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Entrevista: 
Nelson Cardoso Amaral

‘Existem motivos escusos para se fazer um documento com tantos problemas como esse’

As medidas propostas pelo Banco Mundial para o ensino público brasileiro no relatório ‘Um Ajuste Justo – Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil’ revelam desconhecimento sobre a realidade do país, na medida em que se baseiam em premissas e dados equivocados. Essa é a conclusão do professor Nelson Cardoso Amaral, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG) e especialista em financiamento da educação. Em artigo sobre o relatório, no qual focalizou o capítulo da educação ‘Gastar mais ou melhor? Eficiência e equidade da educação pública’, ele aponta que, ao calcular o gasto por aluno nas universidade públicas, por exemplo, o Banco Mundial considera todos os recursos financeiros aplicados na instituição, dividindo “irresponsavelmente” o total pelo número de matrículas. Ou seja, o cálculo acaba por incluir recursos aplicados em pesquisa, extensão, pagamento de professores e funcionários na ativa e aposentados, além do montante aplicado diretamente em ensino. Nesta entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, Nelson mostra que erros semelhantes aparecem nas orientações sobre a educação básica. Além disso, destaca, muitos dados apresentados simplesmente não têm fonte indicada. “É abuso e irresponsabilidade de análise”, conclui.
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 07/12/2017 12h32 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

‘Gastar mais ou melhor? Eficiência e equidade da educação pública’ dá título ao capítulo que trata da educação pública no relatório do Banco Mundial. Que primeira análise você faz deste capítulo?

Eu fiz uma análise bem detalhada sobre o texto e me impressionou a quantidade de entes conceituais existentes, erros incompreensíveis de uma estrutura como a do Banco Mundial, inferências tiradas a partir de informações equivocadas, outras inferências sem nenhuma referência bibliográfica... A partir daí saem conclusões absurdas e algumas que eu caracterizo até como irresponsáveis.

Uma das conclusões que, no seu artigo, você caracteriza como irresponsável, diz respeito ao fato de o Banco Mundial apontar que a obrigatoriedade constitucional de se gastar 25% das receitas tributárias em educação contribui para que municípios aumentem os gastos por aluno de forma mais acelerada, e que esse gasto adicional nem sempre se traduz em maior aprendizado. Eu queria que você falasse um pouquinho sobre isso.

A análise que o Banco faz é a partir de um cruzamento de dados com metodologias estatísticas. Ele cruza simplesmente o resultado do piso com os valores gastos por aluno, e não leva em conta mais nada. Dá a impressão de que não considera a especificidade da sociedade brasileira, tão desigual, com heterogeneidades regionais imensas, a cultura, a história, ou seja, não leva em conta nada de um país tão diferente e tão especial como é o Brasil. Leva em conta simplesmente a ideia economicista de pegar duas informações e sair tirando conclusões sobre a ineficiência do sistema. E com isso faz análises escalafobéticas, na minha avaliação. Uma delas, por exemplo, é que a educação superior tem 50% de ineficiência. Você pode dizer que existe algum grau de ineficiência, ineficácia etc. Isso existe em toda sociedade. Agora, quantificar isso da forma que foi quantificada nesse relatório é um absurdo, é uma irresponsabilidade. Dizer que tem que tirar 50% do dinheiro das universidades federais porque tem ineficiência é um absurdo tão grande que você vai destruir as instituições. Vai ter que reduzir salários pela metade, vai ter que diminuir aposentados pela metade, vai ter que diminuir custeio, investimento e tal. É um absurdo enorme, é não conhecer o papel que as universidades federais têm no Brasil, na pós-graduação, na extensão, nos hospitais, na cultura, ou seja, realmente é de causar indignação o relatório com esse conteúdo.

Mas, professor, a gente poderia dizer que é desconhecer a realidade ou há um interesse mesmo em diminuir a importância do ensino público no país?

Na minha avaliação é uma mistura de componentes. Claro que tem esse componente também e é um absurdo querer diminuir o tamanho do Estado na educação superior, já que só 25% das matrículas são no setor público. É uma coisa incompreensível. É claro que existe a força do mundo empresarial na disputa dos recursos públicos do país. Essa é a vertente moderna da luta de classes no país. Isso agrada bastante o mundo privado, quando você descaracteriza, desprestigia, comprime o setor público para que ele desenvolva atividades piores. Com isso você, relativamente, melhora o setor privado, mais pessoas que podem pagar querem ir para o setor privado, por exemplo. Essa vertente existe. Agora, se quiseram comprimir o setor público e desprestigiar o setor público, eles erraram na mão, pesaram demais. É um documento que, na minha visão, não tem credibilidade./

Como eles chegam a estes cálculos?

Na educação básica, ele faz o cálculo a partir do resultado do piso e a prova aplicada internacional, feita pelos estudantes. Saem fazendo análise estatística disso daí, não consideram mais nada. Na educação superior, o que fazem é comparação entre o setor público e o setor privado, pegando só o resultado da análise com o dinheiro aplicado. Por exemplo, a imensa maioria das instituições universitárias privadas faz apenas ensino. Aí você quer comparar essas instituições com as universidades públicas que fazem pesquisa, extensão, têm uma parte cultural intensa, fazem articulações internacionais, oferecem pós-graduação em todas as regiões, fazem inovação... Tem os hospitais universitários, fazendas para agronomia e veterinária, orquestras, rádios, TVs... A folha de pagamento das universidades públicas tem os aposentados, a folha das instituições privadas não. Ou seja, tem muita coisa que a universidade federal faz e que eles não levam em conta. Estão comparando laranja com banana e dizendo que a laranja é melhor ou pior que a banana, é mais eficiente. Não existe essa comparação. É um modelo muito primário para uma coisa tão complexa. Na minha análise, não existe um modelo matemático, estatístico, que dê conta de medir isso. Eu desenvolvi ao longo do tempo uma metodologia para tentar responder um pouco a essa questão, retirando o percentual para pesquisa e extensão do dinheiro das universidades. Quando você faz isso, o resultado do valor por aluno é compatível com o da instituição privada. Então, a assertiva que eles fazem não resiste a uma análise mais elaborada tecnicamente.

Esse relatório faz também uma outra comparação, entre os gastos públicos com ensino superior, que seriam regressivos, e os do ensino fundamental e médio, que seriam progressivos. E, a partir dessa comparação, o Banco indica a necessidade de introduzir o pagamento de mensalidade em universidades públicas para as ditas famílias mais ricas e direcionar melhor o acesso ao FIES [Financiamento Estudantil]. Quais são os interesses por trás dessa proposta? Seria o pontapé pra privatização do ensino superior público?

Eu não acredito que seja essa a intenção, de privatizar o ensino superior público: um empresário, por exemplo, comprar a Universidade Federal. No meu entender, é um pouco naquela linha que a gente tinha conversado antes, ou seja, ao comprimir o setor público, você dá mais espaço para o setor privado. Cobrando mensalidade nas universidades federais, você diminui o dinheiro público que deveria vir para a universidade e ele pode ir para o setor privado por meio do FIES, e no final, o dinheiro que entraria para a universidade pública seria o mesmo. Agora, existe essa discussão realmente, sobre o fato de que a educação superior beneficiaria mais os indivíduos do que a sociedade, e a educação básica beneficiaria mais a sociedade do que os indivíduos. Aí depende da visão que a pessoa tem de sociedade. A educação superior é um vetor de diminuição de desigualdades. As cotas, por exemplo, que entraram nas universidades federais, fazendo com que metade dos alunos de cada curso sejam cotistas, ao longo de uma década vão fazer uma diferença enorme na diminuição da desigualdade brasileira.

A gente há de reconhecer que há um interesse em desqualificar o ensino público. Um dos exemplos que você até realça no seu artigo é que o Banco Mundial analisa os dados a partir de 2010, mas fala de uma década. Para falar de uma década, o Banco Mundial deveria contar então a partir de 2006 e não de 2010. Há interesses nesse cálculo que analisa um tempo errado no relatório?

Não sei bem o que fez eles escolherem a partir de 2010, mas a minha hipótese é a seguinte: em 2006 houve uma expansão das universidades federais no interior; em 2007 foi lançado o Reuni, que é aquele programa que dobrou o tamanho das universidades federais. A grande expansão do Reuni foi em 2009, 2008 foi para consolidar os projetos e 2009 foi realmente a expansão. Quando chegou 2010, esse processo já estava no seu ritmo final, então a minha hipótese é essa, eles pegaram 2010 exatamente porque deixaram de considerar toda essa turbulência positiva que aconteceu nas universidades de 2007 a 2009. Essa é minha interpretação. Por isso que eu faço a pergunta e deixo no ar.

Quais são os impactos para a sociedade em geral quando o Banco Mundial apresenta números como esses?

Eu sou físico de origem e fiz doutorado em financiamento da educação. O grande problema é o seguinte: poucas pessoas podem fazer uma análise crítica dos números desse relatório. Poucas pessoas sabem a diferença, por exemplo, entre tributos e impostos, até porque a própria mídia se encarrega de fazer uma confusão. É dito o tempo todo que o Brasil tem muitos impostos, não é verdade, tem muitos tributos. E aí o Banco Mundial vem e faz essa confusão de tributos e impostos também. O Banco Mundial não poderia fazer essa confusão, a vinculação é de impostos, não é de tributos, tributo é imposto, taxa e contribuição. Quando ele diz que a taxa bruta é maior que a taxa líquida, isso é óbvio, claro que a taxa bruta é maior que a taxa líquida! Tanto que a meta 12 do PNE [Plano Nacional de Educação] estabelece que até 2024 a gente tem que atingir 50% da taxa bruta e 33% da taxa líquida. É claro, é do senso comum que o bruto deve ser maior que o líquido. Eu comecei a fazer essa análise quando vi que eles diziam que a execução orçamentária das universidades federais de 1989 para cá foi de 7%. Fiz a conta e deu 4,12%. De onde tiraram esses 7%? Eles não falam. Não tem referência, eles não apresentam a tabela como eu apresento. Essa é a dificuldade de um documento desses, um pouco de propósito. Esses documentos são para causar impacto na sociedade. É assim que o Banco Mundial atua. As manchetes da mídia são todas em cima desses pontos e usam a credibilidade do Banco Mundial para dizer que isso é uma verdade absoluta. Agora, quantas são as mídias que vão pegar, como você está fazendo agora, e querer olhar o que tem em detalhe naquele relatório?

São poucas.

Nenhuma grande mídia deu nenhuma divulgação sobre esses estudos.

Sobre eficiência dos gastos com educação, o Banco Mundial diz que, apesar de os resultados da educação melhorarem, esses resultados permanecem baixos quando se consideraram os gastos. O que o Banco Mundial quer dizer ao afirmar “drástico aumento dos gastos”?

É um pouco o que eu pergunto: onde é que está o drástico? Quando a gente pega a tabela do estudo da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] que eles divulgam, vê lá os valores por aluno aplicado no Brasil e nos países, ou seja, que os valores, de fato, subiram. Esse é um outro erro conceitual que eles cometem: olham o percentual do PIB, não o valor por aluno. Se você pegar os países da África, eles aplicam 8%, 12%, 14%, 10% do PIB deles. Por quê? O PIB é muito pequeno. Então, aqueles gastos com educação significam um bom percentual do PIB mas, quando você faz a conta por aluno, equivale a um valor de US$ 80 dólares, cento e poucos dólares. Como eles olham 6% no Brasil e olham lá 5,3% na média da OCDE, saem dizendo que o Brasil gasta mais que a OCDE. Mas não dizem a conta é sobre o PIB da OCDE, e o número de pessoas dos países da OCDE. É uma análise escandalosa! Não posso usar palavras mais amenas: é abuso e irresponsabilidade de análise.

Nessa mesma linha, professor, o Banco Mundial atribui as altas taxas de reprovação e evasão escolar ao baixo desempenho do sistema educacional brasileiro. O que o Banco Mundial quis dizer com isso? E o que de fato refletem as altas taxas de reprovação e evasão escolar no país?

É aquilo que a gente vem discutindo agora: eles não olham nada, só olham a parte financeira e resultado de prova. Não olham desigualdades, não olham condições das escolas, não olham salário de professor. Outra coisa absurda que eles dizem é que a relação aluno/professor no Brasil é baixa. Aí eu pego a tabela da OCDE e vejo que não tem nada de baixo na relação aluno/professor. Não entendo, fico surpreso com o baixo nível desse estudo. O Banco Mundial teria condições de fazer algo melhor. Então existem motivos escusos para se fazer um documento com tantos problemas como esse.

Inclusive, eles fazem também a crítica aos salários iniciais dos professores do ensino básico, por exemplo, que estariam em linha com níveis internacionais. Como foi feita essa análise?

Pois é, perdi um dia tentando entender. Eles colocam um gráfico lá no estudo deles. Eu fui atrás desse gráfico e lá no estudo da OCDE encontrei a tabela que originou o gráfico. No gráfico, sem a tabela, ninguém consegue ver esses valores em linha. Eles saem tirando conclusões sem explicar de onde eles tiraram. E outro erro conceitual que eles cometem é usar percentual do PIB per capita. Num país muito pobre da África, provavelmente, o mínimo de recursos que eles aplicarem em qualquer escola ruim que tiverem, vai parecer alto se o cálculo for pelo PIB per capita, porque o PIB per capita deles é baixíssimo. Tem que olhar por aluno, aí você tem a ideia perfeita. Um país como o Brasil aplica 3 mil por aluno; os Estados Unidos aplicam 11 mil por aluno. É quase quatro vezes mais. E eles dizem que o Brasil aplica 6% do PIB, enquanto os Estados Unidos aplicam 5,3% do PIB. Você pode querer concluir que o Brasil aplica mais em educação do que os Estados Unidos? É irracional. É claro que lá tem mais aluno do que aqui, mas não é tanto mais assim.

E como essa análise, esse cálculo deveria ser feito?

Você pega o percentual do PIB, pega a população e divide o dinheiro aplicado na educação, não pela população mas por matriculados. Divide o dinheiro por aluno matriculado, que no Brasil dá 3 mil e pouco. Só com o percentual do PIB, você não tem noção, depende do tamanho do PIB, depende da quantidade de gente.

Tem outro dado desse relatório que chama atenção, que é quanto ao número excessivo de professores por aluno no Brasil...

Ele diz que a relação aluno/professor é baixa no Brasil. Eu quero saber qual a fonte dessa referência. Eles não dão. Aí eu vou nos dados da OCDE, olho o que poderia ser a fonte deles - porque eles citam o documento da OCDE o tempo todo -  e vejo que lá a relação brasileira está normal. A média da OCDE é menor que a brasileira. Não tem nada de mais na relação aluno/professor no Brasil, está maior que a de muitos países europeus. O relatório afirma uma coisa, você pergunta de onde é essa informação e não acha. Não é um texto com rigor acadêmico.

Aliás, muitos analistas estão fazendo essa crítica, de que o relatório não diz de onde surgiram as informações e não tem uma metodologia evidente. No seu artigo, você conclui questionando como um organismo internacional como o Banco Mundial pode publicar um documento que se propõe analisar políticas públicas de um país e cometer tantos equívocos conceituais flagrantes. Seria intencional?

Eu enxergaria essa possibilidade. Eu só consigo entender esse relatório com essa qualidade péssima tendo interesses escusos. Eu não conheço os profissionais que elaboraram o projeto, tem o nome lá de muita gente, não sei quais foram os principais responsáveis. É difícil admitir tanta incompetência, tanta ineficiência, ineficácia num grupo de pessoas para elaborar um relatório. Há de se questionar mesmo se existem outros interesses não ditos por trás das análises que são feitas. Na minha avaliação, foi um erro do Banco Mundial se propor a fazer esse tipo de coisa em cima de informações irreais e equivocadas. Só tenho a lamentar.

Você quer destacar algum outro ponto em relação a esse relatório?

Tem uma outra coisa que não está no relatório e que não está em lugar nenhum. Acho que é bom comentar que existe um processo ocorrendo no Brasil relativo à dinâmica populacional. Está estabilizando o tamanho da população e depois deve diminuir, lá para 2040, segundo dados do IBGE. A quantidade de jovens e crianças de 0 a 24 - que são as idades educacionais regulares - está diminuindo drasticamente e rápido no Brasil. Então, alguma coisa na educação tem que ser feita agora na educação para dar mais chances para as pessoas estudarem: melhorar as escolas, melhorar salário dos professores etc. Porque se não, teremos gerações perdidas.

Essas são proposições que estão na contramão do relatório do Banco Mundial?

Estão na contramão. Eles não analisam isso também em lugar nenhum. Só falam isso para dizer que vai diminuindo a quantidade de pessoas e o dinheiro fica sendo um percentual do PIB, um percentual dos impostos - até falam errado, da receita. Então quer dizer que pode diminuir também a vinculação de dinheiro para a educação, como se a educação já estivesse num nível ótimo, o que não é verdade. Essa discussão foi intensa na elaboração do Plano Nacional de Educação. Foi colocado lá o investimento equivalente a 10% do PIB. Para quê? Para aumentar a quantidade de gente que tenha educação no Brasil e melhorar a educação, principalmente a educação básica.

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