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Entrevista: 
Carla Domingues

“O PNI cumpre o princípio da descentralização, atuando numa rede articulada, hierarquizada e integrada”

Em 18 de setembro o Programa Nacional de Imunizações (PNI) completa 50 anos. Criado em 1973, após o êxito das campanhas de vacinação contra a varíola com o objetivo de coordenar as ações de imunizações, até então caracterizadas pela descontinuidade, pelo caráter episódico e pela reduzida área de cobertura, o PNI chega ao cinquentenário ofertando mais de 20 imunizantes para crianças, adolescentes, adultos e idosos, de forma gratuita, em todo o território brasileiro. Ex-coordenadora do Programa entre 2011 e 2019, a epidemiologista consultora temporária da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS) Carla Domingues avalia os desafios presentes e futuros para o PNI.
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 11/09/2023 15h02 - Atualizado em 11/09/2023 16h26

O PNI se manteve por 11 presidentes da república e 33 ministros da Saúde. Que fatores o tornam tão resiliente às mudanças políticas, estruturais e conjunturais do país?

O PNI, desde a sua criação, foi considerado uma política de Estado e não de governo. Neste sentido, ele se manteve na agenda prioritária de todos os governos, seguindo normas e procedimentos técnicos. O PNI é coordenado pelo Ministério da Saúde, de forma compartilhada com as secretarias estaduais e municipais de saúde e, desta forma, vem se consolidando como uma das mais relevantes intervenções em saúde. Caracteriza-se como uma política pública eficiente, impactando cada vez mais no perfil de morbimortalidade da população brasileira, adequando-se às mudanças ocorridas nos campos político, epidemiológico e social.

Que ações e/ou estruturas do PNI podem servir de exemplo para outros programas e políticas públicas, seja na Saúde ou até mesmo em outras pastas?

Atribui-se, pelo menos em parte esse sucesso, ao fato de o PNI seguir os princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS), da universalidade e equidade da atenção, bem como o princípio organizativo de descentralização com direção única em cada esfera de governo, definidos a partir da regulamentação do SUS, pela Lei Orgânica da Saúde (Lei no 8.080), de 1990.

No que tange ao cumprimento dos princípios do SUS, constata-se a universalidade da atenção pela oferta de imunobiológicos para todos os grupos-alvo da vacinação, nas mais de 38 mil salas de vacinas, nos 5.570 municípios brasileiros.

A equidade é observada pela ampliação da oferta de vacinas, nas estratégias de vacinação de rotina e nas campanhas, o que vai além do contexto territorial, mas sobretudo populacional, alcançando os grupos-alvo da vacinação, abrangendo todos os ciclos da vida, sendo ofertadas 17 vacinas para as crianças, 7 para adolescentes e 5 para adultos e idosos, que conferem proteção para mais de vinte doenças.

Ainda dentro deste aspecto há a disponibilidade de vacinas ofertadas nos Centros de Imunobiológicos Especiais (CRIE), que atendem a grupos com condições clínicas especiais, além da existência de calendários de vacinação diferenciados para gestantes, indígenas e militares.

Por fim, o PNI cumpre o princípio da descentralização, atuando numa rede articulada, hierarquizada e integrada, que exige discussão permanente sobre normas, metas e resultados, propiciando desta forma a sua operacionalização nas três esferas de gestão do SUS, o que tem contribuído para a redução das desigualdades regionais e sociais, viabilizando o acesso à vacinação para todos os brasileiros, em todas as localidades. A exemplo disso temos a estratégia de vacinação “Operação Gota”, que realiza a vacinação em áreas de difícil acesso geográfico e nas áreas indígenas na Região Norte do país.

Seria possível ao programa ofertar a quantidade e variedade de vacinas sem a existência de laboratórios públicos?

Na perspectiva de garantir a sustentabilidade dos insumos ofertados pelo PNI, a meta é buscar a autossuficiência da produção nacional, a longo prazo, fundamentada no fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde, com os principais insumos estratégicos sendo produzidos por laboratórios públicos. Dois principais mecanismos têm sido adotados para o estímulo da produção nacional: o estímulo ao desenvolvimento interno de produtos ou a busca de parcerias com os laboratórios privados, visando à realização de transferência de tecnologia para os laboratórios públicos. Essa ação tem permitido que os principais insumos estratégicos sejam produzidos por laboratórios públicos.

Como obter dados de cobertura vacinal com qualidade e integridade, para subsidiar as estratégias de vacinação?

Para subsidiar a gestão do programa, o PNI, a partir de 1994, em parceria com o Departamento de Informática do SUS (DATASUS), vem desenvolvendo e ampliando a utilização de sistemas de informação, evoluindo do registro consolidado de dados agregados ao registro individualizado (nominal) de vacinação, compreendendo o registro dos eventos adversos, da utilização e perdas de imunobiológicos, além da aquisição e distribuição de imunobiológicos.

Destaque-se que, a partir do ano de 2019, o registro de vacinados nas unidades básicas de saúde (UBSs) está progressivamente sendo feito a partir do Sistema de Informação da Atenção Básica (e-SUSAB), com objetivo de integrar os dados de todos os sistemas de informação em saúde que hoje são utilizados no SUS.

Diante da complexidade em que se tornou o Calendário Nacional de Vacinação (CNV), a partir das novas inclusões de vacinas ao longo da sua história, tem sido de extrema importância contar com o apoio das sociedades científicas, de classe e profissionais de notório saber, que compõem o Comitê Técnico Assessor (CTAI), criado em 1991. A atuação do CTAI tem possibilitado que as estratégias de vacinação definidas pelo Ministério da Saúde tenham a credibilidade e adesão da população.

O Programa é anterior ao SUS e à divisão de responsabilidades estabelecida pela Constituição de 1988. As ações da União, estados e municípios estão bem divididas para o seu bom funcionamento ou os desafios do presente demandam ajustes nesta ‘divisão de tarefas’?

As atribuições estão bem definidas e o que tem faltado são estas atribuições serem executadas conforme a definição já estabelecida.  Infelizmente, o PNI deixou de ser prioridade e passou a não ser contemplado na agenda política das três esferas de governo, faltando recursos financeiros e humanos para execução de todas as atividades necessárias para se atingir as metas preconizadas pelo Programa.

Em sua avaliação, quis os principais desafios do presente ao PNI?

No que tange ao seu objeto principal de atenção - termos a população protegida contra doenças evitáveis por vacinação -, está posto o desafio de estabelecer forte parceria com estados e municípios, sociedades científicas, entidades públicas e privadas, organizações governamentais e não governamentais para buscar a adesão da população, alcançar e manter elevadas coberturas vacinais, como as alcançadas entre os anos 2000 a 2016.

Em decorrência da diminuição da circulação de diversas doenças imunopreveníveis, a prevenção passa a ser colocada em segundo plano, acreditando-se, muitas vezes, ser desnecessária.

Como não existem mais casos de muitas destas doenças, passam, então, a prevalecer as notícias da ocorrência de eventos adversos relacionados à vacinação. Surge daí o medo de que as vacinas causem reações prejudiciais ao organismo. Esse tem sido um argumento usado por muitas pessoas para não se vacinarem ou não vacinarem seus filhos. Esses eventos [adversos], na sua maioria, são leves, apresentando dor e vermelhidão no local da injeção ou mal-estar, cansaço ou febre.

O aumento da disseminação de notícias falsas nas redes sociais, conhecidas como fake news, também tem contribuído para a hesitação em se vacinar. Frases com apelo emocional, sem nenhuma evidência científica, amplamente compartilhadas nas redes sociais e aplicativos de mensagens acabam por confundir a população e criar um pânico em torno dos possíveis efeitos colaterais. As fakes news estão sendo apontadas como um dos motivos da queda dos números relacionados à imunização no país.

Com a ampliação do calendário de vacinação, em especial das crianças, começa a surgir o receio de que o número elevado de imunizantes aplicados simultaneamente sobrecarregue o sistema imunológico. Estudos demonstram que, tanto na aplicação simultânea quanto na utilização de vacinas combinadas, não há interferência na eficácia das vacinas nem comprometimento do sistema imunológico. A simultaneidade de esquemas permite que, em uma mesma oportunidade, a criança seja vacinada com maior número de vacinas e, consequentemente, que haja proteção para um maior número de doenças. A não concomitância na aplicação das vacinas também pode estar relacionada com a inadequada capacitação dos profissionais de saúde que atuam nos serviços de vacinação.

O calendário ficou mais complexo, exigindo um amplo conhecimento dos profissionais sobre os esquemas vacinais e a sua atualização, em especial para as crianças que chegam aos postos de vacinação em atraso. Visando à qualificação das equipes de vacinação, o PNI tem investido na realização de capacitações on-line, com o objetivo de aumentar a capilaridade dessa rede. São realizados diversos cursos nessa plataforma, com diferentes temáticas e abordagens. No entanto, ainda é necessário ampliar a formação dos profissionais de saúde que atuam nas salas de vacinação, e essa deve ser uma prioridade não só do Ministério da Saúde, mas dos estados e municípios, pois são estas instâncias que têm a competência de manter a sua rede preparada para atender a sua população.

Outra questão que pode estar relacionada à dificuldade na vacinação é a irregularidade no fornecimento dos imunobiológicos decorrentes de problemas de produção, tanto relacionados ao processo produtivo dos laboratórios públicos quanto dos privados, identificada nos últimos anos. Ao ocorrer o desabastecimento de uma vacina, mesmo que em curto prazo, pode haver a consequência de que o responsável pela criança não tenha tempo de voltar ao serviço no momento oportuno da vacinação. Essa criança poderá ser vacinada posteriormente, com atraso, mas, dependendo da sua idade, essa dose não contará para os cálculos de cobertura vacinal, o que pode comprometer o seu monitoramento.

Além disso, é necessário que haja uma rede de logística informatizada de distribuição e armazenamento para otimizar o uso dos insumos, em especial, com redução da perda de vacinas. A grande expansão territorial do país e a ampliação das salas de vacinas nos últimos anos exigem uma enorme complexidade para manter esses serviços abastecidos, portanto, é crucial minimizar a ocorrência dessas perdas, principalmente em momentos de desabastecimento.

A falta de tempo dos pais e/ou responsáveis para levar as crianças aos postos de vacinação é uma questão comumente relatada para o atraso na vacinação, que é potencializada se pensarmos nos milhões de brasileiros trabalhadores informais, em grande parte mulheres responsáveis financeiramente por suas famílias, que não têm disponibilidade plena para se dirigir a uma unidade de saúde em qualquer dia ou horário. Daí a necessidade de se rever a adequação dos serviços de vacinação, buscando torná-los compatíveis com esta realidade da população.

A extensão de horário de atendimento das unidades básicas de saúde para um terceiro turno de funcionamento, ou até mesmo sua abertura ao público em finais de semana e feriados, é uma estratégia que já vem sendo realizada em algumas cidades brasileiras para ampliar o acesso à vacinação.

E em relação ao futuro, como o PNI deve se preparar para continuar sendo relevante diante das mudanças demográficas e epidemiológicas do Brasil?

Ao olhar o futuro do PNI, vislumbra-se a necessidade da consolidação das conquistas já alcançadas e o enfrentamento dos desafios postos pela crescente complexidade do perfil epidemiológico das doenças transmissíveis num mundo em que os riscos sanitários são compartilhados de forma quase imediata.

Para superar os desafios impostos, é preciso uma integração cada vez maior do PNI em todas as esferas de gestão do SUS, bem como com outras áreas do setor saúde, dos setores sociais e da educação e, fundamentalmente, a participação efetiva dos profissionais de saúde que levam as ações de vacinação para cada cidadão. Os vacinadores, os grandes responsáveis por todo esse sucesso alcançado, precisam voltar ao seu engajamento na mobilização da população, mas tendo condições adequadas para o desenvolvimento das suas atividades.

O fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde também é fundamental neste momento de crise de produção mundial dos imunobiológicos. Só com a ampliação da produção de vacinas, respeitando as condições de boas práticas de fabricação, é que se interromperá esse vácuo no fornecimento dos produtos ofertados pelo PNI, pois a garantia do orçamento, por si só, não tem sido capaz de manter as salas de vacinas abastecidas.

A finalização da implantação do sistema de informação com registro nominal é primordial para garantir o adequado monitoramento dos ICV [índices de cobertura vacinal], conseguindo, dessa forma, identificar os reais bolsões de suscetíveis (indíviduos não imunizados) em tempo oportuno e, assim, poder desenvolver estratégias para garantir a manutenção de elevadas coberturas vacinais.

Consegue vislumbrar um futuro no qual o Programa migre da oferta de vacinas para doenças infectocontagiosas para as chamadas vacinas terapêuticas, que combatem as doenças crônico-degenerativas?

Não acredito que haja uma migração, uma vez que a prevenção das doenças sempre será necessária por meio das vacinas. No entanto, haverá uma ampliação do escopo de trabalho, com o surgimento das vacinas terapêuticas, e estes dois tipos de vacinas serão usados de forma complementar.

A taxa de natalidade no país vem caindo. Isto libera espaço no Orçamento do programa para o aumento de oferta de algumas vacinas a novos públicos?

O calendário atual já contempla vacina para adolescentes, adultos e idosos e pessoas com condições especiais, independentemente da mudança do cenário demográfico do país.

Ao longo dos anos, o Programa cresceu em oferta de imunizantes, para diferentes públicos. De que forma a incorporação de novas tecnologias, como a de RNA, pode impactar na oferta de vacinas para novos alvos?

Ampliando o desenvolvimento rápido de novas vacinas, a um custo menor e com produção mais rápida.

No momento, debate-se a possibilidade de introdução da vacina de dengue. Durante sua gestão, foram introduzidas algumas vacinas. Qual o peso do impacto econômico no debate sobre a oferta de um novo imunizante pelo PNI?

Cada vacina, de acordo com o seu custo, pode gerar um maior ou menor impacto econômico no orçamento do PNI. No entanto, este é apenas um dos critérios a serem levados em conta na introdução de uma nova vacina.  A introdução de novas vacinas aos calendários de vacinação do PNI passa, portanto, a ser pautada por outros critérios além dos epidemiológicos. Se antes se levava em conta a necessidade de vacinação da população para diminuir as taxas de morbimortalidade de uma determinada doença, agora também passam a serem analisados outros aspectos relativos à própria condição da vacina (fatores imunológicos), bem como fatores operacionais, socioeconômicos, financeiros, tecnológicos e legais.

Além das inovações em produtos, que processos do Programa podem ser objeto de melhoria? Há locais no território brasileiro que demandam o transporte de vacinas por drones, por exemplo?

Creio que são repensar o modelo de vacinação do país, com a melhoria no acesso aos serviços de saúde, ampliando os horários de funcionamento das salas de vacina, inclusive nos finais de semana; realizar o monitoramento mensal das coberturas vacinais para identificar os bolsões de pessoas não vacinadas e os grupos com menor adesão; desenvolver estratégias locais para resgate do não vacinado, considerando as peculiares de cada município; garantir que todas as vacinas estejam registradas no sistema de informação, o que facilitará o monitoramento dos vacinados, não só crianças, mas toda a população; desenvolver uma ação de comunicação mais efetiva, garantindo que a população tenha a informação correta sobre a importância da vacinação, os benefícios de se manter elevadas coberturas vacinais e o enfrentamento das fake news; ampliar o processo produtivo das vacinas no país, com apresentações com menor enfrascagem, diminuindo a taxa de desperdício e garantindo que as salas de vacinação estejam constantemente abastecidas; e ampliar a capacitação dos profissionais de saúde e o número da força de trabalho.

Em 2024, o PNI dará um grande salto ao descontinuar a vacina pólio oral e passar a utilizar apenas a vacina pólio inativada. Pode-se afirmar que é uma importante ação para a meta de erradicação global da poliomielite?

A vacina poliomielite oral atenuada (VOP) teve um papel fundamental na diminuição da circulação do vírus em todo o mundo. Em decorrência da vacinação, os casos de poliomielite pelo vírus selvagem diminuíram mais de 99,9%, nos últimos anos.

A região das Américas foi a primeira região do mundo a obter o Certificado de Erradicação da Poliomielite provocada pelo vírus selvagem, sendo que o último caso notificado em nosso país foi em 1989.

Ainda temos países onde a pólio por vírus selvagem é endêmica e vários países no mundo apresentam a circulação de poliovirus derivado da vacina oral atenuada, acarretando não só novos casos da doença, como favorecendo a circulação do vírus atenuado dentro da comunidade e o aparecimento de novos casos de pólio.

Por esta razão, a Organização Mundial da Saúde recomenda que os países façam a mudança no calendário vacinal da criança da VOP para a vacina poliomielite inativada (VIP), que contém vírus mortos e, portanto, não pode causar tanto a doença como a circulação no meio ambiente do vírus derivado da vacina, que também tem o risco de adoecimento da população. Para que a meta de erradicação global seja atingida, esta migração terá que acontecer de forma global.

O Brasil fez a primeira mudança em 2012, quando substituiu as duas primeiras doses pela VIP e as demais continuaram a ser feita com a VOP. Em 2016, o esquema primário (com as doses aos dois, quatro e seis meses) passou a ser feito com a VIP e os reforços, aos 15 meses e 4 anos de idade com a VOP.  Agora é hora de passar a ser utilizar somente a VIP, em todas as doses recomendadas no calendário infantil.

Portanto, é fundamental buscar o desenvolvimento de estratégias para manter a doença erradicada no país, não só a pólio provocada pelo vírus selvagem, mas também a pólio provocada pelo vírus atenuado derivado da vacina oral, além da manutenção de alta cobertura vacinal.

Com esta mudança no calendário de vacinação, será essencial que todos os municípios atinjam elevadas coberturas vacinais (95% ou mais), pois só desta forma nossas crianças continuarão livres desta doença que já ceifou a vida de milhares no passado, além de deixá-las com sequelas irreversíveis, como a paralisia infantil.