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Entrevista: 
Kenneth Camargo

'O grande investimento da indústria farmacêutica nos últimos anos foi para disfunção erétil, não para malária'

Em evento recente, na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o Ministro da Saúde, Ricardo Barros, anunciou mais recursos para a indústria farmacêutica. O discurso é o fortalecimento da produção nacional e o barateamento dos medicamentos. Nessa entrevista, o professor associado do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Kenneth Camargo, alerta, no entanto, que as políticas para o setor ou, em alguns aspectos, a ausência delas, acabam contribuindo para aprofundar as iniquidades no acesso a medicamentos e à inovações no tratamento das doenças que mais atingem a população. O pesquisador, que se debruça há muito tempo sobre as relações entre as indústrias de medicamentos e pesquisa de doenças no Brasil, aponta como necessária a cobrança de contrapartidas da indústria farmacêutica. "Se você quer produzir Viagra, tudo bem, mas você também tem que assumir o compromisso de produzir Penicilina", exemplifica.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 11/11/2016 15h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

No último dia 4, o Ministro da Saúde, Ricardo Barros, participou de uma reunião na sede das Fiesp, na qual anunciou uma política de incentivo à produção de medicamentos, insumos e equipamentos, com investimento de cerca de 6 milhões nos setores público e privado, inclusive no âmbito das chamadas Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP’s). Segundo o ministro, são investimentos estratégicos para que haja mais produção e barateamento do custo de medicamentos no Brasil. Certamente medicamentos mais acessíveis é uma demanda da população e dos usuários do SUS. Mas que contradições podemos apontar nessas políticas e nessas parcerias com o setor privado?

Na verdade as PDPs já vinham sendo feitas há algum tempo. Ainda não foram divulgados maiores detalhes do que especificamente isso [a nova política de incentivo apresentada pelo ministro] quer dizer. Mas falando de uma maneira geral, eu acho que tem pelo menos três coisas para considerar. Primeiro é que é necessário um investimento continuado e de grande monta para poder recuperar a indústria farmacêutica no Brasil. Houve um processo de desnacionalização da indústria farmacêutica no país ao longo de décadas. Então, para você conseguir recuperar isso é quase que você reconstruir todo um setor da economia que não se limita à questão da pesquisa – tem que ter insumo, tem que ter equipamentos, tem que ter reator químico para poder produzir determinados componentes, precisa ter gente formada para operar essas coisas, tem que ter engenheiro químico, tem que ter gente capacitada para fazer ensaio clínico. Então, é todo um setor grande e complexo da economia que não foi feito praticamente investimento nenhum durante décadas, e que teria que ser recriado quase que a partir do zero e essa não é uma operação simples. Essa é uma primeira questão. Segundo, a gente tem um problema no Brasil, em função dessa questão de nacionalização, que foi quando a gente aderiu ao Tratado de Propriedade Intelectual, o TRIPs [Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, que criou a Organização Mundial do Comércio - OMC], com isso a gente entrou para a Propriedade Intelectual do Comércio, e o Brasil assumiu algumas coisas que não precisava ter assumido, não era parte obrigatória, e uma delas é aceitar a proteção patentária para medicamentos que já estavam sendo vendidos no país. Isso não era necessário e o Brasil concordou em fazer isso na época, acredito que com a pressão mesmo dos Estados Unidos, e isso representou um custo adicional de medicamentos ao longo desse tempo, inclusive a Procuradoria Geral da República está tentando invalidar esse pedaço da lei. Então, a gente tem além de um passivo do setor da indústria, esse passivo desse custo que foi colocado no passado. Agora, o grande problema dessa história é que há uma contradição inerente: nós somos, querendo ou não, uma economia capitalista, que depende de incentivos econômicos para a produção, para uma série de coisas, mas que esses incentivos não respondem adequadamente às demandas de saúde da população. O que foi o grande investimento na indústria farmacêutica mundial nos últimos 20 anos? Foi medicamento para disfunção erétil, não foi para malária. Então, se você deixa nas mãos do mercado você vai ter uma migração de recursos para aquilo que possivelmente vai dar mais lucro. E eu não sei como isso está sendo comtemplado, se existe alguma salvaguarda nessas parcerias que garanta que o investimento que vá ser feito, será naquilo que interessa à população brasileira. Essa é uma primeira questão. E paralelo a isso o governo já demonstrou que vai admitir reajuste de preço para medicamentos que no momento estão sendo considerados baratos demais para serem produzidos, como é o caso da Benzatina, que é importante para o tratamento da sífilis, que está tendo reconhecimento de preço. Isso também é muito complicado e é a consequência direta desse outro problema que eu mencionei – de tentar soluções de mercado com coisas que não são solúveis dessa forma.

Essa revisão dos preços é uma decisão de governo?

Sim. O governo decide permitir, comprar, pagar mais caro para um medicamento que no momento está sendo considerado muito barato, para que haja incentivo para a sua produção. Isso tem acontecido nos Estados Unidos. Já houve pelo menos dois ou três casos de remédios que não tinham mais proteção patentária e foi concedido um incentivo para a empresa produzir uma reaplicação da patente. Em um desses casos, por exemplo, foi uma forma injetável de progesterona, que seria importante para ajudar em casos de possibilidade de parto prematuro, de adiar o parto ao máximo possível, para dar uma chance para a criança nascer sem problema, que estava sendo vendido extremamente barato, e que a empresa fez uma majoração de preço de mais de mil por cento da noite para o dia. E com umas justificativas extremamente cínicas quando as pessoas questionavam o preço. Eles falavam assim: ‘se as pessoas consideram importante ter filhos, elas vão arrumar um jeito de pagar esse dinheiro. Outro caso foi para uma droga que é usada no tratamento de uma das infecções oportunistas da AIDS, que é a Pentamidina, que também estava sendo vendida muito barata, e também foi feito o mesmo processo, foi concedido a patente e o preço subiu muito. Então, eu acho que isso é a demonstração cabal de que esse mecanismo baseado única e exclusivamente num processo de mercado e de proteção patentária tem problemas inerentes e praticamente insolúveis. E tem uma outra questão relacionada a isso: existe sim a importância de você desenvolver uma indústria nacional. O mesmo tratado internacional de propriedade intelectual na Organização Mundial do Comércio [TRIPs], admite, para o caso de medicamento, que você faça o licenciamento compulsório da patente em caso de necessidade de saúde pública, que foi o que o Brasil uma vez ameaçou e outra vez fez com relação a alguns tipos de medicamentos contra a AIDS [a chamada quebra de patente]. Mas para que isso tenha alguma consequência você tem que ter a capacidade de produzir o medicamento no próprio país porque se eu digo para você assim: ‘eu não vou comprar o seu produto, eu vou fazer o mesmo porque eu vou pôr o preço mais barato’, eu tenho que ter capacidade de cumprir com essa ameaça. Se eu não tiver capacidade de produzir o produto mais barato e em escala isso não vai adiantar nada. Quer dizer, a gente não tem ainda capacidade de produção industrial de uma porção de coisas e muito menos em larga escala. E temos dependido muito principalmente da China e da Índia, para que tenhamos acesso a substância ativa. Nós importamos desses países e aqui fabricamos o medicamento, a cápsula ou o elixir, ou seja lá o que for que as pessoas vão consumir. Mas o princípio ativo é importado. E isso também cria uma série de problemas porque há uma pressão muito grande para que esses países parem de exportar. Os Estados Unidos, em particular, têm pressionado muito a Índia para que ela aceite um acordo: eles não tocariam na indústria farmacêutica deles, mas eles parariam de exportar. Se isso acontecer, ficaremos na mão só da China. Então a lógica de você desenvolver o setor industrial nacional não deixa de ter um certo sentido. Agora, sem que se pense nos mecanismos de assegurar preço justo, isso não será suficiente para resolver o problema, e eu não vi nenhuma referência a isso.

O Ministério da Saúde afirma que há hoje 86 parcerias vigentes no âmbito das PDPs, com 18 laboratórios públicos e 43 privados, com pesquisas de 88 medicamentos, 4 vacinas e 13 produtos para a saúde.  Já se pode fazer um balanço dessas parcerias?

Eu não sei se isso já teve algum efeito, justamente por conta do tempo que essas coisas levam para maturação. O problema sério que nós temos é que o investimento do setor privado em pesquisa é irrisório. Nos Estados Unidos, por exemplo, você tem uma participação muito grande do setor privado no financiamento da pesquisa, sobretudo da pesquisa básica, aqui isso não acontece, a maior parte do financiamento para pesquisa continua vindo de fontes públicas. E numa situação de retração como a gente está agora, isso compromete uma série de coisas. Eu acho que o principal problema dessas parcerias é que não ficam claras essas condições. Porque eu acho que seria até razoável você fazer uma proposta de investimento, por exemplo, conseguir um financiamento no BNDES, com juros subsidiados para implantar uma fábrica que vá oferecer emprego. Seria razoável ter apoio para desenvolvimento de pesquisa que até de alguma forma vai reverter para o SUS. A questão é que eu não sei se isso está sendo garantido, a visibilidade do retorno dessas parcerias está sendo muito pequena. Eu não vou dizer que a priori isso é o grande problema, mas eu não tenho conhecimento de que tenha havido um retorno à altura do que já foi investido, embora o tempo de maturação dessas coisas talvez possa ser um pouco longo.

Esses investimentos fazem parte da agenda dos empresários da Saúde. O Livro Branco da Saúde, que é um conjunto de propostas lançado pela Associação Nacional dos Hospitais Privados, e também os documentos do Instituto Coalizão Saúde, do qual participam diversos representantes do setor, inclusive a Interfarma e a Sindusfarma, falam exatamente isso: a necessidade de uma cooperação maior entre os setores públicos e privados para a promoção da inovação científica e tecnológica. Esses grupos reclamam também de obstáculos para a transposição de tecnologia entre a universidade e a indústria e da demora na aprovação de patentes e de pesquisas clínicas...

Tem havido uma pressão muito grande para acelerar o processo da pesquisa clínica. Isso é perigoso, para dizer o mínimo. O PL 200/2015 do Senado retira o controle da Conep [Comissão Nacional de Ética em Pesquisa] sobre a pesquisa, dá uma autonomia excessiva com a possibilidade de você criar órgãos, criar Comitês de Ética descentralizados, inclusive dentro da indústria privada. E isso é muito perigoso. Aí tem toda uma coisa de querer fazer com que o medicamento chegue no mercado mais rápido. Mas tem um limite de tempo do que você pode fazer isso por uma questão de proteção da população, toda aquela sequência de estudos tem que ser feita até que você libere a medicação para uso. E eu acho que qualquer tentativa de abreviar isso não se faz sem risco para a saúde da população. E uma coisa que foi muito ruim foi que as pessoas se aproveitaram daquela controvérsia sobre a história da Fosfoetalonamina para usar isso como pé de cabra para tentar roubar essa questão, como uma desculpa de que deveria se fazer essa aceleração na tramitação de pesquisa. O risco é muito grande, não compensa.

Esse anúncio feito pelo ministro na FIESP, e outras agendas que ele tem mantid com o setor de empresários da saúde, é um aceno positivo à essas demandas?

Eu tenho medo que sim. O que me preocupa muito mais é o que isso representa na ponta de serviço.  Essa história de oferecer planos de saúde populares, por exemplo, é antítese do SUS. O Gastão [Wagner, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva] fez um pronunciamento num congresso recente que eu achei muito adequado, ele falou que desde a sua implantação o SUS nunca teve ministros que abraçassem completamente a causa, mas é a primeira vez que a gente tem um ministro que é contra o SUS. E ele tem deixado isso bem claro a todo momento. Então, essa ideia de privilegiar uma lógica empresarial é contraditória com a Constituição, no limite ela é inconstitucional. Eu insisto: mesmo você admitindo que a gente vive em uma sociedade capitalista, que isso é inescapável, existe ampla evidência de vários países de que não é possível dar solução de mercado para os problemas de saúde. Isso à exclusão, a uma maior concentração de renda, traz uma série de problemas. A política de saúde tem que ser protegida de certa maneira dessa lógica de competição. Do ponto de vista, pelo menos, da assistência à saúde pública. E mesmo para a questão da indústria. Há sempre uma ameaça: se você não consegue ter retorno financeiro do investimento em pesquisa e desenvolvimento para equipamento e medicamento, ninguém vai querer fazer isso. Mas na prática, no Brasil, ninguém está fazendo isso, o que está sendo feito, está sendo feito com o investimento do Estado. Então se é para fazer com o investimento do Estado eu acho que no mínimo o Estado teria que negociar, a partir de uma posição de forças. ‘Está certo, ok, você tem direito a um certo lucro aqui, mas você vai ter que vender mais barato para o SUS’, ou ‘você vai produzir esse medicamento aqui que é para uma população mais seletiva, mas aí você também vai assumir o compromisso de produzir o outro’. ‘Você quer produzir Viagra, tudo bem, você produz Viagra, mas você também vai assumir o compromisso de produzir Penicilina’. Eu não sei se este tipo de salvaguarda está sendo embutido, e dada as atitudes, e dada a lógica que tem sido impressa para a política pública, eu temo que não esteja sendo colocada nenhuma consideração desse tipo.

Em relação a produção nacional, qual é a nossa capacidade hoje? Seria ideal que tivéssemos uma ampliação, isso seria essencial para um barateamento, para a garantia dessas condições que você está apontando?

Eu acho que em primeiro lugar tinha que estimular a questão do genérico. Agora, veja bem, isso é uma questão até de segurança nacional. Quando teve aqueles atentados de 2001 nos Estados Unidos, além dos atentados às torres, teve gente enviando envelope contaminado com Antraz. E aí os Estados Unidos, que sempre falaram contra essa coisa da patente foi o primeiro a fazer esse processo de licenciamento compulsório do antibiótico que era eficaz no tratamento do Antraz, o Cipro. Se você não tem capacidade de produção local, numa situação dessa de emergência, você pode dizer que vai fazer licenciamento compulsório à vontade porque você não vai ter como responder a isso. E no momento o Brasil não tem. É uma questão estratégica de segurança nacional você ter garantia de acesso a medicamento, especialmente medicamentos básicos, coisas que as pessoas dependem, como insulina, medicamento para diabetes, medicamento para hipertensão, para infecções agudas, isso são coisas absolutamente essenciais e a gente está muito atrás nesse ponto de vista.

E qual é o quadro da nossa produção pública de medicamentos e insumos?

Nós temos muito pouco. O maior laboratório público ainda continua sendo  Farmanguinhos [Laboratório Farmacêutico Federal Farmanguinhos, uma das unidades da Fiocruz], que sofreu alguma expansão, mas ainda tem uma série de limitações. A gente tem uma produção pública de vacinas muito boa, mas para as outras coisas nem tanto. Você tem alguns laboratórios públicos em São Paulo, aqui no Rio de Janeiro teria o Vital Brasil, mas com toda essa crise do Estado eu nem imagino como é que está. Para poder dar conta de tudo que você está tendo no SUS, ainda é pouco, embora Farmanguinhos tenha conseguido fazer muita coisa, tem uma presença importante, mas precisaria de uma expansão muito mais forte para ser alguma coisa que fosse de fato a espinha dorsal para o SUS. Porque não precisar de medicamentos está fora de questão.  Eu posso investir muito na prevenção – e eu acho que a gente precisaria investir muito mais do que a gente investe – a gente precisa de muito mais investimento em saneamento básico, as pessoas têm que ter alimentação decente, etc. Mas com toda a prevenção do mundo, você vai continuar tendo gente que tem hipertensão, que tem diabetes, gente inclusive que vai ter câncer, que vai ter uma série de coisas que dependem de medicamentos que são caros, alguns desses na fronteira do desenvolvimento científico-tecnológico. Uma boa parte das drogas mais caras são exatamente essas de desenvolvimento recente. Então, o investimento nisso de fato é necessário, agora, as condições que isso está sendo feito aqui no Brasil é discutível se elas estão seguindo de fato uma lógica de bem comum, de servir a maioria da população.

Em um artigo recente, a jornalista Najla Passos, descreve como atua a chamada bancada do medicamento no Congresso. A atuação desses parlamentares também contribui para esse cenário de poucas garantias para a população?

Com certeza. É um pessoal que está pressionando com relação, por exemplo, ao afrouxamento da legislação de proteção ética para pesquisa. Você acaba tendo a formação desses lobbys dentro do Congresso, que tem uma influência enorme na construção de política pública.

Em janeiro deste ano foi sancionado o novo marco legal da ciência, tecnologia e inovação. A nova lei é considerada por alguns setores como brecha para uma relação promíscua entre as empresas e instituições públicas de pesquisa. Você considera que essa influência da indústria farmacêutica nas decisões das políticas e nas pesquisas se agrava com o novo marco?

O risco, pelo menos, existe, e a gente tem antecedente histórico que mostra que essa coisa não funciona do jeito que as pessoas esperam. Nos Estados Unidos, até a década de 1980, se você recebia financiamento público para desenvolvimento de pesquisa na universidade, por exemplo, você não poderia patentear algo que desenvolvesse. Até que, a pretexto exatamente de fazer esse processo de transferência tecnológica da pesquisa básica para a aplicação, foi votada uma lei no Senado Americano, que levou o nome dos senadores que propuseram, um democrata, Evan Bayh e Dole, e Bob Dole, um republicano. Essa lei autorizava as pessoas a patentearem essas invenções. O resultado disso é que, principalmente na Califórnia, houve quase um esvaziamento de setores inteiros que trabalhavam com biologia molecular, porque as pessoas foram abrir novas empresas de biotecnologia. E o produto final dessa história, parece que só um sobreviveu. Então, o resultado foi muito, abaixo do que se esperava. Esse processo é complexo. Por mais tentativas que sejam feitas, a tentativa de dirigir ou acelerar de alguma forma a produção de resultados a partir da pesquisa e a transferência para o setor produtivo não tem se mostrado tão eficaz quanto pareceria. Os Estados Unidos investiram bilhões de dólares recentemente no que eles chamam de translational science, que seria exatamente isso: criaram vários centros no país para facilitar esse processo de transposição do laboratório para a beira do leito. E também os resultados estão abaixo do que seria esperado. O problema é que há um processo que não tem como apressar. Agora, de qualquer maneira, toda vez que se faz um incentivo econômico isso, implica o risco de que esse incentivo acabe sendo mais importante do que a atividade fim. O que é que a indústria farmacêutica vai pesquisar? Ela vai pesquisar antidepressivo, remédios para disfunção erétil... E aí você tem toda essa discussão do gap 10-90, que 90% do investimento da indústria farmacêutica, de pesquisa, na verdade, biomédica, vai para atender problemas que afetam 10% da população mundial. Então, há uma série de problemas, como doença de chagas, malária, esquistossomose, tuberculose para as quais você não tem [pesquisa da indústria farmacêutica]. Só recentemente, a partir de iniciativas tipo a Fundação Gates, é que se começa a ter algum incentivo para produção de alguma forma de inovação tanto de medicamento quanto diagnóstico nessas áreas. Em tese, você ter uma relação mais estreita do setor produtivo com o setor de pesquisa não é necessariamente uma má ideia, o problema é sempre como é que se dão essas regras e, fundamentalmente, essa coisa da contrapartida. Já que o dinheiro público está sendo injetado no setor privado, o que está sendo oferecido em troca? Existe algum tipo de compromisso de fornecer a preço baixo? Como é que fica essa questão da patente se é desenvolvida uma nova tecnologia? Essa coisa do patenteamento também é mal resolvida, porque, principalmente em países chamados de primeiro mundo, ele acaba sendo uma forma de cobrar valores estratosféricos da medicação que está com proteção patentária. Não me parece que isso seja interessante para a gente. Então, volta a questão: você pode patentear? Mas se você receber financiamento do governo, essa patente não deveria ser compartilhada com o governo? O setor público, não deveria ter alguma forma de decisão na formação final de preço? E esse marco [da ciência, tecnologia e inovação] não deixava isso claro. 

AS PDPs se encaixam aí? Você acha que dá para estabelecer uma relação?

Tem. Eu acho que o marco regulatório foi feito até um pouco com a função de disciplinar coisas que já estavam em andamento. Agora, se de fato isso atendeu ao que estava sendo necessário, acho que a gente não teve nem tempo de testar. Até porque essa política foi completamente atropelada. De janeiro para cá parece que foi outro mundo, outra década.

Como você avalia hoje o acesso aos medicamentos no SUS?

Olha só, tem sido muito irregular. Eu acho que teve iniciativas tipo Farmácia Popular, mas que, de novo, são muito complicadas. Eu não conheço nenhum lugar do mundo que tenha uma solução que seja 100% para essa interação com o setor privado. A gente tem um problema aqui no Brasil da forma como é a capilarização da venda de produtos farmacêuticos. Não precisa ser muito atento para você ver a quantidade de farmácia que existe numa cidade como o Rio de Janeiro, sem contar que elas vendem uma porção de coisas. Há muito pouco controle, muito pouco rigor, muito pouca fiscalização. Então existe um problema grande, por um lado, de automedicação - recentemente se tentou apertar o controle, por exemplo, da venda de antibiótico, que estava uma situação de total descalabro. Eu não sei até que ponto isso de fato conseguiu coibir, mas enfim... Há mecanismos de distribuição de medicamentos que, ao mesmo tempo, tentam garantir margem de lucro para fornecedor. Mas, bem ou mal, eu acho que pelo menos para alguns medicamentos de uso continuado estava se tendo algum sucesso. O problema é que há falhas no processo de distribuição que às vezes ameaçam a cadeia de suprimento. Já vi vários relatos de pessoas soropositivas em uso de antirretroviral que se veem ameaçadas de não ter medicação suficiente para continuar tratando. Então, embora eu ache que essa coisa tenha caminhado, ela está longe de ter sido resolvida de forma adequada. Eu acho que avançou em relação a algumas coisas para uso crônico, mas para os remédios de uso agudo ainda continua existindo uma dificuldade muito grande. Para antibióticos e uma série de outras coisas as pessoas têm que desembolsar para conseguir ter acesso, não necessariamente está disponível como deveria na farmácia de atenção básica.

Há um acúmulo sobre isso em relação a outras formas de oferta que não seja por essa rede de farmácias? O SUS distribui medicamento diretamente também, não é? 

Tem, tem. Mas a grande expansão que teve ao Remédio em Casa e o Farmácia Popular, que é feito com intermediação privada.


Essa matéria sobre o pacote de medidas que o Ministério da Saúde apresentou em encontro com a Fiesp fala de uma atualização dos protocolos de diretrizes terapêuticas. O que é isso?

Isso é alguma coisa que tem que ser feita o tempo todo. Na medida em que há desenvolvimento tecnológico, esses protocolos estão sendo feitos e revistos. A questão é quem está fazendo a revisão, se isso está sendo feito de forma adequada. Você tem uma Câmara Técnica que está fazendo isso da melhor forma possível. Por exemplo, em relação aos antirretrovirais, isso sempre foi feito. À medida que novas drogas vão entrando no mercado, que você tem outras opções de tratamento, já houve várias revisões, eu não me lembro se anuais ou semestrais, do protocolo recomendado para tratamento para AIDS. E até para prevenção, quer dizer, no caso de pessoas soropositivas que nem têm imunidade e já estão comprometidas. Então isso é alguma coisa que de fato tem que ser feita. Agora, resta saber quem e como vai fazer. Eu quero comprar um carro, por exemplo. Aí vou ver quanto dinheiro eu tenho, vou tentar ver um empréstimo no banco, vou negociar o modelo. Agora, se você diz assim para mim: você tem que tratar de câncer, eu não tenho condição de dizer se tenho ou não. Quer dizer, eu posso recusar o tratamento, mas a maior parte das pessoas vai tentar fazer aquilo. Então, quem toma a decisão não é quem sofre com o ônus monetário dela. E aí, se você deixa isso ser intermediado por estímulos econômicos, com incentivo financeiro muito direto, você vai ter o incentivo sempre para que mais e mais esteja sendo prescrito.

Sua preocupação é com o que move essa revisão? Se é por uma questão de economia apenas, porque isso de alguma forma aparece também nessa matéria, para que os pacientes deixem mais rápido o hospital...

Exatamente. Eu acho que peca pelos dois lados. Eu acho assim, porque você pode ter uma revisão que leve a gastar mais. Um colega nos Estados Unidos escreveu tem um livro que discute muito essa questão dos problemas acerca da saúde lá. Ele chama a atenção para um determinado momento em que um painel de experts decide que o valor ideal para o colesterol é um pouco abaixo do que vinha sendo considerado até então. Isso já tem mais de dez anos. Ao fazer isso, instantaneamente, só nos Estados Unidos, a população que seria passível de tratamento com Estatina passa de 13 milhões de pessoas para 36 milhões. Isso só nos Estados Unidos, imagina no mundo inteiro. Aí você vai ver o painel de experts que decidiu esse negócio, dois terços deles eram financiados em suas pesquisas por indústrias farmacêuticas que produzem a Estatina. Isso quer dizer, a priori, que teve um problema? Não sei. Mas, no mínimo, a gente tem que botar as barbas de molho.Há muito tempo se começou a trabalhar com essa ideia de declaração de conflitos de interesses para coibir esse tipo de coisa. Eu cito isso num artigo que escrevi dez anos depois que essa política foi implementada nas principais revistas médicas do mundo. Um dos sujeitos que foi propositor disso, acho que foi presidente do equivalente do Conselho Federal de Medicina no Reino Unido, jogando a toalha, falou assim: ‘a gente criou isso [declaração de conflitos de interesses] para coibir o problema e acabou que a gente normalizou, porque ao invés de isso servir para restringir, fez com que todas as pessoas, todo o mundo tenha esse tipo de conflito, então isso passou a ser o normal’.

Ou seja, todo mundo tem alguma relação dessa com a indústria farmacêutica?

Exatamente. E até que ponto dá para ter certeza absoluta de que o fato de ser financiado e ter um estímulo financeiro para a venda de um determinado tipo de medicamento não influi em nada no desenvolvimento da pesquisa? Não sei. Então, você pode ter esse mesmo tipo de conflito de interesse na questão da revisão dos protocolos, que pode ser para os dois lados: tanto pode ser uma coisa de estimular mais fiscalização, estimular mais o uso de medicamentos, quanto pode ter alguém com uma lógica gerencial absurda de começar a restringir o acesso das pessoas a certas coisas. Por exemplo: você põe um determinado medicamento novo no mercado que dá menos efeito colateral, então seria interessante usá-lo. Mas aí tem outro que é equivalente, o paciente vai sofrer mais um pouquinho [com efeito colateral], mas vai gastar bem menos. É uma lógica, é uma questão política isso, também tem que ser discutido. Eu acho que o elemento técnico é um dos componentes desse processo decisório, mas ele não pode ser fechado em si mesmo, acho que precisaria ter um espaço de discussão um pouquinho mais amplo. Agora, tem que revisar protocolo e diretriz clínica o tempo todo. A cada momento que se tem um processo novo, inovação tecnológica, alguma coisa tem que ser revista, e passar por uma série de avaliações. Eu não sei como é que está agora, mas acho que um grande avanço que aconteceu com relação ao SUS foi exatamente a implantação de um Departamento e uma Secretaria de Ciência e Tecnologia dentro do Ministério, foi passar a ter uma Comissão que examina, faz avaliação tecnológica de novos medicamentos, novas tecnologias, de uma maneira geral, antes de elas serem implantadas no SUS. Isso é um avanço. A gente está tratando com recurso público, então eu tenho que ter uma demonstração de eficácia para que aquilo seja de fato implementado no setor público.

Como essa atualização tem sido feita até hoje?

Tem aquela Comissão, que foi criada recentemente, dentro do Ministério da Saúde. Agora eu não sei como está isso, mas havia uma disputa para retirar, por exemplo, a questão do licenciamento do medicamento [de lá], ficar só com o INPI [Instituto Nacional de Propriedade Intelectual]. Uma das coisas que eles estavam falando para acelerar era o processo era retirar das mãos da Secretaria de Vigilância Sanitária o poder de barrar o registro de medicamento no país, porque diziam que ela leva muito tempo para fazer a avalição. Isso é suicida. Também há pressões indevidas. O exemplo da Fosfoetanolamina é uma delas. Aquilo foi uma maluquice e acabou adotando uma solução de compromisso que é permitir que ela seja comercializada como suplemento alimentar.