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Entrevista: 
Luiz Araújo

'A paralisia do Plano Nacional de Educação é a consequência mais preocupante do ajuste’

Professor da Universidade de Brasília, Luiz Araújo avalia o impacto do ajuste fiscal nas políticas públicas de educação, que vem sofrendo com os cortes de recursos públicos justamente no momento em que se deveria estar implementando as metas para a melhoria da educação nos próximos 10 anos trazidas pelo Plano Nacional de Educação.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/10/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Quando se pensa nos prejuízos que as políticas de educação vão sofrer com o ajuste fiscal, pensa-se imediatamente no corte de mais de R$ 10 bilhões do orçamento do MEC. Mas segundo Luiz Araújo, professor da Universidade de Brasília, a recessão que resulta do modelo de ajuste escolhido pelo governo tem consequências ainda mais sérias para a educação básica, que é ofertada principalmente por estados e municípios. De acordo com o especialista em financiamento, o pé no freio do crescimento econômico e do consumo vai gerar uma queda na arrecadação dos impostos e contribuições que, por vinculação constitucional, garantem os investimentos mínimos nos serviços educacionais. Nesta entrevista ele mostra que, para piorar, o ajuste chega exatamente na hora em que se deveria estar implementando o Plano Nacional de Educação, que traz metas para melhorar a educação nos próximos dez anos, algumas com prazo a vencer já em 2016.

Além do corte orçamentário do Ministério da Educação, existem outras medidas em curso que se possa considerar como parte do ajuste fiscal na educação?

O ajuste fiscal é um conjunto de medidas visando, em tese, estabilizar a economia, por um lado, para combater a inflação e, por outro, para acabar com o chamado déficit público e voltar a ter o chamado superávit primário. As duas coisas têm a ver com a educação básica. Qual é a lógica do ajuste? Eu torno mais caro o dinheiro e, com isso, inibo, digamos assim, a captação de recursos e o consumo. Com isso derrubo a inflação. Qual é a consequência prática disso? Menos circulação de mercadoria, menos produção, ou seja, uma recessão. A recessão afeta diretamente os principais tributos. A principal fonte de manutenção da educação básica é o ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços]. Uma recessão afeta diretamente a principal receita da educação básica. Então, o efeito financeiro maior na educação básica não é o corte no MEC. Logicamente que se você anuncia que no ano que vem o governo federal não vai financiar mais creches novas, há o efeito concreto de se ter menos investimento, menos capital para construir. Agora, o efeito da redução do ICMS é uma bola de neve porque 60% do que a gente capta de recursos para formar o bolo dos estados e municípios vêm do ICMS. É muito impactante, é impactante no Fundeb, na economia. Ele reduz a massa de recursos disponíveis para estados e municípios e 25% disso vai para a educação. Há outros tributos que a recessão impacta, como o IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados], por exemplo: as fábricas estão fechando, dando férias coletivas, etc., é menos arrecadação de IPI. O terceiro componente do ajuste fiscal, no sentido mais amplo, que não foi aprovado ainda, é a flexibilização dos contratos de trabalho.

Por quê?

O que as empresas fazem para fugir de uma crise? Elas buscam sonegar tributos. Uma forma é não assinar carteira, o que diminui o salário-educação, que é uma contribuição social vinculada à formalização do trabalho. Quanto mais mercado formal, mais salário educação, considerando que você não sonegue. Quando a gente fala que as pessoas estão desempregadas, não é que elas não tenham renda, elas estão vivendo de alguma forma. Então, quanto mais emprego precário se admite, quanto mais se flexibiliza a legislação trabalhista, menos salário-educação se tem. Então, em várias pontas da política mais macro a educação básica é vitimada. Os estados e municípios estão com mais dificuldade para pagar o piso, para fechar o décimo terceiro, vai ser uma choradeira geral no final do ano. Isso significa que se está com dificuldade para manter o que existe. Porém, estamos na vigência de um Plano Nacional de Educação (PNE) em que boa parte das metas são estaduais e municipais. Essas metas significariam uma ampliação dos serviços ou melhoria dos salários. A meta 17 é para equiparar os salários até meados da década com os demais profissionais de nível superior. Bem, se eu não consigo nem pagar o piso, obviamente não estou me aproximando disso. Universalizar o ensino de quatro a cinco anos até o ano que vem, que é outra meta: seu eu não estou conseguindo nem pagar os salários, como vou colocar mais aluno para dentro? Colocar mais alunos para dentro significa contratar mais professores. A paralisia do Plano é a consequência mais preocupante do ajuste. Porque significa você passar dois, três anos sem cumprir um Plano de dez. Duas metas vencem em 2016 e não vão ser cumpridas. E elas poderiam ser cumpridas se a economia estivesse crescendo, porque a arrecadação tem crescido acima da inflação durante a série histórica. A paralisia da economia tem efeito na arrecadação, uma queda desse crescimento e um conservadorismo em se expandir a rede porque, se eu não sei como a economia vai se comportar, não vou meter os pés pelas mãos, não vou contratar mais. E existe um discurso de corte no número de servidores, um discurso que é recorrente na história do Brasil, mas agora a solução é você enxugar a máquina. Uma parte disso no governo federal é para garantir o superávit, mas nos estados é para fechar as contas, inclusive para pagar a dívida com a União. Qual é o drama que o Rio Grande do Sul está vivendo? Não consegue pagar os salários, mas tem suas contas bloqueadas porque não paga a dívida com a União.

Como é essa dívida dos estados com a União?

Tem a ver com a Lei de Responsabilidade Fiscal. As pessoas conhecem essa lei por uma parte dos seus defeitos, de estabelecer limites para os gastos com pessoal. Mas ela não foi feita para isso. Ela foi feita num momento de negociação entre estados, municípios e União porque esse entes não estavam conseguindo pagar suas dívidas com a União. A União então estabeleceu uma lei que viabilizava sobrar dinheiro para pagar dívida, ou seja, estabelecia um limite de gasto com pessoal, que era a maior despesa, para forçar que se tivesse recurso para pagar a dívida. Isso funcionou: a União recebeu os recursos, parte desses recursos alimenta o superávit primário — porque o superávit não é só da União, que é o mais famoso, é também dos estados e dos municípios. Os principais estados têm dívidas grandes, dívidas com captação externa mas cujo avalista é a União. Então houve uma federalização das dívidas em troca do compromisso de os estados pagarem suas parcelas à União. Quando eles não pagam, complica a situação das contas da União. Então a União tem um mecanismo que a LRF permite de bloquear as contas. É muito eficiente a LRF. Essa dificuldade de fechar as contas vai levar outros estados a começarem a atrasar a dívida.

Você citou o caso do Rio Grande do Sul...

O Rio Grande do Sul está com um problema de caixa, está gastando mais do que deveria pela Lei de Responsabilidade Fiscal e não está conseguindo pagar a dívida. Quando ele não paga a dívida, suas contas são bloqueadas. Sendo bloqueadas, ele não consegue pagar nada. Ele veio a Brasília tentar negociar. Mas esse é o único ponto que não se negocia, não houve acordo. Porque é uma cláusula pétrea da política fiscal você obrigar os estados a pagarem sua parte da dívida. Criar uma exceção abre a porteira e cai essa lógica de superávit.

E quais os efeitos do corte de mais de R$ 10 bilhões no orçamento do MEC para a educação básica?

A educação básica é vitimada por esses componentes e também pelos cortes orçamentários do MEC. Há três fontes que são afetadas diretamente. Uma é mais macro, que é a complementação da União para o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação]. Apesar de ela não poder ser contingenciada — e portanto não ter sido vitimada pelos cortes —, a participação da União no Fundeb corresponde a 10% do bolo que os estados e municípios depositam no Fundo. Se eu projeto uma arrecadação menor, e esse fundo cai, cai proporcionalmente a complementação da União. O bolo vai cair ou, no máximo, ficar sem ser corrigido, o que é como uma queda, porque não se vai corrigir nem a inflação do período, o que complica a situação dos estados. Então, a complementação da União para o ano que vem certamente vai ser menor. A gente não tem ainda os cálculos da arrecadação para 2016, mas vai ter uma paralisia ou uma queda. Vai ter uma diminuição do efeito redistributivo da União nos estados mais pobres. Então, o ajuste só faz mal. Só que as pessoas não medem o tamanho do efeito dele, porque nem tudo chama muito atenção das pessoas. A paralisia da economia e corte do salário-educação diminui o volume dos recursos do FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação] e isso afeta os programas. E tem os cortes preventivos ou efetivos que já anunciam paralisia ou diminuição de investimento de alguns programas que são de repasse voluntário da União para estados e municípios.

Por exemplo?

Por exemplo, o Proinfância. A lógica do governo é não abrir novos contratos ano que vem, só executar os que já estão acordados, o que vai contra a lógica do Plano Nacional de Educação porque na verdade a gente precisava acelerar os contratos de construção de novas creches. Executar só os anteriores significa dar uma retração importante na ajuda da União aos municípios. Estamos mais distantes de cumprir a meta 1 do PNE. Várias metas do Plano dependem de investimento da União: a meta 1, a meta 6, que fala da educação integral, que é adaptar as escolas, com construção de novas salas... Na verdade, o ajuste vai provocar um congelamento do cumprimento do Plano Nacional de Educação.

É possível prever impactos específicos na educação profissional?

Tem um agravamento porque significará uma diminuição no ritmo de crescimento da esfera pública federal. Uma das estratégias do Plano, na meta 11, é aumentar o número de escolas profissionalizantes ou apoiar os estados. O efeito é igual ao que eu te falei: o governo federal não vai querer expandir nada, só vai querer cumprir o que já estava licitado. Porém, na educação profissional, você já tem uma prioridade do governo que é expandir via Pronatec. Eu não acredito que o Pronatec vá ser afetado pelo ajuste. Porque o poder de influência do setor privado para conter qualquer corte é muito grande. Pode diminuir um pouco o ritmo, a expectativa que havia, mas ele vai crescer mais rapidamente do que a expansão federal. Ele é mais barato. O risco que existe é de que o Pronatec cresça apenas nos cursos rápidos, o que não dialoga com o Plano Nacional de Educação, que prevê um crescimento do ensino técnico, com pelo menos 50% sendo público. Público pode ser federal ou estadual mas para isso acontecer precisa de apoio federal. Essa é uma diminuição que já vinha acontecendo antes por uma opção política. Agora, além da opção política, existe o componente econômico.

Teve uma corrida desesperada esses dias para garantir que o edital de todos os concursos necessários nas universidades seja lançado este ano. Porque se não, vai passar dois anos sem fazer concurso. Todas as vagas de aposentadoria e outras coisas, que você poderia, num ritmo normal, fazer em janeiro, fevereiro, todos foram lançados agora. É uma medida preventiva porque você não sabe quando vai ser liberado novamente. Não vamos dar conta de fazer tudo, tem gente que só vai se aposentar ano que vem, e a vaga ainda não está liberada, mas isso é sobre vagas existentes. O problema é que para ocupá-las, eu tenho que abrir um novo concurso, e isso está proibido.

Os cortes afetaram diretamente onde não era essencial. Tem menos dinheiro. O que eu não posso cortar? Tem o salário dos professores, que nem vem para mim. De custeio, o mínimo, alguma coisa eu posso cortar, mas tem um limite, eu já estou no osso. Corto contrato de terceirizado, mas isso diminui a prestação de serviços. Corto diária. Nós estamos com um problema seríssimo agora para fazer banca de concurso porque não se tem dinheiro para trazer as pessoas. Uma amiga minha foi convidada para uma banca de concurso na universidade do Piauí. depois ligaram e perguntaram se ela não poderia fazer mais dois para aproveitar a viagem. O critério já não é qual a melhor pessoa, é a mesma pessoa para fazer vários concursos, se não eu não consigo fazer.

O ajuste fiscal na educação prevê medidas estruturais que já estejam em curso ou com chance de serem implantadas? No geral, fala-se em nova reforma da previdência, aumento da Desvinculação de Receitas da União (DRU)...

Eu diria que a coisa mais estrutural que pode afetar as políticas sociais da educação é criar um ambiente favorável a se repassar mais serviços ainda para o privado. Se nada der certo, se se colocasse de novo a DRU na educação, seria uma medida muito impopular, mas medidas impopulares têm sido propostas. Na aposentadoria, já existe um ambiente propício a uma terceira Reforma da Previdência. Seria uma medida mais estruturante. Mas como é que você reduz os gastos? Retirando aquele serviço da competência do Estado. É uma medida maldosa e absurda em termos de direito, mas tem efetividade. Isso já estava começando a acontecer. Vou dar um exemplo, que é do Distrito Federal. As creches que estão sendo construídas pelo Proinfância estão sendo repassadas para Oscips [Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público]. Você expande a rede sem expandir o gasto com pessoal. A oscip é uma rede privada, que não tem que cumprir o piso, não tem que fazer carreira. Então você precariza as relações de trabalho, passa a gestão para o setor privado. Isso que já é um fenômeno que estava crescendo, o ambiente de crise favorece essas alternativas.

O campo da educação tem pensado alternativas ao modelo de ajuste em curso?

Existem outras opções, vários economistas estão apontando. Tem um estudo feito pelo Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], que fez o caminho do dinheiro. Qual era o fluxo econômico de cada opção em termos de políticas públicas e políticas macroeconômicas? Todo recurso investido nas políticas públicas — além do aspecto inclusivo delas, de promover cidadania e melhoria da escolaridade a longo prazo —, é gasto com consumo. Então, eu sou favorável àquela máxima de Keynes que, em período de crise, manda plantar garrafa. Tem até outras coisas melhores do que garrafa para se plantar no Brasil. Por que ele dizia isso? Porque pagaria salários, plantar garrafas seria gasto em consumo real, e esse consumo real gera necessidade de emprego, fazendo um círculo virtuoso. As medidas do governo vão na contramão disso. Garantem a lucratividade dos bancos, o superávit, mas geram recessão e criam um círculo vicioso. Em vez de esse círculo voltar a girar a economia, afeta diretamente o fundo público de prover a educação e sua expansão. Você tem um limite de tributação da sociedade. Nossos tributos são sobre o consumo, então são muito afetados pela recessão. Tributamos muito pouco a renda, não tributamos fortuna nem herança nem a propriedade de forma significativa. Sem mudar a política tributária de forma radical, você teria que ter uma expansão do consumo, o que se tentou fazer sem muita radicalidade no período anterior. Vários economistas têm dito isso: uma das medidas de estímulo ao consumo são obras públicas, seja na área de infraestrutura, seja na área de políticas sociais. Você aumenta a massa salarial, aumenta o consumo onde ele tem capacidade para crescer, que é na pequena produção. Várias medidas poderiam ser tomadas em relação a isso. Na década de 1930, a gente comprou os estoques de café para que os produtores não falissem. Nós não temos uma medida para comprar os estoques da pequena produção que não vai ter para quem vender. Não há uma política de investimento massivo para geração de emprego em obras públicas. Várias medidas que são tomadas em momentos de crise o governo não colocou na mesa porque isso significa diminuir o superávit, diminuir o apoio aos bancos. O [Joaquim] Lévy não vai cometer suicídio, né? Não vai fazer uma política que favoreça o setor econômico que ele representa. É um problema de opções. Eu não vejo nenhuma sinalização do governo. Quanto mais fraco o governo, mais dependente dessa política ele vai ser.

Você falou sobre a necessidade de uma reforma tributária. Além de uma taxação mais progressiva, preciso priorizar imposto no lugar das contribuições?

Nós precisamos de uma reforma tributária que tire mais dinheiro da propriedade e menos do consumo. Porque tirar do consumo é uma medida regressiva, já que o pobre consome tudo que recebe e o rico não. Então, você está proporcionalmente afetando os pobres assalariados do que os ricos. Isso é uma coisa. Outra coisa, que não tem a ver diretamente com isso, é o fato de que, pós-1988, como o nosso pacto federativo obriga que se reparta o dinheiro dos impostos com estados e municípios, e como há uma vinculação com educação e saúde, o governo federal criou contribuições para fugir dessa amarra. A contribuição tem uma destinação específica. A CPMF é a mais famosa: só podia gastar com saúde. Você não precisava repartir o bolo com estados e municípios e não havia vinculação sobre ela. As contribuições são muito relevantes no governo federal, é um fenômeno da União. Estados e municípios não podem criar contribuição, podem só aumentar ou diminuir alíquota.
Mas a seguridade social é financiada, constitucionalmente, por contribuições, como a CSLL...

Isso foi na época da Constituição. O problema são as que foram sendo criadas depois. Nós também temos o salário-educação, que é uma contribuição. Como efeito do ajuste, pode vir uma pressão do empresariado para enxugar a carga tributária. No primeiro governo Lula, na primeira tentativa de Reforma Tributária, iam acabar com o salário-educação. Teve uma grita, não se conseguiu. Eu tenho medo de uma nova Reforma Tributária hoje, porque ela não será progressista, será para dar uma folga para as empresas e folga para empresa significa diminuir os tributos públicos e a capacidade de prover.