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Onde o trabalho e a educação se encontram

Entenda como a Educação Profissional, objeto da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, que está completando 35 anos, está presente na vida cotidiana dos brasileiros, inclusive agora, na pandemia
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 08/08/2020 11h18 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Acervo do Instituto Federal do ParáSe você estiver entre as dezenas de milhares de brasileiros que sobreviveram ao coronavírus mas precisaram ser internados, talvez se lembre daquele profissional que ministrava os remédios até durante a madrugada, trocava o soro e promovia vários outros cuidados. É possível que também se recorde do trabalhador que fez o exame de confirmação da doença, cuja amostra foi analisada em laboratório, por outros profissionais que, provavelmente, você nem viu. Antes da pandemia, algum dia pode ter batido à sua porta um trabalhador que pediu licença para entrar, verificou todos os eventuais focos de larvas de mosquito e conversou com você sobre o que é preciso fazer para se prevenir de doenças como a dengue e outras arboviroses. O mais provável é que você não saiba o nome da profissão ou ocupação de nenhum desses profissionais e que, ao ler esse começo de reportagem, reconheça em comum entre eles apenas a atuação na área da saúde. Mas essa não é a única semelhança – e não foi por acaso que nos exemplos acima não estão listados médicos, cirurgiões-dentistas e psicólogos, entre vários outros graduados da mesma área.

Técnicos de enfermagem, de análises clínicas, radiologia e vigilância em saúde são todos trabalhadores de nível médio que aprenderam os fundamentos e as técnicas do seu ofício num processo formativo que hoje a legislação brasileira nomeia como ‘Educação Profissional’. E isso, evidentemente, não é privilégio da área da saúde: técnico em eletrônica, administração, informática, paisagismo e segurança do trabalho são apenas alguns exemplos das 237 habilitações que constam hoje do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos do Ministério da Educação.

Mas atenção: Educação Profissional não é sinônimo de formação técnica. Sabe o cuidador de idoso que tem sido tão importante nessa pandemia? E aquele curso de cabeleireiro que a sua vizinha fez? Ou o de depiladora que a sobrinha vai tentar no próximo mês? Ou aquele de auxiliar de cozinha que você mesmo um dia desses pensou em se matricular? Pois são todas oportunidades de qualificação profissional, classificadas como de Formação Inicial e Continuada (FIC) e legalmente consideradas parte da Educação Profissional no Brasil. A diferença é que essa formação, em geral mais rápida, não requer que o estudante tenha o ensino médio, enquanto, para o técnico, é necessário que ele esteja concluído ou sendo cursado ao mesmo tempo. Por fim, a legislação brasileira também inclui nesse mesmo ‘pacote’ os chamados cursos tecnológicos, que são de nível superior (graduação ou pós-graduação), mas com uma carga horária menor do que os bacharelados e licenciaturas. É tanta coisa junta, que Marcela Pronko, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que estuda a relação entre educação e trabalho na América Latina, considera o resultado uma verdadeira ‘jabuticaba’. “Educação profissional é um invento brasileiro”, diz. E explica: “Esse é um conceito construído a partir da junção de modos de formação que historicamente são diferentes. No âmbito internacional, existe, por um lado, o que é chamado de ‘formação profissional’, que é de curto alcance, uma preparação específica para um tipo de trabalho determinado. Não chega a ser sequer um ofício, são como treinamentos”. No Brasil, continua Marcela, juntou-se isso com outra forma de preparação para o trabalho reconhecida, que é a ‘educação técnica’. “É uma formação de um tempo maior de preparação, com mais sistematicidade e que foi se configurando ao longo da história da constituição dos sistemas educacionais como um ramo específico”.

Essa ‘junção’ a que Marcela se refere aconteceu na década de 1990, mais precisamente com a discussão da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Mas, de acordo com a pesquisadora, o resultado se deve também a pressões que vinham das políticas do trabalho, cujo Ministério, naquele momento, investia na requalificação profissional de parcelas significativas da força de trabalho por meio do Planfor, o Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador, uma política que oferecia basicamente cursos mais rápidos, como treinamentos que podiam ser desenvolvidos em vários espaços, inclusive o próprio setor produtivo. “O conceito de Educação Profissional surge da confluência desses dois movimentos”, resume Marcela. E analisa: “Esse procedimento permite que as políticas se anunciem como amplas e se transformem, concretamente, em iniciativas específicas para uma formação aligeirada da força de trabalho”. Um exemplo recente, opina, foi o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). “O Pronatec vem como uma grande iniciativa no campo da Educação Profissional, de maneira ampla, para favorecer a interiorização e a inclusão. Mas quando você vai ver a aplicação concreta do orçamento, 80% se destinam a cursos FIC. Tudo isso cabe dentro da Educação Profissional”, diz.

Educação na escola

O fato é que, por aqui, agentes e auxiliares, técnicos e tecnólogos das mais diversas áreas compõem o universo daqueles cuja formação “conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva”, como define o artigo 39 da LDB. Todos esses exemplos podem parecer tão corriqueiros que talvez seja difícil imaginar que nem sempre houve uma ‘escola’ destinada a ensinar um ofício. “Antes da constituição dos modernos sistemas nacionais de ensino, eram as corporações de ofício que promoviam a regulamentação das atividades profissionais e se encarregavam da aprendizagem dos jovens trabalhadores. Estes entravam como aprendizes. Com o tempo, passavam a oficiais e, depois, a mestres”, conta Lucília Machado, professora titular aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que completa: “Como elas detinham os segredos das fabricações e tinham muito poder sobre a regulação das trocas das mercadorias, passaram a ser um entrave ao desenvolvimento do capitalismo. Porém, sua desativação transcorreu de forma gradativa e diferenciada por territórios e ramos de atividade. O golpe de misericórdia veio com a internacionalização dos mercados. Talvez seja esse o marco internacional para a transição do ensino profissional para as instituições escolares”.

Lembrando que “a educação é muito mais antiga do que a escola”, Domingos Leite Filho, professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, também ressalta que nem sempre a educação foi uma necessidade institucional. E, no caso da Educação Profissional, diz, isso se cruza também com um momento em que o trabalho passou a requerer cada vez mais “aspectos da ciência e da técnica que precisavam ser transmitidos”. “Quando, por um lado, se torna necessário o aporte da ciência ao trabalho e, por outro, há uma divisão social entre os que trabalham na produção diretamente e aqueles que são proprietários, você precisa moldar e adaptar a força de trabalho às condições da produção do capital”, resume, apontando como a história desse campo é atravessada por contradições.

Ainda que tenham existido experiências anteriores – localizadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, principalmente –, em âmbito nacional, no Brasil esse momento aconteceu 110 anos atrás. Foi quando surgiu a primeira – na verdade, as 19 primeiras – escola voltada para a “formação de operários e contramestres”, como define o pesquisador Luiz Antonio Cunha no livro ‘O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização’, que compõe uma famosa trilogia sobre a história da educação profissional no Brasil. O decreto nº 7.566, considerado por muitos pesquisadores como o marco zero do que hoje se entende por Educação Profissional, foi publicado em 1909, pelo então presidente Nilo Peçanha. E no ano seguinte, entre janeiro e setembro de 1910, as escolas começaram a funcionar. Nascia aquilo que, com muitas mudanças ao longo do caminho, hoje se reconhece como a Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT), formada por 661 escolas distribuídas por 587 municípios brasileiros.

E esse não é o único marco da Educação Profissional em 2020. Com uma trajetória mais recente, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, unidade da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), que foi criada em 1985 como resultado das lutas da educação e da saúde que se fortaleciam naquele momento de expectativa em relação à democratização do país, está completando 35 anos. E é em homenagem a essa experiência que esta edição especial da Poli traz uma série de reportagens sobre a história e as concepções da Educação Profissional no Brasil e da própria Escola Politécnica - personagem central dessa trajetória que, desde o pós-democratização, vem aproximando a saúde desse encontro entre o trabalho e a educação.
 

Materia publicada: 22 de janeiro de 2020.

*Matéria atualizada em 6 de agosto de 2020.

Leia mais

Nesta entrevista, que ajudou a compor a série de reportagens da Revista Poli sobre a história da educação profissional no Brasil, o professor da Universidade Tecnológica do Paraná Domingos Leite Filho caracteriza esse segmento educacional e explica as origens da instituição escola como responsável pelo aprendizado dos ofícios. Fala ainda sobre a concepção de trabalho que deve se articular com a educação e justifica por que faz sentido defender a formação técnica ainda na educação básica, no contexto brasileiro
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Embora tenham existido experiências anteriores, o marco de uma política nacional para o que hoje se chama ‘Educação Profissional’ se dá no início do século 20