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Entrevista: 
Marcelo Carcanholo

'O Estado assume as quebras do setor privado, o que costuma acontecer com alguma regularidade no capitalismo'

O economista Marcelo Carcanholo fala das causas estruturais da crise e discute caminhos alternativos ao modelo econômico adotado no país, que ele não tem dúvida de classificar como neoliberal.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 13/11/2015 13h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O ajuste na economia é mesmo inevitável? Você dificilmente vai ver essa pergunta singela ser feita por algum dos veículos que diariamente cobrem a crise econômica. Na direção oposta, o especial sobre o ajuste fiscal publicado na revista Poli mostrou que essa suposta solução para a crise está longe de ser um consenso entre economistas. Nesta entrevista, Marcelo Carcanholo, professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e Marxismo (NIEP) e presidente da Sociedade Latino-Americana de Economia Política e Pensamento Crítico (Sepla), explica em detalhes porque, em sua avaliação, a ‘inexorabilidade’ do ajuste é uma posição política que se camufla de técnica.  Carcanholo dá um passo atrás e descreve um quadro mais completo que revela o sentido das opções feitas pelos sucessivos governos federais com as várias reformas que deram caráter neoliberal à economia brasileira. Segundo ele, a onda que permitiu uma política de conciliação de classes nos últimos anos quebrou na praia e os trabalhadores precisam entrar em “modus esperneandis” para não serem os únicos a levar o caldo. Ele lembra ainda de outra situação que deixa bem clara a tendência dos governos em proteger os mais ricos mesmo que, para isso, seja preciso deixar os Estados de pires na mão, como na crise econômica de 2008.

Você tem uma visão crítica sobre o porquê do ajuste ortodoxo se apresentar como o ‘u?nico tecnicamente correto e, portanto, imprescindi?vel e inexora?vel’? Qual é a ideologia por trás desse discurso?

O ajuste não é imprescindível e inexorável, mas dentro da lógica da teoria econômica convencional ele se apresenta como o único tecnicamente correto por conta de algumas premissas teóricas. A primeira e mais importante delas é que na visão convencional, as taxas de juros reais são elevadas porque existe uma demanda por crédito muito forte. E quando o Estado tem um déficit público elevado e precisa financiar esse déficit, ele recorre ao mercado de crédito aumentando, portanto, a demanda. E isso leva ao aumento das taxas de juros reais. Qual é o problema das taxas de juros reais muito altas? Elas inibem o crescimento. Então, segundo a teoria econômica convencional, se o Estado controla seus gastos, diminui a demanda por crédito e isso gera uma baixa da taxa de juros real. E isso leva ao ajuste das contas dos gastos do Estado.

Qual é a segunda premissa da teoria convencional que sustenta o ajuste?

A segunda premissa não é explicitada porque está relacionada a razões que não são técnicas. O argumento se apresenta como técnico, mas tem um viés político. Funciona assim: mesmo que aceitássemos a primeira premissa – é necessário fazer um ajuste das contas do Estado – como é que se faz isso? Ou aumentamos a arrecadação do Estado e/ou reduzimos gastos. Existem vários argumentos contrários ao aumento da arrecadação, alguns deles referentes à alocação de recursos. Pode gerar distorções na economia, aumentar imposto direto diminui a renda das pessoas, aumentar impostos de alguns setores pode gerar aumento de custos, o que gera inflação. Enfim, tem alguns argumentos contrários, mas o mais importante do ponto de vista da arrecadação é quem paga imposto no Brasil. Quem paga imposto no Brasil são trabalhadores assalariados. As empresas são subsidiadas. Isso nunca é colocado em questão. EÉ uma discussão que não entra na pauta por razões políticas, embora ao argumento se apresente como técnico. Por outro lado, ainda que descartemos as receitas e o ajuste tivesse que ser feito pelos gastos, tem outra questão que também nos remete à política. São dois os tipos de gastos do Estado: gastos financeiros, referentes ao serviço da dívida pública, e gastos não financeiros, referentes a custeio e investimento, que são basicamente os recursos que vão para educação, saúde, moradia, pagamento do funcionalismo público, transferências e políticas sociais. Mas o argumento convencional não explicita isso porque evidenciaria justamente o compromisso político que existe no argumento convencional, de que as despesas financeiras são intocáveis. Ou seja, se mantém as despesas financeiras, e aí o argumento pseudotécnico é que é para ‘gerar confiança’ nos mercados que continuam rolando a dívida pública, o que leva à ‘inexorabilidade’ do ajuste fiscal via gastos não financeiros. Por isso, a opção pelo corte de gastos com políticas sociais.

Quais seriam as alternativas ao ajuste ortodoxo?

Mesmo considerando – eu não considero – que exista a necessidade de um ajuste fiscal, a gente teria todas essas alternativas, ou seja, cobrar imposto de quem nunca pagou imposto no Brasil, grandes fortunas, herança, empresas transnacionais, etc. Aumento de IOF [Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro] para transações financeiras. Do ponto de vista dos gastos do Estado, uma redução do serviço da dívida pública, seja por uma redução do estoque da dívida, por exemplo, uma auditoria com moratória parcial da dívida pública e/ou uma redução dos fluxos do pagamento do serviço da dívida, ou seja, uma redução da taxa de juros, invertendo a causalidade convencional. O que a causalidade convencional preconiza é: taxa de juros são altas porque o Estado gasta muito. Na verdade, é o contrário. O Estado gasta muito do ponto de vista financeiro porque taxas de juros são altas e corrigem o serviço da dívida pública. Isso mesmo no contexto atual do ajuste.

Qual é o seu diagnóstico para essa crise?

Crise é, [quanto a isso] não tem a menor discussão. Uma economia que cresce 3% negativo durante um ano e vem rateando a cinco ou seis anos está em crise. O debate é quais são as causas e as alternativas. O ponto principal é o seguinte: Uma economia dependente periférica sofre impactos da crise da economia mundial. Ora, justamente por isso ela é periférica e dependente. Então esses impactos viriam. Estourou a crise mundial 2007-2008, o que aconteceu na economia brasileira é que o governo tentou ganhar tempo apostando que essa crise da economia mundial fosse arrefecer e não nos atingisse. E ele ganhou tempo basicamente de duas maneiras: tentou manter o mercado interno, expandindo crédito para as famílias comprarem produtos e, ao mesmo tempo, reduziu a carga fiscal do setor de eletrodomésticos, automotivo, etc. Ou seja, setores que produziriam para esses mercados que estavam com crédito expandido. Era uma forma de ganhar tempo torcendo para que a economia mundial virasse. Mas ela não virou. A crise só se aprofunda na economia mundial e esse mecanismo de ganhar tempo se esgotou.

Por quê?

Primeiro, a renúncia fiscal do Estado para esses setores agravou as contas públicas, isso é um fato. E por outro lado elevou sobremaneira o endividamento das famílias. Hoje em dia vemos famílias que gastam mais da metade da sua renda só para pagar os compromissos financeiros e o crédito, seja consignado, seja no estilo ‘Casas Bahia’, que você compra em 24 meses, se paga com juros. As famílias mal tem dinheiro para pagar suas dívidas e, portanto, não compram mais. E o Estado está endividado dentre outras razões, por causa da renúncia fiscal que fez. Os mecanismos se esgotaram. Em suma, tentamos ganhar tempo. Isso não surtiu efeito, a crise econômica mundial permaneceu e agora vivemos os efeitos, que poderiam ter sido sentidos antes, redobrados.

O que deveria ter sido feito?

O que a gente tinha que ter feito lá atrás, mas bem lá atrás, no começo do século XXI, era aproveitar o cenário externo favorável – entre 2002 e 2007 – para fazer mudanças estruturais na economia brasileira. Ao invés disso, a gente só aprofundou o que já vinha fazendo do ponto de vista estrutural e surfou na onda do crescimento da economia mundial. Mas essa onda acabou. Só para que fique claro: não me refiro às reformas estruturais que são clamadas hoje em dia, além do ajuste fiscal. Ao contrário. Estamos nessa situação grave porque aprofundamos reformas estruturais de liberalização dos mercados, desregulamentação do mercado de trabalho e financeiro, reformas liberais de mercado previdenciário, reformas trabalhistas, ampliação do processo de privatização, etc. Do meu ponto de vista, durante a época do cenário externo favorável a gente tinha que ter retrocedido nessas reformas estruturais liberais.

Como essa inflexão deveria ter se dado?

Tudo passaria por criar as condições possíveis para a redução da taxa de juros. Agora, para reduzir existem algumas premissas. A primeira delas: você vai ter que lidar com o passivo financeiro do Estado. Vai ter que enfrentá-lo fazendo uma auditoria para saber a legitimidade dessa dívida, em suma, como ela foi construída. A partir daí, renegociar com os credores condições mais favoráveis. Segunda coisa: no cenário que vivemos na economia mundial, reduzir taxa de juros pode implicar uma saída muito forte de capital externo, o que, por sua vez, pode gerar uma crise cambial. Portanto o controle do câmbio é pré-requisito. São medidas extremamente fortes que implicam mudar estruturalmente a estratégia de desenvolvimento, o que certamente não é o que o governo se propõe a fazer, aliás, nunca se propôs.

Quais são as implicações dessa saída de capitais?

Saída de capitais significa que, pela razão que seja, se os investidores com ativos denominados em reais acharem que o câmbio vai se desvalorizar eles saem antes disso acontecer. Porque se o câmbio desvalorizar, na hora em que eles transformarem seus ativos de reais para dólares, eles vão conseguir menos dólares. Então qualquer expectativa de desvalorização do câmbio gera debandada. O problema é que a saída desses investidores significa venda de ativos em reais e compra de ativos em dólar. Ou seja, aquela desvalorização que estava sendo esperada de fato acontece pelo simples fato de que a expectativa traz como consequência exatamente essa compra de ativos em dólar. Esse é o problema da volatilidade da taxa de câmbio.

E qual é o impacto de uma desvalorização do câmbio muito forte?

São vários. Do ponto de vista quantitativo, se saem recursos de ativos denominados em reais a gente começa a ter problemas para financiar nossas contas externas. O rombo das contas externas começa a crescer de maneira cavalar, temos um saldo muito deficitário em transações correntes que precisa ser financiado. Isso por um lado. Por outro, a desvalorização do câmbio significa que os produtos que a economia brasileira compra lá fora para produzir aqui ficam mais caros. Isso aumenta custos e pressiona a inflação. Por isso que para reduzir a taxa de juros você precisa controlar o câmbio para que não tenha um efeito da desvalorização do câmbio, ou seja, impedir fuga de capitais, para dizer de maneira mais clara.

Qual seria outra estratégia de desenvolvimento?

Reverter todo o processo de privatização de empresas estratégicas para que voltem a fazer parte do controle do Estado brasileiro porque a transnacionalização, a privatização de setores estratégicos implica a saída de recursos, transferência dos lucros e dividendos. Por outro lado, reverter o processo de liberalização financeira, porque ela significa que ativos financeiros podem ser comprados e vendidos com pouca regulamentação, o que significa a transformação de ativos que estão em moeda nacional muito rapidamente em moeda externa. Precisa romper com as reformas trabalhista e previdenciária, porque o que se está fazendo é pegar os recursos que seriam para a previdência pública e de alguns fundos de pensão, e dando na mão da iniciativa privada. Em nenhum lugar do mundo a privatização da previdência deu certo. A experiência está mostrando que elas [previdências] quebram, o que significa comprometer a pensão dos trabalhadores. O Chile implementou essas reformas desde a época da ditadura nos anos 1970 e o sistema de previdência está quebrado. Isso significa que, em algum momento, eles serão obrigados a reestatizar [a previdência] mas pegando todo o passivo que foi criado pelo processo de privatização. Ou seja, o Estado assume as quebras do setor privado, o que costuma acontecer com alguma regularidade no capitalismo.

Qual sua avaliação sobre o documento “Por um Brasil justo e democrático”, lançado por entidades como a Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, no sentido de ser um contraponto ao ajuste que está sendo feito pelo governo Dilma?

Sou muito pessimista em relação a esse tipo de proposta. A impressão que dá quando você lê esse tipo de documento é que eles tentam manter de alguma maneira a política de conciliação de classes que foi feita pelos governos do PT entre 2002 e 2007. Ou seja, retirar um pouco o peso do ajuste do trabalho e passar de alguma maneira para o capital. Acontece que política de conciliação de classe em economia dependente só se consegue fazer quando há recursos para tanto. Que significa conciliação de classes? Durante o governo Lula, por exemplo, houve aumento do salário real, só que teve uma diminuição do que se chama salário relativo. Deixa eu explicar: salário real são os salários nominais em função do poder real de compra deles. Mas o salário relativo, ou seja, a relação salários/apropriação do valor produzido pelo capital, o que se chama distribuição funcional da renda, piorou. Mas isso você pode fazer, o crescimento do salário real, quando tem recursos, e a economia brasileira teve recursos por conta do cenário externo favorável. Acabou esse cenário externo favorável. Portanto, uma política de conciliação de classes sem recursos é impossível. E se é impossível um governo que está capitaneando isso é obrigado a optar entre as classes que estavam sendo conciliadas. Me parece que a opção do governo é bem clara.

Os governos do PT romperam com o neoliberalismo?

Eles acham que sim, mas na verdade não. Na verdade se tentou resgatar com outra perfumaria o que em algum momento se chamou de neodesenvolvimentismo. Que era uma tentativa de propor outra política econômica, heterodoxa, ou seja, criar os pré-requisitos para a redução da taxa de juros a um patamar inferior à taxa de remuneração do capital privado para que o processo de acumulação fosse mais produtivo, gerando empregos, salários, crescimento e menos financeiro. Essa é a visão teórica que está por trás disso. Só que o neoliberalismo não se define no plano da política econômica. O neoliberalismo não é sinônimo de política econômica ortodoxa. Ele tem dois sustentáculos: a estabilização macroeconômica, leia-se, dos preços da inflação. Segundo, as reformas estruturais pró-mercado têm que ser incentivadas. Como se consegue a estabilização macroeconômica? Com política econômica, monetária, fiscal e cambial ortodoxa ou heterodoxa? Tanto faz. Desde que você consiga. O importante é o estrutural. O que o novo desenvolvimentismo estava propondo? Uma política econômica heterodoxa, mas isso não é contrário ao neoliberalismo, porque se você não rompe com as reformas estruturais liberais você não rompeu com o neoliberalismo. É uma falsa alternativa.

O Estado de Bem-Estar Social ainda é o horizonte?

É o sonho de um Welfare State revivido, revisitado. Isso é utopia, isso acabou. O ajuste que a economia está fazendo no mundo inteiro é liberal na veia, sem nenhuma perfumaria. Mesmo aqueles países que eram o sonho de consumo dos defensores do Estado de Bem Estar – Escandinávia, Dinamarca, Suécia – estão retrocedendo. Isso é matéria para a história econômica, coisa do passado, já era.

Mas se acabou, não seria preferível voltar a ele? Em outras palavras, o senhor acredita que mesmo os que se filiam a uma tradição de pensamento econômico marxista devem cerrar fileiras na defesa de uma perspectiva reformista, que tem o Welfare como horizonte?

São várias coisas. A primeira delas, do ponto de vista mais concreto, é acumular forças para ser contrário a qualquer tipo de imposição de ajuste na remuneração do trabalho. E aí pouco importa como é que se chame isso, eu chamo de ‘modus esperneandis’: tem que espernear, porque se a tendência é essa e não houver reação [o ajuste em cima do trabalhador] vai ser feito a fórceps. Vamos ter que espernear sem a garantia de nenhuma vitória. Por outro lado, essa disjuntiva que vem já há séculos, reforma ou revolução, é falsa. Não são binários, ao contrário. Mesmo quando você tem uma preceptiva revolucionária, uma maneira de acumular forças e criar consciência para a transformação revolucionária é implementando reformas radicais, o que não quer dizer que elas levam inexoravelmente a uma transformação revolucionária. E aí entra a questão das alianças de classe e de frações de classe. Você vai ter dentro de um projeto de reforma radical alguns grupos, por exemplo, alguns neodesenvolvimentistas, mas se você propuser ir além para uma transformação revolucionária tenho certeza que esses grupos caem fora.

A defesa de uma perspectiva reformista é desejável?

Acho que sim. Essa é uma diferença entre estratégia e tática. Em palavras claras: se me passarem uma petição para assinar em prol de uma política econômica heterodoxa, contra uma política econômica ortodoxa, eu assino. Só que eu quero outra petição, para mudar a estratégia de desenvolvimento rompendo com a estratégia neoliberal de desenvolvimento. Essa eu assino com a tinta mais forte. Mas eu quero assinar ainda uma terceira petição [da revolução]. A atitude reformista é exatamente parar na segunda petição.

Na última semana, apareceram na imprensa alguns sinais trocados entre Dilma e o PT. O partido, e talvez principalmente Lula, insistiriam na importância de virar a página e investir numa "agenda pós-ajuste". Já Dilma teria afiançado a permanência de Joaquim Levy na Fazenda. No pano de fundo desse conflito parece estar os insuficientes resultados do ajuste, que não tem conseguido conter a inflação ou a alta do dólar, nem tem evitado os rebaixamentos sucessivos no grau de investimento, por exemplo. O fato de Levy estar na corda bamba se deve as falhas do ajuste ou à oposição ao ajuste ortodoxo que vem da própria base do governo?

Eu acho que as duas coisas, mas independente de quem tenha mais força nesse processo, a pergunta é: sair o Levy pra entrar quem? O Lula está defendendo que seja o [Henrique] Meirelles [ex-presidente do Banco Central]. Qual é a diferença? Nenhuma, a lógica é a mesma. Não é mudar um nome que vai alterar a questão e sim a política. E a política que está por trás reflete o bloco de poder que está por trás. Por mais que mudem os nomes, o bloco de poder de todos, sem exceção, os governos do PT me parece bem claro.

Falando em Henrique Meirelles, qual sua avaliação sobre a atuação do Banco Central, que registrou perdas importantes por conta de operações como os leilões de swaps?

A atuação do BC no mercado de câmbio, principalmente no mercado de câmbio futuro, é uma tentativa de ganhar tempo para que a instabilidade e o aprofundamento da crise que se espera para amanhã não aconteça hoje. Quem espera uma crise em algum momento, por exemplo, explosão da taxa de câmbio, a tendência é comprar dólar ou ativo denominado em dólar, o que traz a crise para hoje. O que o BC faz? Ele chega para os investidores e fala ‘não se preocupem, continuem investindo em real que eu cubro qualquer desvalorização do câmbio que por ventura existir’. Só que quando acontece a desvalorização do câmbio os caras passam a conta, querem ser cobertos pela perda que tiveram, e isso significa prejuízo para o BC. A atuação do BC no mercado futuro de câmbio é para tentar ganhar tempo para que a crise cambial não se estabeleça. Só que como a crise econômica mundial é muito forte, e os impactos vêm, isso se reflete nos prejuízos do Banco Central. É uma maneira de ganhar tempo e, na lógica deles, tempo é necessário para que os ‘efeitos benéficos’ do ajuste fiscal, apareçam. Só que do meu ponto de vista não vão aparecer e o BC vai continuar com prejuízo.

Isso incide sobre a dívida pública?

Entre outros fatores. Como estourou a crise de 2007-2008? Um excesso de oferta de papéis que não tinham espaço no mercado financeiro. No começo [a crise estava] atrelada ao mercado imobiliário, mas depois se espalhou e contaminou todos os mercados. Se o governo não faz nada esses papeis despencam e começa a quebradeira dos bancos privados, como quebrou o Lehman Brothers [banco de investimento dos Estados Unidos]. Mas, segundo o argumento deles, um banco grande não pode quebrar porque isso vai desestabilizar a economia. Mas a questão é política. Quem entra para salvar esses bancos? O Estado. O Estado entra no mercado comprando esses papeis, ou seja, aumentando a demanda por esses papeis para que não sejam precificados para baixo. Isso significa que o Estado precisa conseguir recursos para pagar essa compra. E ele consegue recursos, por um lado, com o ajuste fiscal. Tira dinheiro de saúde, educação, moradia, etc. Só que os recursos necessários para isso eram tão robustos que esse só o corte não foi suficiente. E aí o Estado, como todo agente econômico que precisa gastar e não tem dinheiro, pegou emprestado. Pediu dinheiro emprestado para quem? Para o próprio setor privado. O Estado pega dinheiro emprestado emitindo títulos da divida pública. Então se você juntar as duas pontas, os bancos não pagaram a conta da crise porque o Estado trocou no mercado financeiro títulos podres por títulos da dívida pública, que têm alta liquidez e alta rentabilidade. O Estado ficou com o mico na mão, por isso que a dívida pública explode.

Outra proposta defendida é a auditoria da dívida pública, e exemplos como Equador e Grécia são citados como casos em que essa auditoria teve sucesso. No entanto, como o senhor avalia a dificuldade de uma proposta desse tipo num país como o Brasil, que ainda que tenha uma inserção periférica no capitalismo mundial, tem um peso econômico bem mais significativo do que o Equador e a Grécia?

Dificultam exatamente por isso. Você mexe com interesses muito fortes. Com esse governo a auditoria da dívida nunca vai acontecer porque significa ferir interesses de quem está no bloco de poder do próprio governo. Mas é importante entender que a auditoria da dívida em si não resolve o problema. É um instrumento técnico e político que permite barganhar. Permite abrir o jogo e dizer que tem ilegalidades, casos de polícia em relação à montagem da dívida. Por exemplo, há um efeito autopropulsado da dívida em função do crescimento da taxa de juros. Isso pode ser jogado na mesa para dizer ‘é impagável’. Ou decretamos moratória ou se melhora as condições de pagamento. Quando você é bom pagador, o credor nunca vai querer sentar com você para renegociar os termos do pagamento. Mas quando você ameaça não pagar, ele vai sentar.