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Entrevista: 
Paulo Artaxo

“Passamos da etapa do aquecimento, estamos em uma emergência climática ou de ebulição global”

A crise climática, que vem se manifestando de diversas formas nos últimos meses em todo o planeta, também tem afetado o clima no Brasil. Nas últimas semanas, enquanto a região Sul vem sofrendo com muita chuva provocada por ciclones extratropicais, o restante do país tem atravessado ondas de calor extremo, com temperaturas recordes para esse período do ano no Brasil. As consequências da crise climática no planeta e do fenômeno El Niño no Brasil são o tema desta entrevista com Paulo Artaxo, professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês).
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 28/09/2023 13h38 - Atualizado em 28/09/2023 16h20

A Agência Americana Oceânica e Atmosférica (NOAA) apontou, no dia 22 de setembro, que há 95% de chance de 2023 estar entre os dois anos mais quentes já registrados na Terra. Isso ocorre por conta do atual El Niño?

O principal fator é o aquecimento global, não é o El Niño. Este é um fenômeno natural que, em conjunto com as mudanças climáticas, está intensificando os fenômenos extremos neste ano. O clima do planeta está aquecendo e esse aquecimento favorece e intensifica eventos climáticos extremos, como essas ondas de calor que estamos vendo em São Paulo, as grandes inundações que estamos vivendo no Rio Grande do Sul, e assim por diante. O próprio El Niño está sendo intensificado pelas mudanças climáticas, pois ele é alimentado essencialmente pela temperatura marinha na região do Oceano Pacífico e essa temperatura está um grau, um grau e meio mais alta do que seria o normal. Em resumo, os eventos extremos atuais para o planeta como um todo, incluindo o calor recorde no Brasil, são um efeito sinergístico entre o El Niño e o aquecimento global.

A NOAA também apontou que o mês de agosto de 2023 foi o mais quente da história, com temperatura média global 1,25 graus Celsius acima da média do século 20. Você avaliava ser possível chegarmos a esse número tão cedo?

Os modelos climáticos estavam prevendo que a temperatura do planeta iria atingir 1,25 graus Celsius mais altos do que no século retrasado apenas na década de 2040 e, na verdade, já estamos vendo isso ocorrer. Isso ocorre devido à intensificação que estamos observando nas mudanças climáticas globais, que ficam mais intensas e geram impactos cada vez mais frequentes. Não há a menor dúvida de que esse calor recente atual é uma das consequências disso.

O agosto de 2023 também foi o mais quente na região do Ártico, além de ser o quarto mês consecutivo de menor extensão ou cobertura de gelo marinho já registrada na Antártida. É possível afirmar, diante desses dois fatores, que caminhamos para impactos ainda maiores nas correntes marítimas e, por consequência, no clima?

Não há a menor dúvida. Já há documentação científica de ótimo nível mostrando que a articulação meridional das correntes com o Atlântico Norte está se enfraquecendo, por causa de mudanças na salinidade e no gradiente de temperatura, que provocam essas correntes oceânicas e são grandes transportadores de energia e de calor no nosso planeta. Então, o principal efeito disso é a intensificação das mudanças climáticas, em particular no Atlântico Norte.

Observando as condições globais de consumo de combustíveis fosseis, há alguma chance de ficarmos no chamado "limite seguro" de aumento de 1,5 graus Celsius para o aumento da temperatura global?

Com as emissões de gases de efeito estufa que geramos hoje, incluindo 62 bilhões de toneladas de CO² a cada ano na atmosfera, estamos caminhando para uma trajetória de aquecimento global da ordem de 2,7 graus Celsius. Se não houver nenhuma redução na emissão desses gases, como foi preconizado no Acordo de Paris, é para essa ordem de aquecimento que o planeta está indo.

Isso ocorreria em quanto tempo, a partir dos modelos de cálculo existentes atualmente?

Os modelos existentes atualmente indicam que atingiremos 2,7 graus Celsius de aquecimento global, provavelmente, no início do meio da segunda metade deste século, ou seja, entre 2050 e 2070. Ressalto que isso dependerá de o quanto conseguiremos reduzir as emissões ao longo desta e da próxima década.

E para conseguirmos reduzir, outras formas de habitar o planeta, como a de indígenas, tem algo a nos ensinar?

Sim, mas não é possível e muito menos viável tentarmos reproduzir o modo de vida de populações indígenas para uma população global de oito bilhões de pessoas, a maioria já vivendo em grandes áreas urbanas do nosso planeta. Não é possível fazer isso, por razões óbvias. Então, temos que inventar e criar novas maneiras de construir cidades, que sejam mais sustentáveis do que as que existem hoje. Novas formas de construção, de consumo de energia, transporte, produção de alimentos, distribuição de água, de tudo.

Isso lembra uma declaração recente do secretário-geral da ONU, António Guterres, de que entramos numa era de "ebulição global". Foi uma declaração de apelo político para esse cenário que você cita ou há aderência com o que ocorre no plano físico-químico do planeta? A Terra está mesmo em ebulição ou ainda estamos em "banho maria"?

Eu creio que o que está acontecendo no Brasil neste ano e também outros fenômenos extremos que ocorreram nos Estados Unidos, na Europa, na China e na Índia, demonstram claramente, e não há qualquer possibilidade de erro no que eu vou falar, que entramos efetivamente no que poderíamos chamar de emergência climática ou de ebulição global. Passamos da etapa do aquecimento. É isso que o secretário geral da ONU deixou claro, entramos em uma nova fase que colocará a mudança do clima no planeta em um estágio que efetivamente coloca em risco muitas das nossas estruturas socioeconômicas - indústria, agricultura, a vida nas cidades, entre outras. Todas as áreas começam a sofrer uma nova magnitude de impacto.

Quase ao mesmo tempo da declaração de Guterres, a Organização Meteorológica Mundial (OMM) afirmou que estamos dando um “mergulho no desconhecido” ao alertar sobre o impacto causado pelo El Niño. Os modelos matemáticos conhecidos dão conta da realidade atual ou a própria ciência precisará reexaminar suas fórmulas para relatar os acontecimentos climáticos? O IPCC faz essa avaliação?

As equações e contas que estão embutidas nos modelos climáticos são continuamente reformuladas, conforme novos artigos científicos são publicados e novas evidências começam a ficar claras. Nós atualizamos, permanentemente, os modelos climáticos e parâmetros, no que chamamos de parametrização dos processos de controle do clima do planeta.

Sobre o calor recente no Brasil, há o recorte de que em alguns locais ele veio acompanhado por uma baixíssima umidade relativa do ar, com riscos para a saúde humana. No Rio de Janeiro, por exemplo, que é uma cidade litorânea, em alguns bairros, a umidade relativa chegou a 27,6% na última semana. Há algo que explique o casamento entre esses dois fatores?

É preciso analisar caso a caso, mas eventos de baixa umidade relativa do ar em áreas urbanas, geralmente, são causados pela falta de arborização, porque a evapotranspiração das árvores é reconhecida como o maior fator de regulagem da umidade relativa do ar em áreas urbanas. Então, se você acabar com a área verde, por consequência, isso fará com que a umidade relativa do ar diminua. Mesmo em locais onde já existe baixa umidade relativa do ar, como Brasília, se ocorrer a abertura de áreas verdes, isto ajudará na regulação do clima. Então, precisamos olhar caso a caso o que ocorre em cada localidade.

Outro registro, ocorrido no dia 20 de setembro, foi o de que Manaus (AM) registrou 146 pontos no índice de qualidade do ar, considerado altamente nocivo para a saúde, por causa da fumaça decorrente de queimadas na região. O El Niño pode tornar essa situação pior do que em 2022, quando a fumaça das queimadas na Amazônia chegou a São Paulo?

Não, isso não tem associação com o El Niño, mas com o ar mais seco sobre a Amazônia, que é também causado pelas mudanças climáticas. A precipitação na região da Amazônia está diminuindo rapidamente e esta queda na precipitação favorece a incidência de queimadas, que também estão associadas ao desmatamento. Precisamos reduzir o desmatamento para reduzir as emissões de queimadas. Essencialmente, a tarefa do Brasil é zerar o desmatamento da Amazônia até 2030, como foi compromissado com a comunidade internacional. Com isso, também eliminamos as queimadas na região amazônica. Isso é possível.

Diante de tantos sinais, já é possível afirmar que viveremos em 2024 o verão mais quente da história do Brasil?

Isso não é possível de ser afirmado, ainda. O clima é caracterizado por uma variabilidade muito grande, o máximo que podemos dizer é que há indícios de que o próximo verão será mais quente pela persistência do El Niño.

O senhor defendeu, em entrevistas recentes, a criação de um sistema de governança global para estabilizar o clima. Poderia descrever melhor sua proposta?

A questão da governança global é das principais, quando abordamos o desafio das mudanças climáticas. Evidentemente, o único órgão de que dispomos hoje é a ONU, que não foi feita para lidar com a questão das mudanças climáticas globais. A ONU foi feita no pós-guerra, para dividir o mundo entre as potências que ganharam a Segunda Guerra e, com isso, tentar construir um sistema mais estável, impedindo uma terceira guerra mundial. A ONU foi criada para isso e não para lidar com a construção de um projeto que dê conta do desafio das mudanças climáticas globais. O presidente Lula defendeu a reforma da ONU, o próprio Guterres também defendeu a reforma da ONU para que ela possa tratar de problemas tão graves quanto a desigualdade social, a concentração de renda e as mudanças climáticas.

Como o senhor avalia o chamado ”Direito ao Desenvolvimento”, que está no discurso de países do Sul Global como justificativa para o uso de fontes de energia como carvão e petróleo?

Evidentemente, os países do Sul Global devem ter o direito ao desenvolvimento, mas um desenvolvimento que precisa ser baseado não nos erros cometidos pelos países desenvolvidos, o que basicamente nos levou a implementar modelos de desenvolvimento que geram concentração de renda e uso excessivo dos recursos naturais. Então, os países em desenvolvimento têm uma boa oportunidade, na verdade, de construir uma sociedade mais justa e igualitária e eficiente no uso de energia e dos recursos naturais.

Qual sua avaliação sobre iniciativas de judicialização climática, como a do governo do Estado da Califórnia de processar empresas petroleiras e a de jovens europeus que levaram 32 países à Corte Europeia de Direitos Humanos para que os mesmos elevem os cortes de emissões? Acha que processar agentes políticos e econômicos é uma ação justa diante do aquecimento global?

Isso é importante, faz todo o sentido e deveria ser ampliado significativamente, porque, claramente, nosso sistema político não está funcionando para resolver, de fato, as questões associadas às mudanças climáticas. Se os governos não estão funcionando e as indústrias querem continuar nessa mesma trajetória, só resta à sociedade usar o sistema judiciário para, com isso, tentar, efetivamente, mudar a trajetória que estamos seguindo.

O Congresso brasileiro debate a implementação da tese do marco temporal, mesmo após decisão contrária do STF, bem como um novo projeto de lei (PL 2.159/2021) que afrouxa o licenciamento ambiental. Por que o mundo da política está tão dissociado da Ciência, em temas que geram impacto no clima?

A nossa democracia sofre um processo de degradação muito avançado. Passamos por uma fragilização do processo democrático não apenas no Brasil, mas na maioria dos países, o que faz com que os governos não representem, efetivamente, os interesses de suas populações e defendam muito mais, por exemplo, os interesses da indústria do petróleo, a invasão de terras indígenas, os ilícitos que dominam o processo de ocupação da Amazônia e assim por diante. Precisamos trabalhar e melhorar a qualidade de nossa democracia.

A população está suficientemente informada sobre os riscos do aquecimento global? De que forma cientistas podem utilizar momentos como esse – de calor extremo – para conscientizar as pessoas?

Não há a menor dúvida de que informar a população sobre os riscos atuais e potenciais das mudanças climáticas é tão importante quanto o de produzir a ciência que embasa essas conclusões. É fundamental que a área de comunicação, principalmente, os jornalistas possam se engajar nessa tarefa, já que é uma tarefa do jornalismo e não da ciência. Os cientistas são treinados para produzir ciência, não para comunicar essa ciência para o público em geral, esta é uma das tarefas da imprensa.