Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Luiz Roberto Moraes

‘O saneamento básico passou a ser um novo ambiente de negócios’

Houve um tempo, lá pela década de 1990, em que se falava abertamente em privatização. Com o avanço das políticas sociais tocadas com forte condução governamental nos anos 2000, parecia fora de moda a ideia de um Estado mínimo, que entrega à iniciativa privada o mastro do desenvolvimento econômico. No momento da atual crise política brasileira, o governo interino de Michel Temer parece recuperar o discurso (e a prática) da privatização, de forma ainda mais ampliada, atingindo diretamente as políticas sociais. A bola da vez é a política de saneamento básico, que deve integrar um pacote de concessões proposto pela União como parte do Programa de Parcerias de Investimento (PPI) — o novo nome, mais palatável, que a privatização ganhou no governo interino. Depois de anunciar no seu programa antecipado de governo, o ‘Ponte para o futuro’, que promoveria amplas “concessões” e “parcerias” com a iniciativa privada para “complementar a oferta de serviços públicos”, a imprensa começou a noticiar, aqui e ali, o ‘potencial’ dessa área para o ‘avanço’ do setor privado e o consequente desenvolvimento econômico do país. O passo mais concreto foi dado no último dia 15 de agosto, quando o governo interino propôs que o governo do Rio de Janeiro inaugurasse a privatização do sistema de saneamento no país. Nesta entrevista, Luiz Roberto Moraes, professor da Universidade Federal da Bahia e um dos maiores especialistas da área no país, desmente os números apresentados pelas empresas privadas que já atuam no setor, mostra exemplos bem sucedidos de políticas estatais nessa área e defende que uma necessidade social, como é o caso do tratamento de água e esgoto, não pode ficar a cargo de grupos cujo objetivo é aumentar a sua própria lucratividade.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 17/08/2016 13h20 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Nesta segunda-feira (15), o governo interino apresentou ao governo do Rio de Janeiro uma proposta de concessão do sistema de saneamento do estado à iniciativa privada, um primeiro passo concreto nisso que vem sendo chamado de Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Esse programa – que foi anunciado como uma das grandes apostas do governo Michel Temer – representa uma inflexão no contexto de privatização do saneamento no país?

Esse programa é a retomada do programa de privatizações do então governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Naquela época ele deflagrou um processo de privatizações e, agora, o governo interino, por meio de uma Medida Provisória encaminhada em maio, quer instituir esse PPI que tem uma abrangência em todas as áreas e acaba incluindo também o saneamento. O que não é uma grande novidade porque o processo de entregar para a iniciativa privada a exploração dos serviços de saneamento já vem sendo tentado no Brasil há muito tempo. Ultimamente o formato de entrega para exploração que tem se mostrado mais desejado pelo capital é o das parcerias público-privadas. Na área de saneamento, como sempre aconteceu na história mais recente do Brasil, houve espaço para atuação da iniciativa privada, mas isso acontecia na fabricação de materiais e equipamentos necessários ao saneamento básico, elaboração de projetos de engenharia, as próprias obras de engenharia. Mas o capital quer mais. Ele quer o domínio integral, não só fabricar e executar as obras, mas também operar e manter os sistemas físicos de abastecimento e esgotamento. Para ficar mais claro, o saneamento básico é composto no mínimo por quatro componentes: o abastecimento de água, o esgotamento sanitário, a drenagem ou manejo das águas pluviais e a limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos. E desses quatro componentes, os que parecem ser mais atraentes ao capital são o abastecimento de água e o esgotamento sanitário. Isso porque tradicionalmente no Brasil são serviços cobrados por meio de tarifas e isso é visto como uma oportunidade de negócio, um mercado excepcional para atuação. Então, a pressão do capital vai ser permanente nesse sentido, e quando encontra um governo como este que está aí colocado, interino, abre-se a possibilidade de ampliar e acelerar a privatização.

Numa busca rápida por matérias, artigos de opinião, esses argumentos usados para defender a privatização do saneamento aparecem muito mais. Diz-se que gerará mais eficiência, menos perda de água, que resolverá o problema do investimento travado pela crise fiscal dos estados e municípios, que trará uma gestão baseada em metas e resultados. O senhor daria um exemplo que mostre o contrário?

No Brasil nós temos exemplos muito bons de órgãos do poder público na área de água e esgoto, autarquias municipais atuando de forma supercompetente, séria, comprometida, engajada com a sociedade, com o espírito público mesmo de prestar o serviço público para todos com qualidade. E óbvio, a campanha que eles vão fazer vai ser sempre essa de tentar usar a grande mídia para denegrir, como é feito em relação aos serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde.

Em 1984, os municípios, por serem excluídos da política daquela época, que era instituída pelo Plano Nacional de Saneamento, centralizado no BNH, criaram uma associação que hoje se denomina Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento, Assemae é a sigla. E ela congrega os municípios no Brasil que prestam diretamente os serviços, e realiza todo ano uma assembleia que é praticamente uma semana inteira para discutir a política de saneamento, a política de prestação dos serviços de saneamento, as dificuldades. Por exemplo, o município de Santo André, em São Paulo, iniciou com serviço autônomo de água e esgoto, depois foi incorporando os resíduos sólidos, as águas pluviais, a gestão ambiental, a defesa civil, e num único órgão municipal são prestados seis serviços diferentes, e com uma competência e uma qualidade excepcionais. Eu estou dando esse exemplo, mas existem diversos outros espalhados pelo Brasil, e a gente tem que disseminar para a sociedade que temos que nos espelhar em algo desse tipo. Também existem alguns estudos científicos nas universidades brasileiras. Na Universidade Federal de Minas Gerais, Marcelo Libânio estudou diferentes modelos de prestação de serviços em Minas utilizando indicadores socioeconômicos, indicadores de saúde e tal, e ficou patente no estudo dele que os municípios onde a prestação do serviço de água e esgoto era feita pela autarquia municipal apresentavam os melhores indicadores para a sociedade.

Eu acho a autarquia a melhor forma de organização do ponto de vista de natureza jurídica, para que o município possa estruturar e prestar o serviço de saneamento. Agora, sob o controle social o tempo inteiro, porque muitas vezes o prefeito ou prefeita pode agir de maneira irresponsável, pode influenciar negativamente aquela estrutura municipal que vinha funcionando de maneira exemplar. Então, se a sociedade não estiver presente o tempo inteiro, pode haver uma deformação daquele serviço.

Qual é o histórico da privatização do saneamento no Brasil?

O processo de privatização dos serviços – principalmente de água e esgoto – já vem de muito tempo no Brasil. Após o Golpe Militar, em 1964, o governo então de exceção instituiu o Plano Nacional de Saneamento, o Planasa, que era gerido pelo então Banco Nacional de Habitação, BNH, que tinha criado um sistema financeiro para o saneamento. Esse sistema era concebido de uma forma em que os estados deveriam criar a sua empresa estadual de água e esgoto, que prestaria esse serviço, senão na totalidade, na maioria dos municípios daquele estado, ou principalmente nos mais rentáveis. E os municípios que eram os detentores da titularidade [do serviço de saneamento] não participaram dessa política, eram praticamente obrigados a aceitar ou a conceder a exploração dos serviços para a Companhia Estadual de Água e Esgoto. Bom, desde aquela época impera a lógica empresarial de que os serviços seriam autossustentáveis, ou seja, a cobrança pelo serviço arrecadaria recursos num montante tal que desse para pagar o custeio, o funcionamento dos serviços, e também fazer o retorno dos juros da amortização do investimento contraído junto ao BNH, que era o recurso do FGTS. Ainda dentro dessa lógica empresarial, o fato de criar companhias estaduais no formato de empresas já foi o primeiro passo para depois entregar isso à iniciativa privada. E a iniciativa privada foi cada vez mais ampliando sua participação no saneamento. De lá para cá, houve diversas tentativas das empresas privadas operarem diretamente os sistemas, principalmente os de água e o de esgoto, sobre diferentes formas. Em alguns períodos, com o próprio apoio do Banco Mundial, que, por exemplo, quando financiava para saneamento, colocava um condicionante na direção de que aquele financiamento seria mais bem visto caso o serviço fosse privatizado. E aí essas tentativas geraram o quê? Geraram algumas concessões privadas, ou subconcessões para empresas brasileiras e também estrangeiras. Foi o caso de Limeira, município de São Paulo, quando a Suez Lyonnaise des Eaux, empresa francesa, uma das maiores do mundo, se associou à Odebrecht e obteve uma concessão bastante contestada da exploração do serviço de água e esgoto de lá. Então, a forma de concessão era um formato, a concessão poderia ser plena ou de parte do serviço, que a gente chama de concessão parcial. Aí depois se instituíram as parcerias público-privadas. Nosso país tem inclusive uma lei federal para isso, a 11.079 de 2004, que abre a possibilidade dessa tal parceria entre o setor público e a iniciativa privada. E mais recentemente também tivemos um formato de alocação de ativos em que o privado construiria a estrutura, e essa estrutura seria arrendada pelo poder público para poder fazer uso dela. São diferentes formatações porque a Constituição impede que os ativos, ou seja, as estruturas sejam de propriedade das empresas privadas.

Em síntese, faz 52 anos que a gente vem nesse processo: municípios relegados a um segundo plano, constituição de empresas estatais estaduais já concebidas para numa etapa seguinte passarem para a mão da iniciativa privada, e a iniciativa privada também criando suas próprias empresas para a exploração. E ao longo do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso isso começa a tomar um impulso maior, continua nos governos do presidente Lula, também no primeiro governo da presidente Dilma, e aí já caracterizado numa ênfase maior como parcerias público-privadas. Sempre houve essa tentativa da iniciativa privada abocanhar a prestação desses serviços aqui no Brasil.

E esses formatos de privatização – concessão plena, parcial, PPP – qual deles é o pior em termos de abocanhamento do recurso público, ou não tem muita diferença?

As parcerias público-privadas, porque funcionam nos moldes do capitalismo sem riscos. O tal parceiro é sempre parceiro entre aspas, porque o parceiro privado acaba usufruindo bastante dos recursos públicos, através de linhas de crédito a juros baixíssimos, apropriando-se desses recursos, e uma vez no exercício da operação e manutenção, ou seja, da exploração dos serviços públicos de água e esgoto, ele praticamente determina para onde é que vai expandir o serviço, para onde é que vai prestar. Daí a visão de que entre uma população de baixa renda na periferia que muitas vezes nem tem ainda o serviço de saneamento, ou tem de maneira inadequada, e uma população de renda média, ele prefere, óbvio, investir naqueles bairros com esse perfil de maior capacidade de pagamento, porque sabe que ali vai obter lucro sem risco nenhum. Enquanto lá na periferia ele pode não conseguir obter o retorno monetário desses recursos aplicados.

Para entender melhor o mercado, grupos como Odebrecht, OAS e outras construtoras apostaram na criação de empresas de saneamento. Essa vinculação entre empreiteiras – com todo o poder que reconhecidamente essas empresas têm no jogo eleitoral e na política – e saneamento foi preponderante para que a agenda da privatização fosse para o primeiro plano?

As empreiteiras foram vendo que água e esgoto eram uma área promissora. Então, se você pegar todas essas que estão envolvidas na Operação Lava Jato, as grandes empreiteiras no Brasil, você vai ver que elas têm uma subsidiária na área ambiental, que trabalha a questão do saneamento. É uma possibilidade de atuação para novos projetos, novas obras. E quando eu falo projetos e obras, é dentro da visão do interesse delas, não necessariamente da demanda da sociedade. E aí eles foram fazendo o lobby para poder ir expandindo o negócio, porque eles olham para isso como olham para tudo, como um ambiente de negócios. O saneamento básico passou a ser um novo ambiente de negócios, em que, além de executar a obra, depois você ainda lucra operando aquele sistema físico. Essa é uma estratégia em que eles jogaram todos os esforços no sentido de influenciar a política pública, influenciar a elaboração e a aprovação de leis. Tem empresas que batem no peito e falam: a Lei das Parcerias Público-Privadas saiu porque nós estivemos dentro do Congresso Nacional trabalhando diuturnamente lá. Tudo para eles é uma mercadoria, e aí a água e depois a coleta e o tratamento do esgoto passou a ser vista também como uma mercadoria. Então eles se lançam para poder trabalhar no sentido de vir a ocupar esse espaço que até então estava sendo ocupado pelas empresas estatais estaduais, algumas poucas municipais criadas no formato de empresa. A maioria de serviços autônomos de água e esgoto funciona de maneira exemplar, com prestação de muito boa qualidade, muito bem organizados. Mas aí vem uma avalanche do capital com as empresas querendo dominar esse ambiente de negócios, como eles chamam. E para isso daí eles utilizam toda a força política e econômica que têm.

Quem são os principais atores empresariais que vocalizam esse lobby? Eles se organizam em entidades, think tanks, etc.?

Eles precisaram se organizar. Criaram 20 anos atrás a Abcon [Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto] e o Sindcon, que é o sindicato associado. Todo ano eles lançam um panorama da participação do setor privado, como eles chamam, nos serviços públicos de água e esgoto. E se você der uma olhada nesse panorama, vai ver as empresas e onde estão operando com os contratos que foram adjudicados a elas, projetando um volume de recursos para o final dos contratos, e também uma população a ser atendida. E aí precisa se ter muita cautela na análise desses dados. Para jogar para a plateia e dizer que eles já atuam na quantidade grande, em termos de atendimento da população, o número que eles utilizam é do final dos contratos. E há contratos que são concessões com vigência de 60 anos. Uma aberração. A população que está sendo efetivamente atendida por eles ainda é uma população muito pequena. Mas usando essas projeções, eles chegam a um número de 31 milhões habitantes que, dividido por 200 milhões da população, dá em torno de uns 15% dos brasileiros. Mas repito: isso não é a realidade. Eles fazem isso para mostrar a pujança deles, para advogar que é irreversível esse processo de privatização. A entidade é formada para defender esses interesses empresariais.

Na mesma linha, existe o Instituto Trata Brasil. Ele é criado com esse nome pomposo de Instituto, e as pessoas muitas vezes pensam que é uma entidade técnico-científica. Não é isso. Essa OSCIP foi criada por grandes empresas fabricantes de materiais interessadas no negócio de fabricar e vender tubulação para esgotamento sanitário inicialmente. Estão lá Amanco, Tigre, Braskem – que é da Odebrecht...

Tem até a Coca-Cola.

Pois é, outras foram se agregando ao longo do tempo. Estou muito à vontade para falar em relação a isso porque esse Instituto tem umas figuras que eles chamam de embaixadores. Eu já fui convidado duas vezes. E declinei dos convites porque nós estamos em campos opostos. Eu sou cientista e, como trabalhador intelectual, exerço minha cidadania no sonho, na utopia de um dia toda a população deste país ter saneamento com tecnologia apropriada a sua realidade social, econômica, cultural, ambiental, institucional, a preço módico. E não fazer do saneamento uma mercadoria. Porque para a gente conseguir o saneamento universal, a iniciativa privada não deve estar à frente da operação e manutenção porque aí quem dita o que vai ser feito, quando vai ser feito, como vai ser feito é ela. E o Instituto é esse órgão de divulgação dos interesses das empresas. E como têm muito dinheiro, eles têm um acesso à mídia muito grande, contratam algumas pesquisas.

Tem muitas pesquisas em parceria com a Fundação Getúlio Vargas [FGV].

Eles vão à academia, tentam ampliar o escopo de atuação para chegar ao objetivo. E aí existe uma coincidência de propósitos entre o Instituto Trata Brasil e a Abcon, porque ambos trabalham na direção de tentar denegrir o poder público para poder convencer a sociedade de que a solução é a privatização dos serviços públicos de saneamento.

Como a crise hídrica em São Paulo ilustrou o conflito de interesses intrínseco a inserção da lógica do lucro num serviço público como o saneamento?

O exemplo da Sabesp é bom. Até quando eu comentei lá atrás as formas de privatização eu deixei de falar que há quase duas décadas o governo de São Paulo tomou a decisão de abrir o capital da Sabesp. E aí vendeu ações da Sabesp na Bolsa de Valores de São Paulo, na Bovespa, e na Bolsa de Valores de Nova Iorque. E aí o Estado ficou com 50,3% das ações, e 49,7% foram para a mão de acionistas privados, que querem todo ano os seus dividendos. E isso daí faz com que, ao invés de ser reinvestido para se fazer o que é necessário em termos dos serviços públicos de água e esgoto no estado de São Paulo, nos municípios onde ela atua, uma boa parcela do lucro da Sabesp seja destinado para pagar os acionistas. Óbvio que isso contribuiu bastante para a crise. São Paulo tem instrumentos de planejamento que deveriam ter sido implementados. E esses instrumentos não foram seguidos pela Sabesp porque a empresa tinha que atender a essa outra lógica, financeira. O outro problema é privilegiar os maiores consumidores de água. Ou seja, vender água como se fosse um insumo, não olhando a água como bem essencial à vida, não privilegiando o abastecimento da população. Esse é um conflito que a Sabesp viveu, vive e viverá porque os acionistas vão bater na porta dela todo ano e dizer: cadê o nosso dividendo das ações? Isso mostra mais uma vez a lógica do capital: ‘Eu vou racionar para a população para poder abastecer esse grande consumidor aqui porque o aporte de recursos dele no pagamento dessa água que eu estou vendendo é maior’. Em plena crise hídrica, a Sabesp acabou gerando um lucro substancial. Você vê que durante todo o período da crise hídrica de São Paulo não teve um canal de televisão que colocasse em questão que a Sabesp era pressionada a render os dividendos anuais. Então, a grande mídia estava completamente dominada e a população achando que a questão era São Pedro.