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Entrevista: 
Tina Minkowitz

"Todo e qualquer modelo de atenção e cuidado deve respeitar a pessoa para que ela tome suas próprias decisões"

Apesar de ser símbolo da luta antimanicomial e pelos direitos das pessoas com transtornos mentais, a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), instituída no Brasil, está estagnada, como avaliaram especialistas e militantes da Reforma Psiquiátrica na matéria ‘Interesses privados na saúde Mental’, publicada pela Revista Poli. Eles atribuem a estagnação da política e os retrocessos da Reforma Psiquiátrica – que buscou substituir o modelo asilar, de internação e exclusão social através da criação de uma rede de serviços de atenção psicossocial por meio da integração da comunidade - à presença cada vez maior da iniciativa privada no setor, principalmente com as comunidades terapêuticas, que trabalham sob a lógica de internação compulsória, isolamento social e algumas até com denúncias de maus tratos. Mas o Brasil não está sozinho. Apesar de os Estados Unidos possuírem um modelo assistencial diferente do SUS, a americana Tina Minkowitz, advogada e ativista de Direitos Humanos, encontrou diversas semelhanças no que tange os desafios da luta do movimento internacional de usuários e sobreviventes da psiquiatria. Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, Tina, que proferiu uma palestra na instituição durante sua passagem pelo Brasil, fez uma análise crítica sobre os modelos de hospitalização forçada e ressaltou a importância da luta antimanicomial. “Todo e qualquer modelo de atenção e cuidado deve respeitar a pessoa para que ela tome suas próprias decisões. A ideia de ‘compulsório’ parte do princípio de que não é possível relacionar-se com a pessoa dita louca”, critica
Portal EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 28/09/2018 13h35 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Qual a relação entre a luta pelos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e a luta pelos direitos humanos? Em que contexto você se insere nessas lutas?

Primeiramente, eu não gostaria de usar o termo “pessoas portadoras de transtornos mentais”, porque isso resulta em algo pejorativo. Eu prefiro dizer “pessoas com deficiências psicossociais”, que é uma incapacidade. No meu caso, eu me considero como uma sobrevivente, enfrentei uma luta enquanto uma sobrevivente da psiquiatria. Sobrevivente porque fui submetida a tratamento forçado, com drogas psiquiátricas... Fui vítima de abuso, de violência. Hoje, luto para que isso não aconteça com outras pessoas.

Entrei no movimento internacional de usuários e sobreviventes da psiquiatria em 1978, um ano após deixar um hospital psiquiátrico nos Estados Unidos, onde fui internada compulsoriamente. Foi quando entrei na faculdade de Direito e lá comecei a desenvolver ideias como “incapacidade ou deficiência” em relação a doença mental, bem como a ideia do direito internacional. Assim que concluí a faculdade estavam começando as discussões para a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e fui convidada a escrever alguns artigos para o encontro e representar esse movimento. Minha militância começou aí.

Os EUA têm protagonizado denúncias de violação de direitos humanos – como o recente caso envolvendo crianças filhos de imigrantes -, principalmente desde a chegada de Donald Trump ao governo. Isso se reflete também no cuidado e nos direitos das pessoas com transtornos mentais?

Donald Trump é uma violação dos direitos humanos. Nos Estados Unidos, temos um instituto chamado ‘Substance Abuse and Mental Health Services Administration’ (Administração de Serviços de Abuso de Substâncias e Saúde Mental). Essa grande agência nacional envolve diversos serviços, como o desenvolvimento de drogas psiquiátricas, mas também há assessoria para grupos de suporte entre pares, porque lá muito serviços também são feitos por pessoas que são usuários ou ex-usuários. E também há serviços destinados à recuperação das pessoas que sofreram abuso, violência física, dentre outros. Trump colocou na direção dessa agência uma pessoa que quer acabar com uma série de conquistas, como os grupos de suporte entre pares, reforçando o modelo biomédico de assistência e tudo aquilo que tem a ver com a psiquiatria forçada.

Fale sobre sua atuação no Centro para os Direitos Humanos dos Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria e na Rede Mundial de Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria (WNUSP). O que são esses movimentos e qual a importância deles?

O Centro para os Direitos Humanos dos Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria é vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU). A maior parte do meu trabalho é na questão da defesa dos Direitos Humanos. Eu explico aos usuários e sobreviventes o que é e como se aplica, na prática, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – que é um instrumento internacional dos direitos humanos das Nações Unidas, adotada em 2006 e assinada e ratificada por 170 países, cuja finalidade é proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência.

A Rede Mundial de Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria luta pela proibição de todo tratamento forçado no mundo. Não exerço mais nenhuma posição oficial na organização desde 2015, mas ainda coopero. A rede existe em diferentes regiões – na Europa, na África, na Ásia e na América Latina. Cada local está desenvolvendo maneiras próprias de acabar com o tratamento forçado, mas cada lugar tem suas especificidades, cada um com as suas formas. A ideia é justamente uma troca constante, mas muito particularmente em cima dos modos como cada local está enfrentando a problemática dos Direitos Humanos.

Você defende a extinção do tratamento psiquiátrico compulsório, por considerá-lo uma forma de violência.  Que modelo de cuidado você defende?

Prefiro o termo suporte que cuidado. Suporte, porque cada pessoa tem a sua própria maneira de viver, a sua própria experiência. Todo e qualquer modelo de atenção e cuidado é aquele que respeita a pessoa para que ela faça suas próprias decisões. O suporte pode ser da família, dos amigos, dos serviços de saúde mental, pode vir de qualquer lugar e de qualquer pessoa. Já a ideia de compulsório parte do princípio de que não é possível conversar com a pessoa, relacionar-se com a pessoa dita louca. O sistema necessita que as pessoas saibam se relacionar. Então, a ideia é deixar que as pessoas se relacionem bem e que venham para ajudar, dar suporte.

Quando a pessoa não quer alguma ajuda, nós não temos que ficar aborrecendo. É possível que essa pessoa esteja querendo ficar sozinha e temos que respeitar isso. Quando se veem os sintomas - “Você está escutando vozes? Isso é uma coisa ruim”, “O que as vozes estão dizendo pra você?” - é possível conversar, entender e até mesmo buscar outras experiências que possam ser compartilhadas, mostrando como elas lidam com essas vozes. Esses problemas de saúde mental, psiquiátricos, podem desaparecer quando se começa a dar sentido às experiências que eles estão vivendo. É isso que eu gostaria de dizer a respeito de modelos de atenção.

No Brasil, a luta ganhou um caráter antimanicomial, ou seja, contra a existência de manicômios como forma de tratamento, seja compulsório ou não. Como isso se dá nos EUA?

Nos Estados Unidos, temos um código de desinstitucionalização a partir das décadas de 1970, 1980... Atualmente a maioria das pessoas vai para um hospital por um curto período de tempo, mas conheço gente que está internado há mais de 20 anos. Quando pessoas que estão internadas há muito tempo saem e, em geral, não têm dinheiro suficiente para ter uma casa, especialmente se não podem trabalhar ou recebem pensão. Por isso, muitas pessoas vivem em casas que são geridas pelo sistema de saúde mental do governo americano. E aí há uma institucionalização na comunidade. Não é mais em um hospital, mas em uma comunidade, na qual essas pessoas são forçadas a tomar medicamentos psiquiátricos, por exemplo. Isso se torna mais do que nunca uma institucionalização ou reinstitucionalização do sujeito.

Eles têm uma equipe que tem base na saúde mental, incluindo o psiquiatra. Eles podem querer dar direito a você de fazer compras, ir ao shopping, mas, ao mesmo tempo, estão ali para vigiar você, para ver se está se tratando, se está tomando remédio. E podem te fazer voltar ao hospital a qualquer momento.

Se essas pessoas tivessem um suporte social da família, talvez nunca mais precisassem voltar para esse lugar. Porque cada vez que você fica hospitalizado, piora a situação. Você vai perdendo tudo, perde apartamento, empregos... Cada vez fica mais difícil a pessoa recuperar e restabelecer uma vida.

Na maior parte dos Estados Unidos, as pessoas têm um tratamento fora dos hospitais, nessas comunidades de casas geridas pelo Estado. A luta dos sobreviventes se dá muito contra o tratamento forçado, contra a institucionalização nas comunidades, já que isso é o mais difundido.

Você faz a defesa pelo que chama de “tomada de decisões com apoio”. O que isso significa?

A ideia de capacidade legal é o direito de tomar decisões. Como quando nós temos 18 anos de idade e assumimos que podemos fazer várias coisas. Podemos casar, assinar um contrato, podemos tomar nossas próprias decisões. Mas algumas pessoas com alguma deficiência são tratadas tradicionalmente como incapazes. Na verdade, ninguém quer que a sua própria capacidade legal seja retirada. Isso vai tornar você vulnerável, porque alguém vai decidir por você. Nós queremos capacidade legal total, sem exceção.

Qual deve ser o papel do Estado na garantia do cuidado aos usuários?

É responsabilidade do Estado fornecer condições de vida adequadas para todos, inclusive serviços para pessoas que têm alguma deficiência. No Brasil, nós temos recursos e nós devemos aplicar isso, mas o governo está dizendo que não quer. Se os recursos estão aí, eles são obrigados a colocá-los a serviço das pessoas... Mas preferem colocá-los em instituições com tratamentos forçados.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira é um marco nacional na luta por outro tipo de cuidado. Essa experiência brasileira é reconhecida internacionalmente?

O Brasil algumas vezes assumiu papéis importantes nas Nações Unidas. Assim como Portugal, o país teve um papel muito importante na Convenção, na luta pelas pessoas com deficiência. Confesso que preciso conhecer mais para falar do Brasil. Mas o consenso sobre o manicômio é uma grande coisa que nós temos e o ativismo antimanicomial é muito forte.

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