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Entrevista: 
Marco Aurélio Soares Jorge

'Vão voltar com o modelo que a gente sabe que não deu certo'

Causou polêmica uma nota técnica emitida no dia 4 de fevereiro pelo Ministério da Saúde que, entre outras coisas, dá sinal verde para a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia para o Sistema Único de Saúde (SUS). Com 32 páginas, o documento – cujo propósito é trazer “esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas” – também toca em outros temas controversos, como o tratamento de dependentes de drogas centrado na abstinência e a participação das comunidades terapêuticas na rede de atenção psicossocial, além da possibilidade da internação de crianças em hospitais psiquiátricos. Profissionais e pesquisadores da saúde mental têm considerado essas medidas um retrocesso e um dos maiores ataques à Política Nacional de Saúde Mental, que foi fruto da luta antimanicomial. Nesta entrevista, o psiquiatra e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Marco Aurélio Soares Jorge faz duras críticas à eletroconvulsoterapia, comparando a técnica à antiga prática manicomial de eletrochoques, e explica que somente em casos bem graves, como o de estupor melancólico, ela deve e pode ser utilizada. Mesmo nesses casos, diz, é necessário questionar por que se deixou chegar ao ponto de se precisar usar a eletroconvulsoterapia.
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 15/02/2019 13h36 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

A nota técnica divulgada pelo Ministério da Saúde neste início de fevereiro traz esclarecimentos sobre a política de saúde mental, álcool e outras drogas. Qual a sua avaliação sobre ela?

É um grande retrocesso, um retorno para outra época que a gente tentou e vem tentando mudar, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Um dos pontos principais dessa nota é deixar de chamar os CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] como serviços substitutivos. O CAPS é um serviço substitutivo no sentido de que você oferece uma outra forma de atenção e de cuidado ao portador de transtorno mental. Substitui o modelo antigo hospitalocêntrico, de internação. O modelo da internação é generalizado, não trata cada paciente de acordo com o seu quadro, com a sua necessidade, ou de acordo com o aumento da doença.

Na verdade, a gente sabe que a pessoa que passa por um transtorno mental consegue superar melhor isso quando está convivendo com a sua família, com a sua comunidade. A ciência ainda tem que avançar muito, mas a gente sabe, por exemplo, que quando uma pessoa tem uma família que acolhe, que está junto, que é mais afetiva, que cuida e que se cuidam entre si, que tem um diálogo aberto, isso melhora muito o quadro. A gente sabe que quando uma pessoa trabalha,  tem uma rede de pessoas, de amizades e relações também, isso facilita muito o tratamento. Então, quando você interna, está sendo iatrogênico. O que é iatrogênico? Você está produzindo doença.

Outro ponto que acho importante falar é sobre as estratégias de tratamento. A partir do pós-guerra, quando aparecem as tentativas de mudanças no modelo de internação, outras experiências surgiram na Europa e nos Estados Unidos tentando humanizar e romper com esse modelo. Um exemplo é a reforma psiquiatria democrática italiana, na qual a nossa reforma brasileira se baseou muito. A partir do meio da década de 1950, surgem os primeiros psicofármacos e se vê um gráfico de queda de internação na Europa, nos Estados Unidos. No mundo inteiro estava caindo a internação e no Brasil estava subindo. Porque nessa época, o Brasil passava por uma Ditadura Militar e havia um jogo de interesse dos donos das casas de saúde, dos empresários da loucura.Você tinha duas opções: você ficava internado ou fazendo acompanhamento ambulatorial.

Um dos pontos que gerou mais polêmica foi o fato de a nota técnica mencionar a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia para o SUS. Quirino Cordeiro Junior, que assina a nota, justifica que esse tratamento ainda é necessário em casos extremos, como a depressão grave. Isso é verdade? Existem situações em que mesmo os profissionais que defendem a desospitalização e técnicas mais humanizadas reconhecem a necessidade de uso do eletrochoque?

A eletroconvulsoterapia surgiu na década de 1930, por dois psiquiatras italianos Cerletti e Bini, como uma forma de tratamento. Eles sabiam que provocar convulsões num paciente com esquizofrenia melhorava o quadro psiquiátrico dele. A eletroconvulsoterapia foi uma forma barata e prática de tratamento. Mas ninguém sabia e ainda não sabe os efeitos disso. Os medicamentos, os eletrochoques... tudo isso é paliativo. A gente não sabe exatamente o que é o transtorno mental, o que é que pode levar a pessoa à cura. Existe cura, mas não sabemos exatamente como é ainda.

No Brasil, o eletrochoque foi muito usado de forma punitiva. Na ditadura, por exemplo, foi usado como forma de tortura, deixando uma marca do uso da violência contra as pessoas, do uso indiscriminado. Hoje, o eletrochoque não é uma coisa proibida, mas existe uma restrição muito grande. Apenas alguns casos extremos, quando os medicamentos já não fazem mais efeito e o paciente é refratário ao tratamento medicamentoso. Assim, a família tem que autorizar, tem que ter um médico, tem que ter um anestesista junto... Precisa ter uma série de recomendações. Não é uma coisa que pode ser feita da forma como se fazia antes, que era só o médico indicar e fazer o eletrochoque no paciente.

Eletrochoque é igual um rádio antigo, que você dá um soco e ele volta a funcionar: você não sabe o que aconteceu lá dentro, sabe que voltou, mas não sabe o que é que mexeu lá dentro.

Em que situações os eletrochoques ainda são usados?

Só em são casos bem graves, como estupor melancólico, estupor catatônico... Se você perguntar para mim ‘ você é contra o eletrochoque?’, eu não posso dizer que sou contra, porque nesse caso extremo ele pode ser um recurso. Eu trabalhei muitos anos em hospital psiquiátrico público e nunca vi se prescrever um eletrochoque lá, nunca se usou. Agora, eu já trabalhei num hospital privado que tinha uma média de 50, 60 eletrochoques por dia. Então, isso depende muito mais da conduta médica do que de uma indicação clínica. Esse é o perigo: de banalizar o uso porque é barato, porque o remédio é mais caro, demora o efeito... Mas você não sabe  o que isso vai produzir na pessoa a longo prazo, já que se trata de uma corrente elétrica no cérebro como um todo. Existem relatos de que esse tratamento produziu micro-hemorragias, por exemplo. Eu tinha um professor que dizia que o eletrochoque é igual um rádio antigo, que você dá um soco e ele volta a funcionar: você não sabe o que aconteceu lá dentro, sabe que voltou, mas não sabe o que é que mexeu lá dentro.  E existem medidas a serem tomadas para se evitar que uma pessoa com transtorno mental chegue ao ponto de precisar usar eletrochoque. Geralmente fazendo um bom trabalho de acompanhamento ou com medicamentos, é possível evitar.

Outra crítica é que a nota técnica retomaria a ênfase na internação em hospitais psiquiátricos, na contramão da luta antimanicomial. São medidas concretas de incentivo à hospitalização?

[Com a reforma psiquiátrica], a partir do momento em que o paciente deixava um leito e ia para um serviço substitutivo, para uma residência terapêutica, aquele leito era fechado. Então, a medida era a extinção do leito, porque a gente sabe que esses serviços substitutivos podem dar conta. A crítica que se faz é porque não existe ainda uma rede, uma cobertura plena desses serviços.

Agora, se você me perguntar se eu sou contra a internação, vou responder que não. A questão é saber como fazer isso. Eu sou contra a internação como modelo único de tratamento. Eu sou a favor de acolhimento em determinadas situações, em que o paciente está mais em crise, que a família ou a equipe não estão conseguindo dar conta. Pode haver risco de suicídio de se machucar ou machucar alguém, por exemplo, se o paciente estiver muito agitado na rua.  Aí sim, tem o acolhimento. Serviços como o CAPS 3, por exemplo, têm alguns leitos para receber esse tipo de paciente. A gente pode prescindir do hospital psiquiátrico, se houver uma boa rede de atendimento, trabalhando de forma integrada com a atenção básica. Lá na Itália, por exemplo, não existe hospital psiquiátrico.

As comunidades terapêuticas foram muitas vezes denunciadas por maus tratos. Como funciona uma comunidade terapêutica? Por que não são indicadas?

Um dos grandes problemas é que nas comunidades terapêuticas o índice de recaída é enorme. Nesses locais, o paciente fica internado meses e quando sai da internação, volta a usar drogas, volta a beber... Por exemplo: eu sou de uma família pobre, moro em um lugar pobre, eu tenho minha cama, minha família, minha mãe e meu pai e eu estou usando uma droga... Isso está criando algum problema para mim, para minha família, e eu fico internado em uma comunidade terapêutica. O que acontece? Quem vai dormir na minha cama? Eu vou perder minhas coisas? Quando eu volto, como é que eu vou entrar nessa família de novo se meu lugar foi tomado? Eu não consigo me inserir de novo. É um isolamento da família, do trabalho, da vida social como um todo. Na maioria das vezes, uma pessoa isolada dessa forma, muitas vezes ociosa, desempregada, sem amigos volta a beber e a usar drogas.

Não é comprovada a experiência da comunidade terapêutica. Não estou dizendo que eu seja contra o modelo que tem no A.A. [Alcoólicos Anônimos], tem coisa interessante. A questão é como funciona a comunidade terapêutica, essa instituição que é muito mais empresarial do que realmente de cuidado.

Há diversas comunidades terapêuticas ligadas a grupos religiosos. E eles explicam que essa recaída acontece porque a pessoa não colocou Jesus no coração. É uma explicação religiosa de um problema que não é, de um problema que é muito mais social, psicossocial. Como falei anteriormente, o índice de recaída nas comunidades terapêuticas é muito alto: 80% dos pacientes têm recaída logo nos primeiros meses. Se buscam o tratamento centrado exclusivamente na abstinência fracassam. A opção contrária a isso é a redução de danos, que também não é contra a abstinência, só que coloca a abstinência no final. Procura muito mais ver a vida da pessoa como um todo.

O movimento antimanicomial, que inspirou a lei 10.216, que institui a Política Nacional de Saúde Mental, defende o fim dos manicômios. Por quê? Há evidências científicas da não-efetividade desse tratamento e de melhores resultados de outras práticas? Não existem situações em que, de fato, pacientes de saúde mental precisem ser internados?

O manicômio é um modelo que a gente sabe que não funciona. A gente sabe que o melhor é o paciente na comunidade e não recluso. Não se pode confundir o manicômio com internação. Como eu disse, internação pode ser pontual, pode ter momentos, de uma crise maior, em que você precisa dar um acolhimento ao paciente. Mas colocar como forma de tratamento a internação não pode.

O pesquisador Eugen Bleuler acompanhou por mais de 20 anos uns 500 e poucos pacientes com quadros de esquizofrenia. E ele viu que 25% deles tinham um surto e depois nunca mais tinham quando eram tratados. Outros 25% conseguiam ficar estáveis, só 50% tinham o quadro mais grave. Então, em primeiro lugar, é possível tratar. Existem várias pesquisas que dizem que quando o paciente tem a família próxima, o nível de melhora é muito grande.

Eu tenho uma experiência de quase dez anos nisso, tenho trabalhado com pacientes agudos, que seriam pacientes com quadro grave, que [nesse outro modelo] seriam internados. A gente trabalhou com o serviço de atenção diária, e eles voltavam para casa. O que a gente via é que nos primeiros cinco dias, quando a medicação começava a fazer efeito, eles já paravam de delirar, de alucinar. E o tratamento era muito bom. O caminho é criar um serviço que de acolhimento para o paciente, que dê conta junto com a família, junto com a comunidade, não apenas esperando que o paciente vá ao serviço, mas indo também atrás. Podemos prescindir do hospício.

Para as famílias, que acompanham o paciente de saúde mental, muitas vezes poder interná-lo e não se sobrecarregar com o seu cuidado parece uma boa opção. Como contornar isso?

Eu fiz um levantamento de 500 e poucos prontuários de pacientes internados durante um mês, e o que a gente viu é que as famílias que internavam seus familiares pela primeira vez, relatavam: “Meu filho, minha filha, meu irmão, está começando a falar coisas sem nexo, e não está dormindo e fica falando que vê coisas”. Já nos pacientes que tinham várias internações, a família falava: “Ele (a) está agitado(a), está quebrando as coisas”. É um discurso diferente, porque de alguma forma, quando o paciente está na sua primeira vez, ele está integrado à família, existe comunicação. Temos que trazer a família para junto do paciente.

A nota técnica também realça a internação de crianças e jovens em hospitais psiquiátricos. Segundo o então coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde, que assina o documento, isso é necessário para garantir o direito de muitas crianças e adolescentes que precisam de internação, mas não têm tido acesso. Existem, de fato, situações em que crianças e jovens devem ser internados?

Eu não conheço situações em que se deva internar crianças e jovens. Criança tem que estar com a família, tem que estar com a mãe, tem que estar com o pai, com os avós. Vai internar uma criança para quê? Tirá-la de sua casa, do convívio diário com outras pessoas e ficar sozinha numa cama que não é a dela e com pessoas que não conhece?

O movimento da luta antimanicomial é contra a internação psiquiátrica como um todo, mas existe alguma particularidade, alguma gravidade maior na internação de crianças e jovens? Quais as consequências?

Isso é um absurdo. Eu já vi crianças com autismo serem internadas e isso é gravíssimo. Nos casos de autismo, a criança precisa de estimulação, de estar perto da família. Você tem que cuidar da família como um todo, não só da pessoa. Você interna uma criança e vai fazer o quê? Vai entupi-la de remédio?

Já vi um jovem sendo internado com esquizofrenia, mas às vezes um CAPS de adolescente e criança pode dar conta disso. Os jovens sofrem muito com problemas de crises na adolescência e isso não se interna, só trata. Em certas situações - por exemplo, se houver risco de suicídio -, você pode por período pequeno colocar a pessoa em um hospital geral, num leito de hospital geral, sendo acolhido ali. Mas não precisa de uma internação. Isolar crianças e adolescentes com internações psiquiátricas é algo muito grave. Você forma uma pessoa institucionalizada, não uma criança ouadolescente de uma determinada família, mas sim de uma instituição.

Isolar crianças e adolescentes com internações psiquiátricas é algo muito grave. Você forma uma pessoa institucionalizada, não uma criança ouadolescente de uma determinada família, mas sim de uma instituição.

Existem tratamentos alternativos que sejam mais adequados especificamente para crianças e jovens?

Existem os CAPS, que dão conta disso junto com a família, junto com a equipe. A criança ou adolescente não pode sair da sua casa, da sua rotina. Não tem justificativa técnica para fazer isso, a não ser que você queira dizer que é só uma doença do corpo, uma coisa biológica, bioquímica, mas não é. Estão esquecendo todo o psiquismo, toda a vida da pessoa, toda a rede em que a criança vive, a relação da mãe, do cuidado.

A rede substitutiva aos manicômios, que vinha sendo construída no Brasil, está sob ameaça?

Sim, eu acho que essa nota técnica é um tubo de ensaio para eles verem o que poderão fazer. Se a gente não tomar atitude, não reagir, não discutir, não questionar, eu acho que virão coisas piores pela frente. É o começo de muitos retrocessos. Quando você não fecha o leito, já está começando a tirar dinheiro do CAPS, o dinheiro vai para as comunidades terapêuticas, vai para os hospitais psiquiátricos. Vão voltar com o modelo que a gente sabe que não deu certo.

Há interesses por trás dessas mudanças na política de saúde mental?

Tem um interesse de restringir o papel do médico psiquiatra. Eu penso o psiquiatra como um estrategista, muito mais do que simplesmente alguém “receitador”, que se restringe a passar medicamentos. Existem várias pesquisas que mostram que o paciente se sente bem na relação com o médico quando ele é atendido por um médico atencioso, cuidadoso, que escuta, entende e explica. Agora, o psiquiatra que vai trabalhar num lugar em que tem que atender 20, 30 pacientes e fazer só a prescrição deles, não tem como manter uma proximidade, não tem conversa, não está junto, não entende o problema, não atende a família. Isso estreita muito mais o trabalho do médico do que o amplia.

Essas mudanças na política me parecem que não entendem o que é uma equipe interdisciplinar. É, na verdade, como se fosse assim: o médico passa o remédio, quem conversa é a psicóloga, quem vê a família é sempre a assistente social... Isso é o modelo antigo, ultrapassado há muitos anos. A equipe tem que trabalhar junto para ver a coisa como um todo.

Outra questão é que eles não se vai promover a abertura de hospitais psiquiátricos públicos nos municípios. A proposta vai ser abertura de hospitais psiquiátricos privados. Então, há interesse privado-empresarial tanto nas comunidades terapêutica como em hospitais psiquiátricos. Os CAPS, as residências terapêuticas, que trabalham junto com a atenção básica, tudo isso é público, essa que é a questão. Vai ter um jogo de interesse. A iniciativa privada, claro, tem um lugar, mas ela não pode ocupar o lugar do Estado. O cuidado com a saúde e a educação deve ser público.