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Entrevista: 
Ana Lúcia Pontes

“Os indígenas entendem que as políticas públicas devem passar por sua análise e que precisam contemplar seus povos”

Pesquisadora do grupo “Saúde, Epidemiologia e Antropologia dos Povos Indígenas” da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), e integrante do Conselho Estadual de Direitos Indígenas do Rio de Janeiro, Ana Lucia Pontes aborda nesta entrevista o histórico da política de saúde indígena no Brasil.
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 19/04/2024 15h16 - Atualizado em 19/04/2024 15h37


Como a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) impacta na formulação de políticas públicas de saúde indígena?

A Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] é um órgão indigenista de proteção dos povos indígenas. Quando ela foi criada, na verdade como sucessora do Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910, ela ficou com um conjunto de políticas indigenistas.

Desde a década de 1980, quando começou o debate da reforma sanitária e da mudança do sistema nacional de saúde, também começou a haver um debate dentro da Funai, de seus parceiros e entre lideranças indígenas sobre a questão da saúde indígena. E havia um diagnóstico muito claro de que a Funai não tinha condições e estruturas para dar conta da saúde, tanto do ponto de vista da prevenção, quanto da assistência. E todo o movimento indigenista, no debate sobre isso, era composto por pessoas alinhadas à reforma sanitária.

Não era um movimento separado, à parte. As pessoas que participavam do debate estavam também participando das ações ligadas à formulação do SUS, eram pessoas que no escopo da reforma sanitária viam que as ações de saúde indígena deveriam estar dentro do sistema de saúde e não como uma instituição à parte, ainda mais uma instituição que não tinha vocação ou estrutura, física ou de profissionais, para fazer uma assistência integral à saúde.

Então, quando ocorre a 8ª Conferência Nacional de Saúde, as lideranças de médicos e de profissionais de saúde que atuavam com os povos indígenas propõem que a saúde indígena fique sob o SUS.

 

A Fiocruz participa de alguma forma nessas formulações?

Houve uma articulação, inclusive com a participação do próprio Sérgio Arouca [presidente da Fiocruz entre 1985 e 1988], de que deveria haver uma conferência temática de saúde indígena. Em novembro de 1986, aconteceu a 1ª Conferência Nacional de Proteção a Saúde do Índio, quando se discutiu como seria a inserção diferenciada dos povos indígenas no novo sistema de saúde. E uma das discussões, naquele momento, era sobre a gestão e a execução da saúde dos povos indígenas dentro do SUS, esse novo sistema de saúde que estava nascendo.

Então, foi decidido que a saúde indígena deveria estar dentro do sistema de saúde, mas ela deveria ser organizada pela esfera federal e não no caminho da municipalização. Essa é a única discordância que o movimento indigenista tinha em relação aos marcos da reforma sanitária, de que não fosse, primariamente, dos municípios a execução da saúde indígena, que a mesma continuasse sob âmbito federal, como as outras políticas indigenistas.

Então, portanto, lá na primeira Conferência de Proteção à Saúde Indígena, já saiu uma indicação de que fosse criado, dentro do Ministério da Saúde, com urgência, uma secretaria para garantir a execução.

 

Por que este posicionamento por uma gestão federal, e não municipal?

O debate sobre as políticas indigenistas precisa considerar algo fundamental, que as pessoas esquecem. O conflito de interesses existe há 524 anos e, em sua base, ele é por território. Então, nos níveis local e regional, você lida com as pessoas que disputam esse território. Geralmente, nas cidades e estados, as correlações políticas são, majoritariamente, contra os indígenas, em prol de outros interesses. Então, esses povos perdem a disputa política local, a disputa pelo território. O prefeito e o secretário de saúde, em geral, serão alguém que é ou tem relação com alguém que disputa a terra. É o caso de Roraima, onde o poder político local defende a atividade de garimpo.

Diante dessa realidade, o único jeito de proteger os indígenas dos interesses econômicos e inclusive de parcelas do próprio Estado brasileiro é mantendo isso, a gestão de seus temas sob nível federal. Porque dessa forma a formulação das políticas, e sua implementação, fica um pouco mais distanciada das disputas locais pela terra.

 

E no caso dos indígenas que vivem em metrópoles?

Tirando cidades grandes como São Paulo (SP) e Porto Alegre (RS), em que você não tem tanto essa disputa territorial e há exemplos bem sucedidos de ações municipais de assistência de saúde, no geral, as experiências são muito ruins, mesmo após a implementação de iniciativas que levam os recursos para os municípios executarem a saúde indígena. Em geral, o que acontece é que eles não executam e não garantem a implementação das ações. Por isso, sempre houve a defesa de que a saúde indígena deveria ser responsabilidade do ente federal, e que isso deveria ocorrer dentro do Sistema Único de Saúde. Mas isso foi permeado por outras disputas políticas.

 

Disputas referentes a exatamente o quê?

A própria disputa pela Funai existir como órgão, ela precisa de recursos e não dispunha. Lembremos o que estava ocorrendo naquele momento, final da década de 1980 e início da de 1990, ao redor do mundo. Havia uma série de investimentos do Banco Mundial para pressionar o governo brasileiro, porque a temática ambiental estava ganhando escopo. Tivemos a ECO 92 aqui no Brasil e começou a entrar uma soma grande de recursos para o governo brasileiro, mas condicionado à proteção dos povos indígenas.

Então, começou uma disputa de interesse político. Por um lado, a própria Funai, que estava buscando melhores condições para existir, continuava querendo, de alguma forma, manter seu poder dentro do Ministério da Saúde, e a ideia de uma secretaria para os povos indígenas não vingou naquele momento. Então, qual foi o órgão que se alavancou? A Funasa [Fundação Nacional de Saúde], como uma autarquia, uma instância dentro do Ministério da Saúde.

Em paralelo, continuou a movimentação para que a Funai comece a funcionar como o mecanismo do Ministério da Saúde na execução da saúde indígena. Essa disputa política entre a Funai e a Funasa, que aconteceu na década de 1990, é um dos motivos pelo qual a Lei Arouca atrasou [lei nº 9.836, que criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena]..

 

Qual o impacto da Lei Arouca?

Quando foi aprovada a Lei Arouca, conseguiu- se que a saúde indígena fosse mantida sob responsabilidade do ente federal, do Ministério da Saúde, mas por meio da Funasa. Então, o subsistema foi criado dentro de uma gestão federal e a Funasa criou os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Só que o grande nó continuou a ser o modelo de execução. A Funasa tinha serviços de saúde profissionais para executar o planejamento em 34 territórios.

Ocorre que passaram a existir muitos problemas nessa execução, seja pelo modelo, e também por denúncias de corrupção. Isso gerou uma nova articulação, dos próprios indígenas, para mudar o modelo da gestão da execução. Todo esse debate permeou a 4º Conferência Nacional de Saúde Indígena, em 2006, que avaliou o papel da Funasa, e ocorreu um ‘racha’. Isso foi se desdobrando até se montar um grupo de trabalho, em 2009, organizado junto com as lideranças indígenas, para criar um novo modelo, que é quando surgiu a articulação para criar a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

 

A Sesai incorporou que tipo de organização do trabalho?

O modelo foi baseado nos 34 DSEIs que já existiam, mas que, até então, tinham a Funasa como gestora. Algo que vinha desde 1993, com a Segunda Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas. É um modelo de territorialização da saúde indígena, dentro do conceito da reforma sanitária. Distrito Sanitário é um conceito da reforma sanitária brasileira que estava colocado na 8ªConferência [Nacional de Saúde], que foi estratégico porque foi proposto pelo Eugênio Vilaça Mendes, utilizando o conceito de território do Milton Santos, um conceito de território que não é só físico, administrativo, mas como processo social. Tal conceituação é bem próxima do eixo chave para os indígenas e toda sua luta, para a noção de território que eles possuem.

 

Houve ocupação de espaços institucionais de poder no Ministério da Saúde pelos indígenas naquele período?

A relação com o Estado era de autonomia, mas, desde o começo da discussão, lá em 1986, os indígenas reivindicavam ser sujeitos das políticas públicas no Brasil, diferente do que ocorre com populações originárias de outros países.

Há países em que os indígenas optam majoritariamente por não querer nada com o Estado. O movimento indígena brasileiro não. Ele é pró inclusão e demanda do Estado assumir responsabilidades. Ressalto aqui o termo majoritariamente porque não se pode falar em unanimidade quando falamos em movimentos indígenas, são muitos povos, culturas e realidades distintas.

 

E quais as singularidades da oferta de Saúde para esses povos?

Sempre houve uma crítica contundente à medicalização dos indígenas, de que o modelo de ofertar ações pontuais só para epidemias, com medicalização, não é um processo promotor de saúde, de ajudar a prevenir. Bem como houve o debate sobre a Atenção Primária.

Só que quando se pensa na Atenção Primária, o que precisa ser observado é que os indígenas têm noções distintas de corpo, de percepção da doença e de tratamentos. Por isso, surgiu a ideia de uma atenção diferenciada, de que o modo de execução das ações de saúde deveria ser feito de acordo com as questões geográficas e epidemiológicas, mas também as socioculturais.

 

Qual o impacto da criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a ocupação da Sesai por um secretário indígena, no atual governo federal?

São duas coisas em uma, a discussão do movimento indígena sobre essa tomada de responsabilidade na execução das políticas públicas. Eles fizeram esse debate no grupo de trabalho antes da virada do governo [da gestão federal 2018-2022 para a 2023-2026] e, desde o começo, a decisão que prevaleceu foi a de que essas grandes políticas públicas não seriam retiradas dos seus órgãos. Então, nunca se defendeu retirar a Sesai para levar ao MPI ou as ações de Educação do Ministério da Educação, os indígenas não querem criar um sub governo. Eles entendem que as políticas públicas devem passar por sua análise e que precisam contemplar seus povos. Então, a criação do MPI, em minha avaliação, tem a ver com uma ideia de reparação e de dar visibilidade e protagonismo aos indígenas, mas com o Ministério tendo uma dimensão mais de articulação das políticas.

Em paralelo, há o protagonismo dos indígenas, porque eles vêm se qualificando. Eles têm um conjunto de lideranças e pessoas que tem qualificação acadêmica e experiências como gestores, ao mesmo tempo em que há uma implicação política deles avaliarem que não adianta você ter a política pública voltada para eles se não há um indígena lá.

 

Pode-se afirmar então que a política federal para o setor mudou a partir de 2023?

Quando eles levaram o Lula para o Acampamento Terra Livre de 2022, negociaram emplacar um grupo de trabalho durante a transição de governo que ocorreria. Houve toda uma articulação para que as três instituições ficassem pela primeira vez com os indígenas, o MPI, a Funai e a Sesai, puxada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que é a principal entidade deles. Tanto que os três nomes que assumiram foram indicações pactuadas pelo conjunto do movimento indígena, não indivíduos representando a si mesmos.

Isso, por si só, já é muito diferente de pegar uma pessoa indígena. Isso muda muita coisa, porque mesmo que você tenha pessoas qualificadas, o racismo é estrutural, eu vejo isso cotidianamente no espaço da academia. As pessoas não dão a legitimidade, o espaço. Então, é importante que eles estejam ocupando esses espaços.

 

Os DSEIs atendem não aldeados?

Os distritos sanitários foram delimitados para atender as populações em territórios indígenas. Isso gerou toda uma discussão que foi muito forte durante a pandemia, inclusive porque existem os processos de demarcação em aberto e eles têm sido lentos. Há territórios em disputa com populações residentes e há acampamento em territórios não reconhecidos.

A legislação vigente, da Constituinte, traz a realidade dos anos 1980, no qual a preocupação estava muito concentrada nas populações indígenas que viviam em territórios demarcados, até mesmo porque os indígenas que vivem em áreas urbanas ficam invisibilizados.

Durante a pandemia, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, o ministro do Supremo [Tribunal Federal], Luís Roberto Barroso, determinou que todos os indígenas em terras não homologadas deveriam ser atendidos. Seria interessante a Sesai debater com municípios e estados como é ofertada, porque há pessoas indígenas em cidades.