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Entrevista: 
Maria Ciavatta

‘O governo ditatorial nunca investiu efetivamente na educação da população’

Nesta entrevista, que contribuiu para a série de reportagens da Revista Poli sobre história da educação profissional no Brasil, a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Maria Ciavatta analisa a trajetória desse segmento do início do século até a ditadura empresarial-militar, apontando as vertentes e agentes sociais que lutaram por uma educação mais humanística ou mais instrumental
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 31/07/2020 10h59 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Nos anos 1950, no governo de Juscelino Kubitschek, ou mesmo na década de 1960 antes do golpe empresarial-militar, existem marcos, leis, políticas, programas de educação profissional em nível nacional que mereçam destaque?

No contexto de pós-guerra, depois do fim do Estado Novo e da redemocratização do país, existe uma discussão permanente que vem de antes, mas que continua nesse período, que é entre a defesa de uma educação geral e humanística no ensino secundário e a defesa da formação profissional no ensino industrial. Eram duas vertentes da educação que conduziam diferentes grupos da população para um caminho ou para outro. Ora, essa divisão entre a educação humanística e a educação industrial, como se dizia na época, essa dicotomia, acompanha o dualismo estrutural da sociedade brasileira. A divisão social do trabalho e da educação são coisas que caminham na sociedade brasileira e que assumem diferentes formas, diferentes aspectos, por meio de leis e organização da educação, dependendo dos poderes constituídos. No fundo, ela significa trabalho manual para os pobres e desvalidos, como diz a lei de 1909 do Nilo Peçanha, ou então os desfavorecidos da fortuna, como diz o [Getúlio] Vargas na Constituição de 1937. A outra vertente é a educação das elites, [voltada para] o trabalho intelectual, a educação que conduz ao ensino superior. Esse dualismo estrutural na sociedade brasileira alimenta não só a escravidão estrito senso, mas também as formas de escravização do trabalhador e dos seus filhos nos períodos restantes. Quer dizer: na verdade, a lei que libertou os escravos não foi uma libertação efetiva porque abandonou os escravos à própria sorte e estes foram atrás de onde morar, onde viver, como trabalhar, sem apoio do Estado.

Outra questão paralela a essa, mas coerente com aquela herança que vem da colônia e do império, é a ausência de uma política de universalização efetiva da educação para toda a população. Do meu ponto de vista isso tem algo a ver também com o tipo da religião dominante, católica, que prescinde da alfabetização dos fiéis porque quem tem a palavra, quem sabe o que está na Bíblia, quem interpreta é o Papa, são os bispos e padres. Os fiéis vão à igreja para ouvir aquilo que é interpretado. Isso faz uma diferença entre a nossa população e populações protestantes, em que o livre exame da Bíblia chegou já no século 17, com a reforma [protestante], e as pessoas começaram a ser instruídas.

Esse contexto da escravidão está na base da origem da educação profissional, com as Escolas de Aprendizes Artífices, certo?

Com essa divisão, era preciso fazer alguma coisa com os pobres para que eles não ficassem ociosos, para que não fossem vadios, para que não fossem agitadores. Essa era a justificativa das elites. E aí vem a primeira lei, que cria as Escolas de Aprendizes Artífices, uma escola de nível primário, basicamente para ensinar aos meninos os trabalhos manuais, as tarefas práticas. Bom, se a gente dá um salto, nos anos 1920, os reformadores tentaram expandir o sistema de educação primária. Houve um certo crescimento da educação primária com os reformadores da educação. Eu passo depois daí para as leis orgânicas do ensino industrial e do ensino secundário, do ensino comercial, [que são do governo] Getúlio, em 1942. Em pleno Estado Novo, no trabalho com o Ministério da Educação e o Ministério do Trabalho, vai haver uma disputa muito grande entre aqueles que ainda defendiam a educação humanística, as letras, na linha de uma educação tradicional, e aqueles que estavam ligados mais aos empresários. Porque não dá para esquecer que Getúlio começa com o processo de industrialização, não apenas desenvolvimento industrial. Essa é uma distinção que o [Octavio] Ianni faz: o desenvolvimento industrial era o desenvolvimento gradativo das empresas, dos negócios. Vargas não: ele começa a subsidiar a indústria, a criar infraestrutura, dar subsídios. Com isso, há uma expansão da indústria. E é necessário formar mão de obra. Então, as leis orgânicas pautam essa separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, elas mantêm o ensino secundário, o antigo ginásio, para quem podia pagar nas escolas privadas, porque as escolas públicas eram mais restritas, e a educação Industrial, comercial ou agrícola para a formação da mão de obra.  Com a crise do café, a população do campo vai para a cidade, principalmente para São Paulo, que é o grande polo industrial da época. Esse é o movimento das elites, dos empresários, precisando de trabalhadores preparados e adaptados às necessidades da empresa, um trabalhador disciplinado, que não faz greve, não se revolta, que aceita o salário que tem e ainda agradece, que faz parte da grande vida da fábrica. Mas acontece que, com a educação primária e com o processo de algumas aberturas que existiram até antes do Vargas, no primeiro período da República, cresce a demanda por educação. Essa demanda por educação cresce em dois sentidos: da parte da população, porque quem faz primário quer fazer ginásio, quem faz o ginásio quer ir para o colégio e quem faz colégio fica aspirando ser doutor. Doutores têm prestígio, vão para os melhores empregos, ganham melhores salários, enfim, tem toda uma identidade de uma sociedade organizada de modo que sempre os doutores estiveram no patamar superior, nas classes altas. Mas também há uma demanda dos empresários por pessoal qualificado.

Quando o Vargas cai, em 1946, é feita uma nova Constituição, que mantém ainda esse sistema com as leis orgânicas e o ensino secundário. A Constituição de 1946 dá mais autonomia aos estados, o que, de alguma maneira, já estava previsto no sistema republicano, mas o sistema ditatorial do Getúlio centralizou os recursos. Então, a lei podia dizer que os estados tinham autonomia para fazer os seus sistemas, mas eles não tinham dinheiro e os governadores também pouco podiam fazer. A Constituição de 1946 vai dar mais autonomia aos estados, mas também vai obrigar as empresas a oferecerem cursos de qualificação para aprendizes.

A CBAI, Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial, foi criada neste ano, 1946. Qual a importância disso para a política de educação profissional dessa época?

Essa comissão foi criada em 1946 e em 1947 faz a primeira reunião com os diretores das escolas técnicas, aquelas que foram criadas a partir da das leis orgânicas e que eram um sistema à parte. Há essa reunião com os diretores e a CBAI começa a trabalhar. É muito interessante porque ela passa a trabalhar com técnicos americanos, trazem dinheiro, especialistas, equipamentos, material didático, estagiários, professores e diretores dos Estados Unidos. Se você me perguntar onde eu li isso, agora não tenho memória porque foi quando eu fiz a minha tese lá pelos anos 1980, mas os americanos traziam materiais didáticos que tinham sido utilizados para treinamento das tropas na Segunda Guerra Mundial. A CBAI existiu durante 17 anos, até 1963, primeiro no Rio de Janeiro, na sede, embora os técnicos americanos trabalhassem dentro do Ministério da Educação, quando a capital funcionava no Rio. Depois foi para Curitiba, em 1963, com João Goulart [presidente].

Havia contraponto a essa tendência da formação profissional voltada para o mercado de trabalho? Há movimentos no sentido inverso?

Não existia só essa corrente do ensino industrial, existia também a corrente que vinha dos intelectuais, como o Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Paschoal Lemme e Carneiro Leão, que defendia a educação humanística. Foi criada uma comissão de estudos e diretrizes em educação nacional para fazer uma nova lei de educação que superasse a fragmentação das leis orgânicas. Essa comissão, com diferentes pessoas à frente, durou 14 anos porque a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação], que é a lei 4.024, só foi aprovada em 1961.

"A dualidade estrutural vem se refletindo como dualidade educacional na educação ao longo de todos esses momentos"

Quando as pessoas falam da equivalência do ensino técnico ao colegial, elas falam na LDB, mas antes disso existiram três leis que fizeram aproximações, embora mantendo a dualidade. A dualidade estrutural vem se refletindo como dualidade educacional na educação ao longo de todos esses momentos. A primeira lei de equivalência é de 1950, logo depois da queda do Vargas. É a lei 1.076, que vai tornar os cursos profissionais equivalentes aos secundários. A pressão era para prosseguir estudos porque quem fazia o ensino industrial não podia prosseguir, tinha que ficar até o nível técnico no máximo. No estudo profissional não tinha todas as disciplinas - história, geografia, matemática, português - como tinha no secundário, que preparava para a universidade e o colegial. Eles avançam na lei, mas com uma barreira. Em 1953, há a segunda lei da equivalência, nº 1.821. Essa já no segundo governo Vargas, que tinha voltado ao poder entre 1951 e 1954. Mas ele voltou com o projeto nacionalista e é por isso que ele cai, porque já começa a conduzir o país no sentido nacionalista enquanto a passagem do [Eurico Gaspar] Dutra [pela presidência] tinha aberto muito o país para o capital estrangeiro. A segunda lei de equivalência foi estendida ao segundo ciclo dos cursos técnicos, permitindo acesso ao ensino superior. Mas veja só: desde que os estudantes fizessem o exame de complementação das disciplinas de cultura geral. Quer dizer, a permissão estava condicionada a uma barreira. A primeira lei, de 1950, [impunha] uma barreira do ginasial para o colegial e agora, havia a barreira do colegial para o superior. A ideia da equivalência plena estava no anteprojeto [da LDB]. Com a pressão popular e de intelectuais, estava-se mais propenso a conceder essa ampliação de oportunidades. Isso vai tomando força, mas o outro lado também se manifesta. Um texto da Maríliaa Espósito, que é uma professora da USP [Universidade de São Paulo], que trabalha com educação popular, conta que o Almeida Júnior achava que se iria sacrificar o ensino secundário com essa ampliação para esses outros alunos, ou seja, a democratização é vista como perda de qualidade [da educação]. Dentro do próprio governo, desse segundo governo Vargas, havia um ministro da educação, o Cândido Mota, que defendia o currículo técnico humanístico. Seis anos depois, em 1959, vem a lei 3.552, já no governo [Juscelino] Kubitschek. Essa terceira lei de equivalência vai prever para o nível básico do primeiro ciclo os elementos de cultura geral que o tornassem equivalente ao secundário. Então, foi um outro movimento, contra-hegemônico, que partiu de setores do MEC e de setores progressistas da sociedade. Isso aumentava a duração dos cursos técnicos, concedia mais autonomia à administração das escolas e criava um conselho dirigente em cada escola, incluindo os empresários. Então, não foi um abrir mão da educação industrial nem da presença dos empresários, que sempre estiveram por trás e nos organismos pressionando pelas suas necessidades. Bom, aí a gente dá dois anos mais e vem 1961, que é quando é aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que vai dar plena equivalência aos cursos técnico, secundário e colegial. Isso quer dizer que os cursos técnicos, tanto o primeiro ciclo quanto o segundo, tanto o primeiro ciclo profissional ou industrial que era o nome, ou o técnico que era o segundo ciclo, vão ter equivalência ao ginásio e ao colegial.

E o que eram os Ginásios Orientados para o Trabalho, os GOTs?

Eles são de 1963. Os ginásios orientados para o trabalho foram uma proposta que não pegou totalmente. Ela ganhou expressão nos chamados ginásios polivalentes, que tinham disciplinas de caráter geral e disciplina de artes, industriais, técnicas agrícolas, técnicas comerciais e educação para o lar. Você vê que volta, recupera toda aquela história que vem do início do século. Um detalhe bom, contra-hegemônico, é que em São Paulo essa lei deu origem aos chamados ginásios vocacionais. Maria Nilde Mascellani foi a pessoa que criou esses ginásios, que existiram em cinco cidades no estado de São Paulo. Eram escolas que trabalhavam com as famílias, com os problemas locais da sua comunidade, que procuravam dar não só a formação profissional, vocacional, mas também a educação geral que facilitasse os meninos a prosseguirem os estudos.

Nesse ano de 1963 também os empresários estavam ativos. E a corrente [mais ligada ao] Ministério do Trabalho cria um sistema que se chamar Pipmo, Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra Industrial, que defendia a capacitação nas empresas e a expansão das escolas industriais. Quer dizer, o governo instituiu o programa deles. Isso foi em 1963, momento em que a industrialização avançou bastante no Brasil, São Paulo estava todo já industrializado. E as empresas e escolas recebiam para fazer capacitação. Com isso eu chamo atenção para o fato de que havia duas vertentes, com diferentes sujeitos sociais. No fundo, são interesses das duas classes básicas da sociedade, nos seus diferentes segmentos.

Falando agora da ditadura, na sua famosa trilogia sobre história da educação profissional, o professor Luiz Antônio Cunha analisa que a lei 5.692 foi, em parte, uma resposta à pressão pela entrada no ensino superior, com a crise dos excedentes, por exemplo. A sra. concorda com essa análise?

Quando veio a ditadura, os estudantes estavam no auge da organização política, da politização, vindos do período de efervescência democrática. O governo Juscelino Kubitschek tinha como vice o Jango [João Goulart], que era um fazendeiro mas era do PTB, que seguia uma linha trabalhista.  E o Jango era um homem que deu força ao movimento operário, seguiu a linha do Getúlio, embora em outro momento político. O governo de Juscelino Kubitschek foi um período controvertido. Por exemplo, ele queria trazer a Volkswagen para instituir a indústria automobilística e para isso desativou toda a rede ferroviária. E, voltando lá nos anos 1920, vemos que grande parte da educação profissional se deu como treinamento nas estradas de ferro, com o centro de treinamento de educação profissional. Mas o fato é que a efervescência dos estudantes continua no governo Jânio Quadros, que foi um período pequeno. O Jânio tem aquele populismo da vassourinha, mas não restringe as liberdades democráticas. E então os estudantes, que vêm de uma efervescência democrática desde o período do Juscelino, têm um espaço enorme na UNE [União Nacional dos Estudantes] e uniões estaduais, criaram o CPC, que era o Centro Popular de Cultura... Também no início dos anos 1960 é criado [o programa de] alfabetização ‘De pés no chão também se aprende a ler’, a alfabetização do Paulo Freire, que é uma coisa extraordinária. Isso tudo caminha para um projeto de modernização do país, embora seja um projeto de modernização conservadora porque realmente não revoluciona a sociedade, e sim introduz a modernização que vem dos países centrais do capitalismo. As grandes obras começam aí.

O golpe [empresarial-militar] cai em cima da população estudantil, principalmente, e trabalhadora. A repressão pega esses dois segmentos e vai para os intelectuais de esquerda. E aí tem tudo aquilo que ocorreu: a invasão das universidades públicas, a prisão de professores, a cassação dos professores de filosofia, sociologia, de ciências políticas e alguns de antropologia, que eram os mais progressistas. Na Fiocruz alguns cientistas foram cassados. A ditadura faz a extinção dos partidos políticos. E vai fazer a reforma universitária. Enquanto isso os empresários continuam ativos nas políticas de desenvolvimento e da indústria.

O que foi a questão dos excedentes? No Brasil até os anos 1960 havia um número muito grande de estudantes que pleiteavam o ensino superior, mas as vagas foram progressivamente se reduzindo. Eu vou citar para você uma estatística dada pela Otaíza Romanelli que é exemplar do que gerou a crise de excedentes em termos quantitativos. Ela diz o seguinte: na ditadura, o crescimento de inscritos é de 120% e a oferta de vagas cresce só 52%. Há uma quantidade enorme de estudantes que alcançavam a nota máxima, que na época era 7, que tinham direito a uma vaga nas universidades públicas, mas as vagas não existiam. Diante dessa demanda reprimida, que leva os estudantes e suas famílias para as ruas, o que a ditadura fez? Além da repressão, ela vai mudar a legislação relativa ao vestibular, que na época era unificado, com o seguinte artifício: todos terão direito às vagas existentes em ordem de classificação diferente de zero. Para os cursos de medicina e engenharia, que eram os mais disputados, você precisava ter notas altíssimas, superar 7,8,9, mas os cursos de menor valor social, de menor valor econômico, as  humanidades principalmente, onde não é preciso laboratório, não precisa ficar o dia todo estudando, podia-se entrar até com 0,5. E a ditadura ainda fez uma reforma administrativa nas universidades que instituiu os departamentos e o sistema de créditos. Então, fragmentou os estudantes, deixou de haver turma e, com isso, esvaziou o movimento universitário. A questão dos excedentes desapareceu, mas, naturalmente, não resolveu.

Qual é o papel da Usaid e da cooperação norte-americana em geral na política de educação profissional da ditadura? Havia outras influências além dessa?

A Usaid era uma agência norte-americana para o desenvolvimento que, à semelhança da CBAI, foi composta por quatro técnicos brasileiros e quatro assessores americanos, que retomaram a ideia dos colégios polivalentes ou ginásios orientados para o trabalho e também deram uma ênfase muito grande para os cursos técnicos para indústria. Nos polivalentes, há um certo paliativo [de permitir que] quem vai fazer um curso profissional possa estudar mais alguma coisa.

Depois da Usaid, também houve em 1967 um plano estratégico de desenvolvimento, já em plena ditadura, que vai prever a formação profissional de nível médio. Era voltado para gerar mão de obra qualificada porque a ditadura tinha um projeto para o Brasil grande, estava fazendo os grandes empreendimentos. Em 1968, tem o Premem, que é um programa de expansão e melhoria do ensino médio que vai trabalhar também nesse nível. Em 1967 mesmo vai haver a tal reforma que eu mencionei dos ginásios de trabalhos polivalentes, e, em 1970, é criada uma agência que se chamou Cenafor, Centro Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal para a Formação Profissional para a capacitação de docentes e para técnicos de educação e desenvolvimento de recursos humanos.

Na sequência, logo em 1971, é promulgada a lei 5.692, que institui a profissionalização compulsória e se tornou o principal marco da ditadura na educação profissional. Fale um pouco sobre essa legislação...

Sim. Aí a gente chega ao grande momento, 1971, quando é aprovada a lei 5.692, que vai dividir o ensino em primeiro, segundo e terceiro graus. Primeiro grau é primário, segundo grau são o primeiro e o segundo ciclos, que são o [ensino] fundamental nosso de hoje. Primeiro seriam quatro anos e depois mais três do segundo grau. E o terceiro grau que é o ensino superior.

"A profissionalização foi sim um fracasso porque a sociedade não queria profissionalização universal, não estava havendo uma democratização da sociedade de tal maneira que as pessoas achassem maravilhoso que todos exercessem trabalhos manuais. Era uma sociedade dividida, oprimida pela ditadura, em que os pobres ficaram mais pobres e os ricos ficaram mais ricos"

A lei 5.692 de 1971 vai instituir para técnicos de nível médio 52 habilitações e para auxiliar técnico, 78, num total de 130. É claro que as escolas não tinham a menor condição de fazer uma adaptação de laboratório, de professores, de pessoal preparado e cursos para 130 habilitações. Nessa época há uma ênfase muito grande na participação empresarial e se cria o CIEE [Centro de Integração Empresa-Escola], que existe até hoje, que também vai sendo adaptado aos diferentes momentos, oferecendo oportunidades diferenciadas de acordo com o momento político. Em 1975 um parecer [do então Conselho Federal de Educação] reduz essas habilitações a apenas dez, que são chamadas de habilitações básicas do ensino técnico e profissional: mecânica, eletrônica, eletrotécnica, química... Veja só: os meninos que estavam nas escolas privadas não estavam lá para aprender a ser mecânico, eletricista, encanador, eles estavam lá para ir para as universidades. Na época, muitas escolas privadas faziam o seguinte: pegavam as disciplinas profissionalizantes e chamavam de disciplinas instrumentais. Tinham alguma profissionalização - por exemplo, assistente de saúde -, mas pegavam a carga horária que seria para a profissionalização para reforçar matemática, física, química e davam as disciplinas gerais no horário destinado às instrumentais. Isso aconteceu principalmente nas escolas privadas de alto nível. Aquelas que já ofereciam alguma profissionalização mantiveram. Agora, o que aconteceu com as escolas públicas? O governo ditatorial nunca investiu efetivamente na educação da população. Os recursos na educação foram reduzidos gradativamente. As escolas públicas estaduais não tinham recursos, não tinham professores, não tinham equipamentos. As escolas técnicas já tinham uma história de conhecimentos, de pessoas preparadas, de investimento naquela cultura tecnológica, mas as escolas estaduais, não. Algumas que já tinham alguma tradição também permaneceram, mas as outras abandonaram e ficaram só com o ensino geral. Então, a profissionalização foi sim um fracasso porque a sociedade não queria profissionalização universal, não estava havendo uma democratização da sociedade de tal maneira que as pessoas achassem maravilhoso que todos exercessem trabalhos manuais. Era uma sociedade dividida, oprimida pela ditadura, em que os pobres ficaram mais pobres e os ricos ficaram mais ricos. Foi um fracasso porque ela não correspondia ao que a sociedade precisava e nem foi uma proposta que trouxesse recursos para isso acontecer. Talvez pudesse ter sido melhor, mas para isso precisava de recursos.

Na sua trilogia, o professor Luiz Antônio Cunha afirma que a concepção de profissionalização universal e compulsória que a lei 5.692 representou não era defendida por nenhuma corrente dentro do MEC nem por organismos internacionais e que não havia experiência semelhante no mundo. Quem (que grupos políticos e econômicos, frações sociais ou segmentos da educação) defendia essa proposta? Qual a sua origem e por que ela vingou naquele momento?

Para saber disso eu acho que seria necessário estudar as atas das reuniões do Ministério da Educação e eu não conheço nenhum trabalho que tenha feito isso. Nem sei se existe essa documentação. Mas eu acho que essa pergunta a gente pode responder assim, numa análise mais social e política: a sociedade brasileira se constituiu de uma forma dual. Essa disputa tem sido permanente, é uma sociedade que até hoje não se democratizou no sentido pleno, que procura manter os pobres ‘no seu lugar’ e manter os ricos no lugar deles, com tudo o que eles sempre tiveram e que acham que têm direito. Essa divisão estava presente. E a ditadura não está fora da dualidade. Agora, de outra parte, eles queriam aparentar a democratização da educação, instituindo que todos têm que aprender a trabalhar com as mãos. Isso foi desmistificado depois de 1972 até 1982, quando a lei 5.692 cai mesmo porque com a lei 7.044 ela se torna opcional. Foram 11 anos que não levaram a nenhum resultado.

Existem semelhanças entre a política e a legislação da educação profissional da época da ditadura e o cenário atual, com a implantação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e uma reforma do ensino médio que cria um itinerário de formação profissional dentro do currículo e carga horária da educação básica?

[Com a reforma do ensino médio], nós voltamos aos anos 1940, à reforma Capanema, porque entre as cinco áreas que o governo estabeleceu, o ensino técnico não é uma área de conhecimento semelhante às outras. As outras são áreas de conhecimento científico, enquanto o ensino técnico é preparação para o trabalho. O que há é o encurtamento do ensino para os mais pobres porque eles precisam trabalhar. É uma sedução para quem é pobre fazer só dois anos e já poder receber o diploma e ir trabalhar. A BNCC é alguma coisa que caminha nessa linha de ajustar [os currículos] a essa reforma educacional, mas os estados ainda estão implantando, ainda estão fazendo essa adaptação.

Existem marcas ou heranças da política de educação profissional da ditadura ainda hoje?

"Ainda hoje o trabalho manual é discriminado, com salário mais baixo, pelo status, pela representação social de menor valor"

Não responde bem diretamente a sua questão, mas ainda hoje o trabalho manual é discriminado, com salário mais baixo, pelo status, pela representação social de menor valor. As pessoas querem uma profissão que lhes dê meio de vida e lhes assegure um lugar na sociedade. Principalmente porque nós estamos em uma sociedade de consumo, em que as pessoas vêem tudo que os mais ricos usam, toda a publicidade atua em cima do consumismo, da psicologia do consumo e as pessoas querem aquilo. Então querem profissões que as conduzam para mais longe. A formação integrada, que faz parte da política da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, está na convergência dessa discussão. Porque formação integrada significa você dar uma boa formação geral e preparar também para o trabalho, tornar a pessoa apta para exercer aquele trabalho, mas tendo possibilidade de continuar estudando e tendo conhecimentos dos seus direitos de cidadania. Os professores têm muita dificuldade de fazer esse trabalho porque ele exige integrar o geral e o específico, não adianta só aprender a fazer, você precisa saber por que você faz, qual é o fundamento. Você instala uma corrente elétrica, um interruptor, mas o que é eletricidade? Como é que foi gerada? Qual é a história da eletricidade? E ainda, principalmente: quem tem eletricidade neste país? Como se paga pela eletricidade? Tem uma porção de questões sociais e científicas que estão envolvidas no trabalho profissional ou trabalho manual. E a formação integrada defende que os alunos tenham os dois lados da questão enquanto os empresários defendem que os alunos só tenham uma preparação para o mercado de trabalho porque eles precisam ser eficientes, precisam ser competentes, precisam corresponder às necessidades da indústria etc.

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