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Entrevista: 
Ana Paula Guljor

'Não vamos aceitar retrocesso na Reforma Psiquiátrica'

Esse Dia Nacional da Luta Antimanicomial, comemorado em 18 de maio, tem um significado diferente para a militância da Saúde Mental. Em meio a um contexto cada vez mais sombrio para o Sistema Único de Saúde (SUS), a Reforma Psiquiátrica tem muito a comemorar. Saindo de um ciclo de lutas que teve como maior símbolo a ocupação do prédio do Ministério da Saúde por nada menos que 123 dias, trabalhadores, estudantes, usuários e gestores deram uma demonstração de força de mobilização e articulação. Nesta entrevista, Ana Paula Guljor, representante da Frente em Defesa do SUS e da Reforma Psiquiátrica do Rio de Janeiro, faz um balanço da ocupação que surgiu como ação radical de protesto contra a nomeação de Valencius Wurch Duarte Filho para a Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério, feita pelo ex-ministro da Saúde, Marcelo Castro (PMDB), um quadro identificado com o asilamento e o setor privado. Ana Paula, que foi membro do Grupo de Alinhamento Político que surgiu no contexto da ocupação reunindo entidades como a Rede Nacional de Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Conselho Federal de Psicologia, dentre outras, também analisa como a mobilização rearticulou a militância em novas bases: “Seria uma ilusão achar que o fato de nós tirarmos um coordenador de Saúde Mental resolveria a questão da Reforma Psiquiátrica. O que está colocado é o impasse da sociedade que nós queremos. A Reforma Sanitária e, na sequência, a Reforma Psiquiátrica, como dizia o [Sergio] Arouca, são projetos civilizatórios. E isso só acontece na disputa na rua, nas ocupações, na sociedade civil”.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 18/05/2016 11h22 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Como foi construída a estratégia da ocupação da sala da Coordenação de Saúde Mental no Ministério da Saúde como forma de resistência à indicação de Valencius Wurch?

A ocupação surge da indignação e da necessidade de uma intervenção radical de protesto. No dia da nomeação do Valencius, 14 de dezembro, militantes de vários estados realizaram um grande protesto em Brasília. E o protesto resolve entrar no prédio do Ministério da Saúde como forma de garantir que naquela cadeira ele [Valencius] não sentaria porque todo o movimento não o reconhecia como legítimo para ocupar aquele espaço. Não foi planejado. Mas a ocupação não era a direção do movimento. A ocupação era a ação simbólica e funcionava como polo aglutinador de uma intervenção que era nacional, compreendida pelos militantes como ação coletiva.

Como foi a mobilização que redundou na ocupação do prédio do Ministério da Saúde?

Esses movimentos e entidades – como Abrasme, Renila, Luta Antimanicomial, Abrasco, Cebes, Conselho Federal de Psicologia – já vinham atuando desde a nomeação do ministro Marcelo Castro. Primeiro através do Facebook, em uma página chamada “pedido de audiência”. Isso evolui para um grupo de alinhamento político que tem reuniões presenciais, por telefone ou Skype. Naquele momento, esse grupo consegue reunir quase 600 movimentos para subscrever esse pedido de audiência. Essa foi uma batalha que durou quase um mês. Quando finalmente o Marcelo Castro recebe o movimento no dia 10 de novembro, dá a notícia de que o novo coordenador seria o Valencius. Isso desencadeia uma série de ações e articulações já na semana seguinte. No Rio de janeiro – onde 80 entidades subscreveram o pedido de audiência – conseguimos fazer um ato na segunda-feira, de onde tiramos metas. Entre elas, que faríamos pressão na Alerj, onde uma reunião com o presidente da Assembleia foi realizada na terça. O Picciani não se posiciona, mas afirma que vai fazer uma discussão ampla e que vai convidar o Valencius para fazer sua defesa em uma audiência pública, que acontece na sexta.

A ocupação teve um fôlego bastante grande, durou quatro meses. Quais foram as estratégias para manter a ocupação?

Foram 123 dias de ocupação e a saída só se deu a partir da reintegração de posse à força. Mas a disposição do movimento era resistir até a reversão da situação colocada. Todos esses movimentos e entidades atuaram no sentido de garantir a permanência da ocupação pelo tempo que fosse necessário. Tínhamos comissões que cuidavam desde a garantia de passagens e alimentação, até pensar em formas de garantir a manutenção da ocupação, com a circulação da militância nesse espaço, com dirigentes, gestores, trabalhadores, estudantes, usuários sempre. Isso era sustentado pelas entidades do movimento. Em nenhum momento foi sustentado por subvenção pública.

Havia um revezamento organizado?

Havia revezamento de pessoas porque era quase um Big Brother ficar ali dentro, fechado durante tanto tempo. Então militantes de vários estados ocupavam por um determinado período e esse revezamento ia se dando para garantir a saúde mental das pessoas lá dentro. Também tinham intervenções no próprio Ministério. Eram diárias as manifestações da janela do Valencius, a distribuição das posições do movimento, panfletagem com diálogo sobre os avanços conquistados, os retrocessos, adesivos distribuídos para os funcionários do ministério. Quando a ocupação foi retirada à força, saiu de lá aplaudida por esses funcionários.

Como a ocupação inviabilizou o trabalho do Valencius e da equipe dele?

Primeiro, é importante dizer que a gente preservou todos os materiais, computadores. Todos os dias a sala era fotografada e tínhamos uma lista de tudo que havia na sala para evitar que viessem a nos acusar de depredar o patrimônio. A equipe da Coordenação foi trabalhar em outros locais. E obviamente isso levava a um funcionamento muito precário do processo de condução de uma política nacional. E a ideia era essa. Mas mesmo na outra sala, no subsolo, surgem ações como o financiamento de um hospital na cidade do interior do Piauí que era a base eleitoral do Marcelo Castro, o afastamento de funcionários – um deles, inclusive, responsável direto pelo fechamento do hospital psiquiátrico de Barbacena. E daí vai.

Afastamento de cargo comissionado?

Disponibilização de servidor, nesse nível. Alguns bolsistas – um número relevante da coordenação era de bolsistas – foram demitidos e outros não deram conta de compactuar com o que estava acontecendo e pediram o afastamento.

O que vocês mais temiam, que era uma inflexão na política ou um desfinanciamento do que está em curso, não aconteceu?

Não foi possível efetivar o retrocesso proposto. Mas desde a posse do Marcelo Castro ele anunciava que havia habilitado 142 CAPs, mas acompanhando o Diário Oficial da União, durante todo o período não há habilitação de nenhum novo CAPs.

A ocupação só termina por determinação da ordem judicial. Houve ação ostensiva por parte da polícia?

Pedida pela AGU, autorizada pelo juiz e feita pela Polícia Federal que chega com o circo montado: carro com sirene, homens armados, com a truculência que lhe é peculiar, empunhando com armas para lidar com trabalhador, estudante, usuário do SUS. Tudo bem típico desses tempos sombrios que estamos vivendo. A gente já tinha uma articulação com advogados que estavam preparados, tínhamos uma retaguarda da própria Associação dos Juízes pela Democracia, que apoiava o movimento. E quando a reintegração acontece, o advogado foi acionado de imediato. Até porque a gente sabe que uma reintegração pode se desdobrar em um processo. Hoje a gente está às voltas com a solicitação do arquivamento desse processo já que não houve dano ao patrimônio, era uma reivindicação legítima por direitos garantidos constitucionalmente. O processo também é acéfalo já que o réu também é inexistente, já que não existe CPF ou CNPJ de movimento social, no caso, a Renila [Rede Nacional de Internúcleos da Luta Antimanicomial].

A partir da ocupação existe, na sua avaliação, um sentido de resgate ou rearticulação que apresentou novas bases de mobilização para a militância da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial?

Manter a ocupação em nome de uma causa bastante concreta teve um valor e um simbolismo importantes para toda a militância a nível nacional. Isso se desdobrou na possibilidade de organização. O grande fruto foi o ressurgimento de um movimento que, no decorrer desses 123 dias, teve condições de se organizar em vários coletivos, núcleos, grupos, frentes estaduais, locais. Para se ter uma ideia, na semana passada, foi criada uma Frente pela Reforma e Luta Antimanicomial em Curitiba, com 100 pessoas organizadas. São usuários, familiares. Isso no Paraná, um estado conservador. No Rio, já tínhamos várias organizações que funcionavam, mas ganharam força e militância. Então, no campo da mobilização, você tem esse potencial organizativo e também uma politização da discussão. Nessa conjuntura, a gente conseguiu avançar para uma discussão onde Reforma Psiquiátrica é saúde e saúde é democracia. As lutas não estão descoladas. A luta pela garantia do SUS está estreitamente ligada à garantia do Estado democrático de direito, às bandeiras sociais e à luta contra a desigualdade. A gente avança de uma discussão dos trabalhadores restrita a uma questão salarial ou de contratação – que está colocada, mas como parte de uma luta mais ampla – e consegue politizar.

O que está colocado é o impasse da sociedade que nós queremos. A Reforma Sanitária e, na sequência, a Reforma Psiquiátrica, como dizia o [Sergio] Arouca, são projetos civilizatórios. E isso só acontece na disputa na rua, nas ocupações, na sociedade civil.

A partir da ocupação também surgiram novos espaços institucionais de luta pela Reforma Psiquiátrica. Poderia falar um pouco sobre eles?

Existia há bastante tempo no Conselho Nacional de Saúde uma Comissão Intersetorial de Saúde Mental, mas que não se reunia há três anos. Ela foi empossada novamente no dia 6 de março com o papel de propor, deliberar, fiscalizar as políticas públicas de saúde mental. Inclusive com o poder de convocação do ministro, através do Conselho. Em paralelo, no Congresso, se consegue aglutinar um grupo de deputados que lançam uma Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial na Câmara dos Deputados, que também pode fiscalizar, tem o poder de executar diligências, solicitar audiências públicas, convocar membros do Executivo. E é hoje um instrumento importante. Por exemplo, o plano de trabalho dessa Frente prevê criação de uma Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos nos hospitais psiquiátricos, nos moldes do que foi a Comissão da Verdade para a ditadura. Hoje se percebe que a estratégia de fechamento dos hospitais psiquiátricos – que é uma das diretrizes fundantes da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial – precisa avançar para enfrentar instituições que cumprem a mesma função em nova roupagem, como as comunidades terapêuticas. Então garantir a existência de uma Comissão da Verdade que apure e denuncie os crimes que acontecem em espaços de asilamento é determinante.

Fora isso, hoje existe uma quantidade significativa de iniciativas parlamentares ultraconservadoras. São projetos de leis visando fortalecer internações compulsórias, destinação de verbas para comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, retirada de direitos dos usuários. E essa Frente também pode acompanhar esses projetos, pode solicitar que sejam apreciados por ela, pode promover o debate público, garantir a publicização desses projetos para facilitar a mobilização visando barrar a aprovação.

No bojo da Frente Parlamentar nacional, também se conseguiu estruturar a Frente Parlamentar no Rio Grande do Sul e amanhã [18/05] vamos lançar a Frente Parlamentar no Rio de Janeiro, que também será uma ferramenta de fiscalização, proposição, denúncias, acompanhamento. Uma forma que a gente tem de garantir os direitos que já foram conquistados e buscar todo o avanço possível.

Em relação à exoneração do Valencius Wurch, publicada no dia 6 de maio e assinada pelo então ministro da Saúde interino, José Agenor Álvares, muitos consideraram uma vitória do movimento, da ocupação. Essa exoneração acontece no contexto imediatamente anterior à votação do impeachment pelo Senado. Gostaria que você comentasse isso à luz daquele cenário político das últimas semanas antes do afastamento, quando os ministros do PMDB saem efetivamente, entre eles, Marcelo Castro, quando o governo acena para os movimentos sociais e a militância com ações como, por exemplo, demarcações de terras indígenas há anos paradas, no sentido de angariar o apoio dessa base social.

Todo processo político, mesmo no campo setorial, é complexo, multifacetado, multicausal. A gente entende que esse contexto breve – mas que favoreceu de uma forma importante a exoneração do Valencius – é desdobramento daquele outro contexto da nomeação. Ou seja, o de um governo em busca de alianças para sustentabilidade de mandato que gerou a assunção de um ministro conservador como forma de barrar o impeachment. Foi esse cenário que garantiu a Marcelo Castro a possibilidade de nomear um homem da sua confiança, da sua amizade pessoal, e que ele ficasse por um certo tempo blindado. Ao mesmo tempo, nesse processo de saída de Castro, assume um ministro interino que tem uma trajetória na própria Reforma Sanitária [José Agenor]. Ele já estava na assessoria de Castro, mas já tinha sido ministro da Saúde com grandes avanços na Reforma Psiquiátrica, assinou portarias importantes. Então esses dois contextos gerais, óbvio, têm influência também.

Mas essa mobilização nacional não foi apenas uma mobilização de usuários, de gestores, de trabalhadores. Não. A Reforma Psiquiátrica tem um desenho onde os diversos componentes do setor público se imbricam: parlamentares, usuários, intelectuais, gestores, trabalhadores, até acesso à mídia, que é sempre difícil, a rua. Isso minava essa figura simbólica de um coordenador de Saúde Mental com uma história completamente avessa ao que por três décadas se lutou, que era a transformação de um modelo.

Então você já tinha uma pessoa de perfil extremamente conservador, que havia sido diretor de um hospital psiquiátrico fechado graças a uma intervenção a partir da violação de direitos humanos ali praticada, e esse mote permitiu que durante todo esse tempo – desde a indicação do Valencius, passando pela sua nomeação, até o momento final –, a fragilidade fosse exposta. Na mudança de uma conjuntura esse seria um processo quase que natural, de retirada de uma pessoa cujo ônus era muito maior do que o bônus, já que ele estava ali por relações pessoais. Não era nem por conta da qualificação técnica que poderia justificar mesmo em um quadro conservador. Não era só disputa de uma posição ou lógica da Reforma, mas havia uma completa incoerência da qualificação de Valencius para exercer um cargo na gestão federal em uma área complexa como a Saúde Mental.

A qualificação técnica para exercer os cargos públicos parece estar sendo deixada de lado para a indicação de nomes notadamente vinculados ao setor privado, como era Valencius, como parece ser o caso do novo ministro da Saúde interino, Ricardo Barros, que ontem mesmo afirmou em entrevista à Folha de S. Paulo que o SUS precisa ser redimensionado – sendo Barros um engenheiro sem histórico da gestão da saúde, cujo principal doador de campanha foi um plano de saúde.  Como você avalia o fôlego de se mobilizar nessa nova encruzilhada, em um cenário que parece ser ainda mais grave e obscuro para o SUS?

Esse processo mais intenso de mobilização teve um ganho significativo que foi a politização. A questão não era só o Valencius. Acima dele [na hierarquia do Ministério da Saúde] você tinha o Maurício Viana, o Alberto Beltrame, que era um representante das comunidades terapêuticas, ele sim, qualificado, mas dentro de uma lógica conservadora, do Estado mínimo. Mas como a politização de seu, a partir daí a discussão não se restringia à saída do Valencius. O ‘Fora Valencius’ era o simbólico, mas que trazia uma organização do controle social na garantia de um espaço de disputa desse movimento social na pressão do governo para implementação das políticas. Porque a gente tem clareza que a Reforma Psiquiátrica não é dada pelos gestores, pela gestão central. Ela é fruto de mobilização, de pressão, de conquista. Como a Reforma Sanitária. Elas estão articuladas. E essa luta, hoje, pela garantia do SUS é a luta pela garantia também da Reforma Psiquiátrica. E nos diversos espaços, sejam institucionais como frentes e comissão, seja nas ruas, essa militância continua. Já se tinha uma análise que conjuntura seria longa. Uma briga que já vem desde a Constituição de disputa por um projeto de sociedade. Seria uma ilusão achar que o fato de nós tirarmos um coordenador de Saúde Mental resolveria a questão da Reforma Psiquiátrica. O que está colocado é o impasse da sociedade que nós queremos. A Reforma Sanitária e, na sequência, a Reforma Psiquiátrica, como dizia o [Sergio] Arouca, são projetos civilizatórios. E isso só acontece na disputa na rua, nas ocupações, na sociedade civil. Se por um lado o cenário é sombrio, a rudeza desse golpe faz com que a militância se fortaleça. É um momento difícil, mas também é o momento em que a militância comprometida com a transformação social se fortalece. Porque na luta a gente se fortalece.

Vocês caracterizam esse momento como um golpe? Vocês vão se endereçar ao ministro e ao governo interino ou estão mais na posição de não reconhecer o governo como legítimo?

Não posso falar em nome de um movimento nacional, mas em nome dos grupos com os quais a gente tem consenso e algumas pactuações. Não se trata de reconhecer como legítimo, mas de buscar espaços de diálogo no sentido de demarcar uma posição sobre as demandas que esse movimento, que a sociedade civil organizada tem e vão se configurar na luta pela garantia desses direitos. Em um processo democrático, você precisa ter espaços de interlocução. Entendendo que esses espaços de interlocução não são espaços de consenso ou submetimento. Da mesma forma que dizíamos que não negociaríamos enquanto o Valencius não fosse deposto, a gente entende que, nesse momento, esse governo golpista não tem legitimidade para implantar essas políticas de Estado mínimo que estão na pauta diária nos jornais. Essa política não nos representa e nós não vamos aceitar. Mas é claro que vamos nos endereçar para marcar essa posição clara. Nós não vamos aceitar retrocesso na Reforma Psiquiátrica. Seja com que governo for.