Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Sara Granemann

'O destino dos trabalhadores na velhice tem de ser protegido da lógica devastadora da especulação e busca de lucros dos capitais'

Nesta entrevista, a professora da Escola de Serviço Social da UFRJ fala sobre as mudanças trazidas pelas mudanças no cálculo da aposentadoria com a fórmula 85/95, aprovada pelo Congresso no início de outubro.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 23/10/2015 13h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 Arquivo pessoalAprovada no início deste mês pelo Congresso Nacional, a Medida Provisória 676/2015 instituiu uma nova regra para o cálculo das aposentadorias no Regime Geral da Previdência Social, em alternativa ao fator previdenciário, criado no bojo da contrarreforma da Previdência iniciada pelo governo Fernando Henrique Cardoso em 1999. A MP foi apresentada ao Congresso pelo Executivo como forma de evitar a derrubada do veto presidencial à proposta que extinguia o fator previdenciário, que havia sido aprovada pelos parlamentares em maio. A proposta do Executivo foi a criação de uma fórmula alternativa, a chamada fórmula 85/95. Agora, para se aposentar sem a perda de salário aplicada pelo fator previdenciário, o trabalhador precisa que a soma de seu tempo de contribuição e sua idade atinja determinada pontuação, que é de 85 no caso das mulheres e de 95 no caso dos homens. Pela regra aprovada no Congresso, esse número é acrescido de um ponto a cada dois anos. Assim, para quem se aposenta até o dia 31 de dezembro de 2018, vale a regra 85/95; até 31 de dezembro de 2020, a pontuação passa a ser 86 para mulheres e 96 para homens; e assim por diante, até chegar a pontuação de 90 para mulheres e 100 para homens de 2027 em diante. Entretanto, para a professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Sara Granemann, a nova regra, assim como o fator previdenciário, imputa sacrifícios aos trabalhadores, principalmente aqueles que começam a trabalhar precocemente. Nesta entrevista, ela fala sobre as mudanças nas regras de aposentadoria, explica porque acredita que a MP 676/2015 é apenas mais uma forma de retirar direitos dos trabalhadores num contexto de crise do capital e também desconstrói o suposto déficit na Previdência Social, argumento que vem sendo utilizado para justificar propostas de reformas da Previdência que aprofundam a perda de direitos pela classe trabalhadora.
    
A Medida Provisória 676/2015 foi apresentada pelo Executivo depois do veto da presidente à lei aprovada no Congresso que mudava o cálculo do fator previdenciário. A proposta original previa o acréscimo de 1 ponto na fórmula por ano, até chegar a 95/100 em 2022. No Congresso, esse prazo acabou prorrogado para 2027.  Da maneira que está hoje, quem se beneficia e quem sai prejudicado pela nova fórmula? O que ela traz de positivo e de negativo em relação ao fator previdenciário?

A Medida Provisória engloba diferentes temas previdenciários e regimes de previdência distintos, a saber: previdência complementar para os servidores públicos, seguro-defeso para os pescadores, pensão por morte, “desaposentação” e novas regras de aposentadoria para os trabalhadores filiados ao Regime Geral de Previdência Social; entretanto, parece-me inquestionável que as duas medidas em torno das quais o debate público orbitou – a permanência do fator previdenciário versus a criação da fórmula 85/95 - são ambas muito ruins porque imputam sacrifícios como aumento do tempo de contribuição, de trabalho e, ainda que não de modo explícito, também o aumento da idade e reduções nos valores da aposentadoria do trabalhador do seguinte modo:no caso do fator previdenciário, redutor do direito à aposentadoria implementado em 1999 pela Lei nº9.876/99 para ser alcançado forçou, simultaneamente, o trabalhador a ter mais tempo de contribuição e reduziu-lhe o valor da aposentadoria, em média, em cerca de 30% em relação ao direito que existia antes deste fator ser instituído. No seu cálculo incidem quatro  elementos: a alíquota de contribuição, a idade do trabalhador, o tempo de contribuição e a expectativa de vida do trabalhador a ser beneficiado com a aposentadoria. Para o trabalhador que não puder atingir os pontos da nova regra será aplicado para o cálculo de seu benefício o fator previdenciário que continuará a funcionar como um fator para reduzir o benefício. Em segundo lugar, a Medida Provisória 676 “igualou” as perdas imputadas aos servidores públicos com a contrarreforma realizada em 2003 pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, pela Emenda Constitucional 41/03 ao regime geral; esta “isonomia” consiste em exigir uma combinação de tempo de contribuição e, na prática, de idade mínima para o alcance do direito.

Insisto no seguinte: mesmo que a regra possa parecer generosa e frouxa, há que se combinar idade e tempo de contribuição para se chegar aos pontos exigidos no total da soma de pontos. Resultado: os trabalhadores que ingressaram precocemente no “mercado de trabalho” formal, terão de contribuir por mais tempo até que os pontos da idade ajudem a constituir a soma necessária. Estes terão mais tempo de contribuição ao longo dos anos sem que isto lhes aumente o valor das aposentadorias. Os trabalhadores informalizados – são milhões no país os que em algum momento ou na totalidade de sua vida laboral estiveram nesta condição – alcançarão a exigência de contribuição mínima mais tarde e por isto se aposentarão com mais idade, trabalharão mais tempo ao longo de suas vidas e estarão mais idosos quando se aposentarem. O mesmo resultado: mais tempo de trabalho para alcançar a exigência mínima de tempo de contribuição. As alternativas a esta soma de pontos? Aposentar-se aos 60 anos com 15 de contribuição com um salário mínimo ou “optar” pelo igualmente injusto fator previdenciário, medida que também elevou, embutida na fórmula para o cálculo do direito, as exigências de idade e reduziu o valor das aposentadorias. Infelizmente não vejo nada de positivo nestas mudanças; elas respondem à necessidade e à avaliação dos capitais em transferir para os trabalhadores os enormes custos de um déficit não existente.

 O argumento mais usado para justificar as mudanças na Previdência é o suposto déficit na área. Consideradas as receitas provenientes das contribuições sociais e tributação sobre os salários previstas na Constituição de 1988, há de fato um déficit?
 
 As diferentes e variadas medidas que tramitam no Congresso e que fazem alvoroço na grande imprensa partem de uma mesma e já velha premissa dos governos e do patronato acerca do debate previdenciário em nosso país: afirmam tenaz e persistentemente a existência de déficit na previdência pública em ambos os regimes, isto é, no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e no Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) e que concerne os trabalhadores empregados pelo Estado, os servidores públicos. A Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) faz divulgação sistemática de seus estudos sobre a Seguridade Social em geral e sobre a Previdência Social, em particular. A partir destes estudos é possível encontrar um resultado positivo nas contas da Seguridade Social (Assistência Social, Previdência Social e Saúde) no valor de R$ 438,5 bilhões, entre os anos de 2008 e 2014. Para enfatizar, isto foi arrecadado e não foi gasto com as políticas de seguridade social. Como então e qual a razão que autoriza os governantes a sustentarem o discurso do déficit? Exatamente a massa de recursos que a previdência tem capacidade de movimentar ser tão grandiosa que deva ser convertida em negócio lucrativo, segundo a lógica da propriedade privada. A lógica que justifica o discurso do déficit é simples: se a política social de previdência for plenamente satisfatória não haverá como tornar necessária a mercadoria previdência; para se mercadejar com a previdência há que se criar a necessidade de uma mercadoria; tornar difícil o alcance do direito e semear a insegurança em torno da efetivação do benefício previdenciário tem sido um dos caminhos assumidos pelo Brasil para justificar o déficit quando existe superávit que é, provavelmente, deslocado para outras despesas como a remuneração da dívida pública.  

Quais as maneiras alternativas pelas quais o Estado poderia garantir o equilíbrio das contas da Previdência num contexto de queda das taxas de natalidade e aumento da expectativa de vida, argumento também bastante utilizado para justificar a necessidade de reformas na previdência?

A estrutura de financiamento das políticas de seguridade social são bastante razoáveis porque ancoradas sobre a folha de pagamento e sobre os lucros de frações de capitais, especialmente o produtivo e o comercial. Efetivamente, este foi um dos ganhos da organização dos trabalhadores resultante da luta de classe dos anos 1970 e 1980 que se plasmou na Constituição Federal de 1988. Entretanto, os governos têm utilizado os recursos da Seguridade Social para pagamentos de juros da dívida, deixam de recolher muitos bilhões por exercitarem uma generosa política de isenção de impostos aos grandes capitais e, de outra forma, não privilegiam o combate à sonegação de impostos para a sustentação desta política social. Ainda assim, enormes quantidades de riqueza formam persistentes superávits na Seguridade Social. De outro lado, como o capital e os governos também guardam enorme interesse nos gigantes recursos da seguridade social, uma preocupação razoável seria deslocar seu foco das taxas de natalidade e centrá-lo na geração de empregos para os milhões de jovens e adultos que não logram trabalhar com os direitos de proteção mínimos, como o é o previdenciário.

Sobre o envelhecimento, nada pode dizer de modo mais definitivo do apodrecimento das relações sociais em um dado país do que caracterizar como um problema aquilo que deveria ser comemorado como um indicador de humanização: o alcance de longevidade para os trabalhadores. Idosos ricos e de boa saúde são festejados e reverenciados, mas aqueles que sobrevivem – e a média não revela com precisão as diferenças entre a expectativa de vida entre as distintas classes sociais e tampouco as diferenças na longevidade entre as frações da classe trabalhadora, consoante a sua vida em diferentes territórios, cor, e gênero – para além dos anos de trabalho, aos trabalhadores dispensam-se apupos tais como privilegiados, vagabundos e tantos outros mais de igual quilate se, por acaso,  “decidem-se” viver para além do que as tábuas estatísticas definem como o razoável para os trabalhadores sobreviverem aos anos de trabalho como aposentados.

O texto aprovado no Senado prevê também a inscrição automática de servidores públicos nos planos de previdência complementar. Como avalia essa medida e que impactos ela acarreta para os trabalhadores que ingressam no serviço público?

A inclusão automática, do meu ponto de vista, é um absurdo, por ser uma violação flagrante ao artigo 202 da Constituição Federal. Este artigo regulamenta a previdência privada, de caráter complementar e facultativo, como não poderia deixar de ser dada a sua natureza privada já que a constituição não pode e não deve obrigar a população de um dado país a comprar uma dada mercadoria, ainda que seja com o argumento de que isto a protegerá e visará o bem estar do próprio consumidor. A imposição de uma regra inconstitucional aos servidores públicos, mesmo que com argumentos falaciosos de que está preservada a escolha por deixar a Funpresp [Fundo de Previdência dos Servidores Públicos], implicará, na prática, uma quebra da adesão facultativa ao regime de previdência privada. Ao trabalhador filiado automaticamente, sem que tenha decidido livremente fazê-lo, terá prazo de 90 dias para decidir se deseja deixar a Funpresp. Após filiar o servidor público federal “automaticamente” a Medida Provisória garante apenas 90 dias para que a decisão por deixar a previdência privada, este instrumento do mercado de capitais, seja feita sem prejuízos ao “poupador compulsório”!

A MP 676 está listada como um dos projetos que integram a chamada Agenda Brasil no Congresso, que ainda inclui projetos como a PEC 10/2008 que institui a idade mínima de aposentadoria de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres. Além disso, encontra-se em tramitação na Câmara a PEC 139/2015, que acaba com o abono de permanência dos servidores públicos. Como avalia esses projetos? Quais os impactos que sua aprovação pode trazer para os trabalhadores?

Seguramente esta Agenda Brasil deve ser nominada pelos trabalhadores como agenda do capital contra os trabalhadores do Brasil. A obrigatoriedade da contribuição já está estabelecida e nesta Medida Provisória a idade, embora não definida claramente, será, na prática, obrigatória na exata medida em que o alcance e o cumprimento dos pontos necessários para a aposentadoria obrigarão ou um número maior de contribuições ou o acesso à aposentadoria com idade mais avançada porque, para fugir do fator previdenciário e do salário mínimo aos 60 anos e com 15 de contribuição, o trabalhador permanecerá no emprego por mais tempo, dele serão exigidos mais anos de trabalho para somar ao tempo de contribuição e atingir os pontos de acordo com o ano em que for se aposentar.

Sobre a PEC 139/2015, penso, brevemente, o seguinte: o governo petista de Dilma Rousseff quer, agora, sob o ajuste fiscal, retirar mais um direito previdenciário da força de trabalho empregada pelo Estado: o abono permanência,uma medida conquistada pelos trabalhadores para atenuar o ataque à previdência dos servidores públicos, desferido pelo governo Lula em 2003. Naquele ano, por meio da contrarreforma previdenciária, o governo do PT e seus aliados, dentre outros cortes, instituíram a contribuição previdenciária aos aposentados. Como as incertezas sobre nosso futuro previdenciário eram grandes muitos trabalhadores que já tinham alcançado o direito previdenciário decidiram-se pela aposentadoria.A luta dos servidores públicos foi muito forte e, por isto, impedimos por 10 anos a instituição da Funpresp (privatização da previdência dos servidores públicos) e fizemos o parlamento entender que o Serviço Público poderia sofrer algo próximo ao colapso pela corrida à aposentadoria por servidores que já haviam conquistado o seu direito, caso alguma medida não fosse tomada. Foi neste cenário que se aprovou o abono permanência.Por cerca de doze anos, milhares de servidores públicos continuaram em seus postos de trabalho embora já tivessem cumprido todos os requisitos para se aposentarem. Permaneceram, frequentemente, porque sabiam que fariam falta naquele lugar para o qual não haveria concursos ou quando houvesse não reporiam as vagas na mesma proporção dos postos abertos pelas aposentadorias.Para muitos, e isto não é um demérito para quem é assalariado, o abono permanência funcionou também como um atenuante ao arrocho salarial e como uma forma de protelar o momento absurdo da contribuição previdenciária sobre a aposentadoria. O abono permanência, ademais de reter os trabalhadores nos seus postos para que a luta não se intensificasse em momento de muita mobilização, também serviu ao governo para que ganhasse tempo na construção da Funpresp, sem que precisasse fazer imediatamente novos concursos sob a vigência do regime de aposentadorias anterior. Somente depois de construída a Funpresp, o governo pode  dispensar - e o ajuste lhe oportuniza a condição ideal para mais este ataque aos trabalhadores  em geral, concernidos aí também a força de trabalho empregada pelo Estado - aqueles que continuavam a trabalhar e recebiam o abono; quer o ajuste fiscal que estes servidores aposentem-se e voltem a contribuir com a previdência, mesmo já o tendo feito a vida inteira. E para que o governo lança mão desta medida? Seu raciocínio é o contábil: deixa de pagar e passa a receber. Receberá de trabalhadores e repassará parte de suas aposentadorias aos credores da dívida; mais uma vez imputar-se-á sacrifícios aos trabalhadores e aos aposentados para assegurar aos capitais os seus ganhos e para resolver a sua crise.

Por último, não é demais lembrar: a instituição da previdência privada (complementar) realizou-se no Brasil,  como obra da ditadura em 1977; agora a imposição aos trabalhadores empregados pelo Estado é também um ato de força, uma Medida Provisória contra a Constituição Federal e contra a decisão dos trabalhadores que, na sua maioria, não a querem. Não queremos nossas aposentadorias reguladas pelos mercados de capitais e financeiros, não porque desconhecemos seu funcionamento e as  consequências para os trabalhadores tanto quando é bem sucedida como quando quebra. Não a queremos porque sabemos que o destino dos trabalhadores na velhice tem de ser protegido da lógica devastadora da especulação e busca de lucros dos capitais. Não nos protegem os deputados, senadores e governantes que precisam dizer que aprovam tais leis em nome da proteção que nos dispensam e para que não nos arrependamos por não termos ingressados na Funpresp quando chegarmos à velhice. Também neste caso, não falam em nosso nome.
 
Na grande mídia e no empresariado são muitas as vozes que pedem por mudançasna Previdência Social, defendida como uma das reformas estruturais que o governo precisa fazer para que o país cresça. Quais as medidas que compõem essa agenda conservadora para uma reforma da Previdência, em sua opinião?

A dimensão e a importância dos recursos movimentados pela previdência podem ser aferidos pela excitação do “mercado” e na recomendação ad nauseam sobre a necessidade inadiável das contrarreformas previdenciárias. Falam nela e dela, de um lado, agentes financeiros e bancários, industriais, intelectuais e jornalistas deputados, ministros, sindicatos e confederações dos capitais. São ouvidos e disseminam medos e inseguranças os muitos canais de expressão à soldo dos capitais; de outro, pouco, demasiado escassa são as vozes do trabalho e restrito o espaço para seu alcance. Por sua força, por conseguir impor-se pelo controle dos meios de produção e de difusão das informações, a voz do capital é tomada por unânime, por verdade e assim, logra impor o seu projeto e sua necessidade como se fora o da totalidade dos sujeitos do país.

A agenda para a previdência está posta nas Medidas Provisórias, nos projetos de Lei e nas Propostas de Emenda Constitucionais. Uma síntese possível sem aqui detalhar cada uma das propostas, seguramente, aponta: medidas e exigências mais e mais difíceis para conseguir o direito à aposentadoria, por aumento de contribuição e de idade mínima; redução nos valores das aposentadorias e expansão do mercado da previdência privada.
 
Quais são suas expectativas com relação à união dos ministérios do Trabalho e da Previdência com a reforma ministerial?

A reunião de dois importantes ministérios diretamente relacionados aos direitos dos trabalhadores poderia fazer supor uma significativa vontade de superar a fragmentação no trato dos interesses dos trabalhadores. Evidente, não se pode ter ilusões desta natureza em um governo em crise político-moral, no interior de um governo do capital. A fusão, além de demonstrar para os “donos do Estado” como será gerido o fundo público na formação de superávit, é também uma indicação da tendência a economizar recursos pela aglutinação de pastas ministeriais. A economia de recursos resultante da fusão liberará para outros usos o orçamento de um dos ministérios - o do trabalho - e transferirá para o da previdência a responsabilidade em arcar com a totalidade ou com parte substantiva dos gastos de todo o novo ministério.