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'Não é que estejam dando um golpe midiático, estão seguindo o movimento do grande capital'

Assim como nos protestos que ficaram conhecidos como as Jornadas de Junho, em 2013, os meios de comunicação comerciais ganham, neste momento, um destaque para além da cobertura dos grupos pró e contra impeachment. Os próprios veículos, em especial a Rede Globo, são caracterizados por parte daqueles que estão indo às ruas como atores chave na crise política. Neste cenário, voltam à tona discussões em torno da democratização da mídia e da regulação dos meios de comunicação por parte, inclusive, de figuras como o ex-presidente Lula. Para compreender as limitações desse discurso e as filiações dos grupos de mídia no Brasil, a Poli entrevistou o jornalista Gustavo Gindre, membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação. Servidor da Agência Nacional de Cinema (Ancine), onde é especialista em regulação do audiovisual, Gindre detalha o atrelamento dos grupos de comunicação a um projeto conservador e aponta as contradições do PT ao criticar o papel da mídia no processo do impeachment.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 11/05/2016 08h59 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Os setores contrários ao impeachment da presidente Dilma têm caracterizado este movimento como um golpe e identificando a mídia como um ator chave neste processo como ocorreu em 1964. Na sua opinião está havendo um golpe midiático?

Primeiro precisamos entender o que é essa mídia. O grosso da mídia é incapaz de ter um projeto próprio. Então não é que estejam dando um golpe midiático, estão seguindo o movimento do grande capital. Então, se você pensar na Bandeirantes, no SBT, eles não têm um projeto de médio e longo prazo, apenas administram o dia a dia. Na verdade quando o meio no qual eles se inserem aponta para um determinado local, é para lá que eles vão. A Abril é diferente, não só tem um movimento ideológico ali, como também existe uma questão de sobrevivência pois está à beira da falência. Ou entra um governo que seja muito favorável, que abra os cofres, ou eles vão quebrar. Agora, os únicos grupos que eu acho que têm condições de ter uma visão própria são Globo e Record. A Record porque na verdade o projeto político é o da Igreja Universal, que aderiu ao governo lá atrás e parece que vem se descolando agora. E a Globo é diferente. Até pelo seu porte, que ficou totalmente desproporcional em relação a qualquer outro grupo de comunicação no Brasil. O lucro líquido da Globo é sete vezes maior do que o de todos os outros grandes grupos de comunicação do Brasil somados. E aí ficou muito clara uma mudança de postura. A Globo vinha administrando o que eu chamo de uma batida no fígado: você vai batendo no fígado do sujeito, ele nunca vai cair, mas vai ficando desgastado, cansado, e você acaba vencendo a luta por pontos. Era isso que a Globo vinha fazendo com o governo Dilma até o final do ano passado. Em algum momento entre o final do ano passado e o início deste ano, a Globo mudou de posição e passou abertamente a trabalhar pelo impeachment da Dilma. Eu acho que a Globo estava um pouco reticente por conta do receio que ela tem do Eduardo Cunha, mas em algum momento ela chegou à conclusão de que valia a pena e veio com força. Isso mostra o poder de uma mídia totalmente não regulada que, quando decide, derruba um presidente.

Neste sentido, golpista então?

Sim. Primeiro porque fere a sua natureza, no caso especialmente da televisão aberta, de concessão pública. Aquele canal não pertence à Globo, é publico e pertence a todo mundo. Deveria estar sendo usado para finalidades públicas e não para finalidades privadas, para interesses dos donos da Globo. Eu acho esse governo horroroso, lamentável. Mas o fato é que o impeachment precisa da configuração de um crime praticado pelo Presidente da República. Isso não está configurado até agora. Então, neste caso, é um golpe muito parecido com o que houve no Paraguai e em Honduras, um golpe pelas vias institucionais.

E os outros atores do cenário da comunicação? E os jornais?

A Folha de S. Paulo, embora tenha um verniz de pluralidade — bota lá o [Guilherme] Boulos, o Gregorio Duvivier —, é claramente ligada aos tucanos paulistas e bem especificamente ao Serra, então o projeto dela está muito alicerçado. Quando esses setores resolveram entrar no golpe aí a Folha entrou de cabeça. Por isso que eu digo que esses setores não têm força política e econômica para ter projeto próprio, eles vivem a reboque de setores políticos e econômicos nos quais se escoram. Se pensarmos no que é o capitalismo brasileiro hoje, Folha, Estadão, Bandeirantes e SBT são grupos econômicos pequenos.

É possível estabelecer um paralelo entre a deposição do João Goulart e esse momento agora em relação ao comportamento da imprensa?

São momentos históricos bem diferentes. O paralelo possível é dizer que a imprensa no Brasil tem um viés de classe muito claro, defende determinados valores que são conservadores, não tem nenhum apreço pela democracia. Zero. E age completamente ao arrepio de qualquer regulação, qualquer tentativa de regulação democrática. Quando a situação econômica vai bem, isso fica relativamente minimizado. Na medida em que houver interesse, essa mídia vai se revelar golpista, vai se revelar defensora do atraso. É um cenário diferente de 1964, mas, por outro lado, a mídia continua a mesma. São quase os mesmos donos, capitanias hereditárias que vão passando ao longo do tempo. E o lamentável é que a gente não avançou nada para revirar isso.

Como o PT se portou nestes 13 anos em que esteve no governo em relação a este tema?

Foi uma tragédia. Tentou avançar um pouco no início com um projeto da Ancinav, mas a Globo barrou. Era a tentativa de transformar a Ancine em uma agência reguladora do audiovisual. Foi uma proposta da gestão Gilberto Gil [no Ministério da Cultura] logo no início do governo Lula. Na verdade era um projeto tímido, avançava pouco. Mas isso já mostra duas coisas bem claras. Primeiro: a mídia não aceita nenhum tipo de regulação. Mesmo aquela tímida, embrionária. Segundo: mostra como o governo nunca teve interesse de bancar essa briga de fato. Era um governo em início de mandato, forte, capaz de comprar determinadas brigas e bastou a Globo dizer ‘não quero’ que o governo retirou o tema da pauta. Depois teve a TV digital, que também chegou a avançar em algumas coisas. Mas aí veio o mensalão, o governo se enfraqueceu e negociou com a Globo a indicação do Hélio Costa para Ministro das Comunicações, que enterrou qualquer projeto que tivesse capacidade de mudar o cenário. Só volta a ficar com alguma perspectiva ali no final do segundo mandato do Lula, quando você tem uma série de fatos que sinalizavam que poderia mudar alguma coisa, como a criação da EBC [Empresa Brasil de Comunicação], a recriação da Telebrás, a realização da Conferência Nacional de Comunicação, o programa Computador para Todos, Banda Larga para Todos. E tem um grupo de trabalho que o Franklin Martins criou que supostamente fez um projeto de regulamentação. Todo mundo fala nesse projeto, mas ninguém nunca viu para dizer se ele é bom, se é ruim. Tudo isso foi rapidamente por água abaixo. Não se avançou nada em termos de regulação do audiovisual, a Anatel continuou sendo uma agência totalmente capturada pelos interesses das operadoras de telecomunicações; a Telebras foi tendo as pernas quebradas, progressivamente, e hoje ela é uma pálida sombra do que deveria ter sido; a EBC se manteve uma emissora sempre paraestatal; e a Conferência Nacional de Comunicação aprovou 600 propostas e nenhuma foi implementada. Jamais houve uma segunda Conferência. A gestão do Paulo Bernardo, que é a primeira gestão de um petista no Ministério das Comunicações, foi provavelmente a mais subserviente aos interesses das operadoras de telecomunicações até agora. Então esse governo é uma tragédia. Foi uma oportunidade histórica, uma janela que se abriu e que esse governo simplesmente jogou no lixo. Agora também é claro que o governo vai criticar a mídia, dizer que tem que regular as comunicações. Mas onde ele estava nos últimos 13 anos?

Então você não acredita que isso possa se efetivar em um eventual cenário de pós-impeachment, caso o governo se mantenha, ou em um eventual governo Lula em 2018?

Não, jamais. O pós-impeachment, se a Dilma sobrevive - o que eu acho hoje praticamente impossível –, vai ser um governo enfraquecido, totalmente sem iniciativa. O Lula deu certo porque ele propôs um pacto de ganha-ganha onde o andar de cima ganhava e o andar de baixo ganhava. Isso só foi possível em uma conjuntura muito específica. O empresariado ficou satisfeito, as camadas mais pobres ficaram satisfeitas. Isso morre em 2008. Se Lula voltar em 2018 será em um cenário de crise econômica e ele vai ter que optar se agrada uns ou outros. Eu não o vejo com disposição de comprar esse tipo de briga. Eu acho que o que vamos ver são ajustes bancados pela própria situação de mercado. Vamos ver a Oi quebrar, o mercado de telecomunicações se concentrar muito mais, vamos ver a TV aberta começar a perder importância. Vamos ver uma entrada ainda maior de grandes grupos estrangeiros, como Netflix, Google, que vão se tornar empresas fundamentais no mercado de comunicação no Brasil. A Abril vai desaparecer, a RBS está aí lutando para não falir. O Estadão é outro candidatíssimo a quebrar. O grupo O Dia aqui no Rio já é quase nada. O mercado vai caminhar para isso. Duvido muito que o governo tenha algum projeto para isso.

Esse cenário traz alguma possibilidade de avanço na democratização da comunicação ou é exatamente o contrário?

O crescimento da internet sempre traz junto uma potencialidade mais democrática. Com a possibilidade das pessoas se expressarem mais livremente, você já começa a ver a construção de algumas experiências super embrionárias de audiovisual, debates, como o Conexão Havana, mas é só uma pontinha do iceberg de audiovisual. Sempre é positivo, mas isso ainda é uma coisa de nicho. Outra coisa também é que o governo não teve nenhuma vontade de estimular o surgimento de grupos de comunicação alternativos, pelo contrário. A única herança do governo do PT em termos de comunicação é o que eu chamo dessa blogosfera marrom. Embora a internet tenha uma potência mais democrática, eu acho que a gente subutiliza esse potencial.

Você citou há pouco o que caracterizou como frágeis avanços: a EBC, a 1ª Conferência de Comunicação. Houve também a iniciativa de pontos de mídia livre implementada pelo Gilberto Gil quando estava à frente do Ministério da Cultura. Por que isso não andou?

Eu acho que temos situações que são mais ou menos transversais. A falta de vontade e a incompreen-são do governo, a incapacidade de gestão, porque isso é uma coisa que aparece pouco na discussão. A máquina administrativa é muito débil, muito fraca, incompetente, com poucos quadros, com pouca informação disponível para agir. Por exemplo: ficou claro que a gestão do Gil teve enormes avanços. Ele é o primeiro que coloca o Ministério da Cultura no mapa político brasileiro. No caso do Ministério da Cultura, eu acho que em parte é falta de grana, e em parte falta de capacidade administrativa para tocar as próprias propostas que eles foram desenvolvendo. No caso da EBC, eu acho que tem aí também uma visão do governo que sempre a viu como uma emissora estatal, que jamais entendeu a importância de você ter uma emissora pública. Você vê agora o último presidente da EBC, o Américo [Martins]: é claro que não foi só isso, mas o estopim do pedido de demissão dele foi porque o ministro da Secom liga dizendo que ele tem que transmitir um jogo da segunda divisão do campeonato paulista, um jogo específico de Araraquara porque o ministro é de Araraquara. É surreal o nível de intervenção.

Falando sobre o peso da internet na disputa das ideias, as redes sociais e outras ferramentas de comunicação ameaçam essa hegemonia dos empresários da mídia?

Eu acho que com certeza há um elemento novo, que trouxe uma complicação na formação da opinião pública porque os grandes meios de comunicação já não são mais senhores absolutos disso. Nós não estaríamos tendo metade do processo de debate que a gente tem hoje, inclusive com organização contra o golpe e tudo, sem a internet e redes sociais. Por outro lado, eu acho que tem alguns complicadores nisso. Primeiro porque você pode dizer que mesmo na hora de criticar, a referência ainda é a grande imprensa. A gente continua citando artigo da grande imprensa, publicando o que o jornal falou, porque uma coisa é o sujeito na rede social compartilhando, outra coisa é você produzir informação, que é uma coisa cara. Precisa fazer jornalismo. Gerar informação ainda é um privilégio quase absoluto da grande imprensa. Isso é uma coisa. A outra coisa, especificamente sobre o Facebook, que é hoje hegemônico, é que ele tem esse mecanismo de bolha que é complicado. Porque você só vê mais do mesmo, as pessoas vão se tornando cada vez mais convictas das suas opiniões, cada vez mais irritadas com as opiniões alheias.

Nesse contexto também nós temos observado o crescimento de uma postura conservadora e que se expressa não apenas contra o PT, mas contra a esquerda com muita desinformação e, inclusive, violência, como os episódios de achincalhamento de pessoas vestidas de vermelho. Além do próprio desgaste do governo e do PT pelos erros que cometeu, como localizar a mídia nesse processo?

Eu ainda tenho dúvidas se aumentou o conservadorismo ou se o conservadorismo saiu do armário. A sociedade brasileira sempre foi muito conservadora. A diferença que eu acho é que antes, até porque se vivia um ambiente de saída da ditadura, o conservador tinha dificuldade de se expressar politicamente publicamente. O cara não ia bater no peito e defender o Bolsonaro assim tão explicitamente porque ele ficava constrangido, embora lá no fundo ele pensasse que tem que dar porrada em gay, que comunista é perigoso. Então eu não sei sinceramente se aumentou ou se esse cara “saiu do armário” e resolveu se assumir. Mas com certeza tem uma mudança. Esse ‘centrão’ da vida social brasileira hoje foi para a direita. E a mídia teve um papel fundamental na construção desse zeitgeist, a expressão alemã para o espírito da época. Hoje o espírito claramente é conservador, senão reacionário. E eu acho que a mídia tem uma enorme responsabilidade na construção disso. Desde a mídia de extrema-direita tipo o esgoto que virou a Veja, até Folha de S. Paulo. É completamente irresponsável por parte da grande imprensa dar espaço para figuras como Olavo de Carvalho, Kim Kataguiri, Luiz Felipe Pondé, que não têm nada para acrescentar, a não ser destilarem ódio. Eu fui à  manifestação do dia 13 de fevereiro, fiquei um tempinho lá para ver o ambiente e depois peguei o metrô junto com esse pessoal todo que estava saindo da manifestação. Fiquei assustado. Era um ambiente protofascista. Mas não temos ainda as grandes lideranças que o fascismo requer. Não tem ninguém capaz de juntar esse pessoal todo numa liderança fascista. Mas claramente a bola está quicando na área. Eu vi um sujeito falando alto no metrô num grupo de jovens, que ele ia andar com soco inglês para bater em petista. E as pessoas rindo. Isso é assustador. A mídia tem uma enorme responsabilidade de ter criado esse ambiente de ódio.