estratégias que Abrasco e outras instituições da sociedade civil ligadas ao campo da saúde têm pensando para reagir a esse momento em que o ajuste se torna mais forte?

No agudo, no pronto-atendimento político, a gente tem agido da forma tradicional, tem feito notas, disputado espaço na mídia, entrevistas, na grande mídia em geral, para disputar esse discurso e apoiar os projetos melhores contra os piores, fazer advocacy, lobby, todas essas coisas, na medida do possível, com intelectuais, advogados. Essa é a forma que eu estou chamando de tradicional, que tem tido pouco efeito. Tem uma concentração tão grande de forças do lado do ajuste fiscal, do ajuste econômico, da desconstrução dos direitos sociais que o efeito dessa nossa forma, digamos, intrainstitucional de atuar tem diminuído. O que a gente está discutindo é repensar a atuação dos movimentos sociais, dos partidos políticos, repensar inclusive na experiência. Vou chamar um nome genérico, mas os movimentos sociais têm tido muita influência da esquerda. A esquerda do século 20, que passou ao século 21, ou adere — é comprada, cooptada, sai do vermelho para o rosa e termina no verde do dólar — ou é muito fundamentalista, muito sectária, cobra demais, tem um discurso pastoral, que exclui, que não gosta de povo também, [que acha que] o povo tem que ser conscientizado. A gente está fazendo uma revisão dessa história, mantendo a ideia dos movimentos sociais, e estamos pensando como o Cebes, Abrasco, as nossas entidades, podem se aproximar da sociedade civil. Aí inclusive a nossa narrativa, nosso discurso tem que mudar: falamos um monte de sigla, um economês, a gente não consegue se comunicar. A gente já conseguiu, o movimento de Aids consegue isso bem, o movimento de saúde mental consegue bem com os familiares, consegue traduzir valores muito abstratos, sofisticados e contemporâneos no dia a dia, no concreto. Então, a gente está fazendo esse esforço de repensar essas entidades. A gente está fazendo um esforço muito grande de garantir para essas entidades autonomia dos partidos políticos, do Estado, das religiões e do governo, da gestão.

Tem um diagnóstico de que elas não são suficientemente autônomas em relação a essas instâncias?

O Cebes e a Abrasco têm uma dependência mas muito pequena. Se a gente pegar o movimento sindical, por exemplo, foi cooptado completamente ou pela situação ou pela oposição, pelos partidos políticos ou pelas empresas; não apostam no movimento social. A gente manteve alguns movimentos sociais — MST, movimentos urbanos por moradia, mesmo os de transporte público — que são muito interessantes, mas têm uma dificuldade de comunicação social muito grande. A diferença foi transformada em valor, quem é diferente não serve. Eu estou criticando a minoria que está do meu lado; não é criticando, é fazendo uma reflexão crítica sobre o que a gente tem que mudar. Temos que repensar o consumismo, repensar que o bem-estar contemporâneo está ligado a ter acesso a bens: quem tem diabetes precisa ter insulina, tem um conjunto [de coisas] que a gente precisa incorporar na cesta básica do ser humano — ter espaço verde na cidade, ter transporte público, a maior parte da população poder chegar à universidade, diminuir a jornada de trabalho. A gente tem que recriar com a sociedade uma agenda que a intelectualidade, as lideranças não sabem. A gente tem que estar aberto a aprender, a gente sabe algumas coisas e quando não sabe tem que defender no que a gente sabe, eu não defendo paralisia. Vamos fazer no tradicional, mas tentando se abrir, se deixar influenciar. Na Abrasco, a gente fez um programa aberto, que afirmou algumas coisas e perguntou um monte de outras. No movimento vamos construir saídas para isso, porque nós mesmos, o movimento sanitário, estamos divididos.

Um das questões que está sendo problematizada no movimento sanitário é a enrascada que os movimentos sociais em geral se encontram depois de quatro governos de um partido de esquerda... Em relação especificamente aos governos do PT, no movimento sanitário, as instituições que você nomeou, Cebes e Abrasco, mantiveram a autonomia?

A Abrasco teve tempo de maior dependência, não necessariamente do Ministério da Saúde, mas da Capes, CNPq, ficou mais grudadinha; o Cebes manteve a independência. Mas ao mesmo tempo tem uma dependência grande. No movimento sanitário, Cebes e Abrasco não são entidades de representação corporativa. É um tipo de movimento bem interessante, se a gente pensar os movimentos sociais. Óbvio que tem que haver a defesa dos trabalhadores, interesse corporativo, mas eu tenho cobrado dos sindicatos que pensem nos desempregados, não só nos metalúrgicos que têm carteira assinada. Inclusive na saúde. Tem uma estreiteza inclusive entre os trabalhadores da saúde. Algumas entidades de saúde — médica, mesmo da enfermagem, psicólogos menos —, que não falam em usuário mais, não falam na ética, na preocupação com a violência. Não falam é exagero, mas falam pouco. Agora, os nossos representantes foram cooptados, não implementaram o SUS. Fracassaram na gestão das cidades, fracassaram igual aos outros, não brigaram com o clientelismo, com o patrimonialismo, pelo contrário, trataram de fazer o mesmo patrimonialismo e clientelismo que os outros fazem. As políticas de centro-esquerda no Brasil foram queimadas porque os nossos representantes, principalmente o PT mas não só, encheram a boca para falar delas mas, se o desenvolvimentismo é esse desastre do governo Dilma, queremos distância dele. Se SUS é isso que fizeram... Achei muito ruim a Dilma trocar o ministro sem discutir saúde, mas se a gente pensar os últimos ministros e secretários estaduais de saúde, eles ficaram todos muito presos a uma dinâmica restritiva de construção do SUS, de manter o copo semivazio, sem enfrentar subfinanciamento, sem enfrentar política de pessoal, fazendo uma privatização cada vez maior e, portanto, gerando um descontrole da gestão, porque com privatização é impossível fazer regulação. Então, foram governos muito ruins, que desmoralizaram a representação, vamos dizer, de esquerda e centro-esquerda, das políticas públicas não só econômicas mas sociais. E os nossos dirigentes queimaram isso.

O ajuste fiscal tem sido alardeado este ano, no início do segundo governo Dilma. Em relação à saúde, é possível fazer um histórico de como os diferentes governos do PT trataram o SUS?

Eu considero que os dois governos Fernando Henrique, os dois governos Lula e a gestão Dilma não piorizaram o SUS. Não melhoraram o financiamento federal, não melhoraram esse problema de gestão, do clientelismo, tiveram programas muito focais, vários deles meritórios. Se fosse prioridade, a gente teria um SUS para 80% dos brasileiros razoável hoje, como a Espanha fez em oito, dez anos, Portugal também. São países menores, mas com menos recursos também. Os países que resolveram fazer reforma sanitária gastaram oito, dez anos. Houve decisão da sociedade civil, dos partidos majoritários da sociedade, dos trabalhadores. Aqui ficou essa coisa chove e não molha: um SUS voltado para pobre, voltado para urgência e emergência, respondendo a epidemias, a crises.