Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Observatório na Mídia

19/07/2013 14h57 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Análise

por: Geandro Pinheiro (professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio / Fiocruz

Não é a voz de Deus, mas é o grito dos excluídos

Pesquisador da EPSJV comenta entrevista em que Delfim Netto procura explicar as manifestações. Para o ex-ministro, a voz das ruas tem de ser "educada", para entender que é preciso ter "austeridade fiscal".

Há diversas formas de se analisar as manifestações que tomaram o Brasil  nas últimas semanas. Nenhuma delas é neutra, sempre orientadas por uma visão de mundo, por um posicionamento de classe, e por uma disputa de significado e perspectivas.

E o eterno ministro Delfim Netto sempre tem muito a dizer. Seu front é conhecido, e é oportuno analisar não só o que diz, mas a racionalidade de seu legado, e relacioná-lo com o presente.

Delfim foi o pai do "milagre econômico brasileiro", política de aceleração do crescimento nacional, quando foram realizadas diversas obras gigantescas de infraestrutura e projetos de impacto, e o país figurou entre as principais economias do mundo. O Governo do qual fazia parte convidava a todos ao ufanismo, propagandeava a grandeza do país, e reivindicava o papel de potência mundial. Nesse mesmo período, o Brasil vivia o clima de uma Copa do Mundo de futebol. “Todos juntos vamos, pra frente Brasil”, é a música-síntese dessa época.

Coincidências com a conjuntura atual? Talvez não: Delfim cultiva o papel de conselheiro constante e próximo do ex-presidente Lula, bem como de outros próceres dos últimos governos federais. Os neo-desenvolvimentistas atuais bebem da fonte dos desenvolvimentistas do “milagre”. As escolhas da política econômica e fiscal dos dois períodos têm muitas semelhanças.

A afinidade do legado do economista com a atualidade é ainda mais ampla: nossa imensa dívida pública atual teve em sua gestão o início da aceleração de seu volume, triplicada entre 1967 a 1972, a partir da tomada de empréstimos de bancos privados estrangeiros para contornar os déficits da balança de pagamentos. Delfim implementou ainda amplas retiradas de encargos do setor empresarial brasileiro, como as desonerações recentes, e fomentou a expansão de negócios financeiros.

Nada novo então ver Delfim aconselhar que, diante dos reclamos das ruas, o governo deve apressar as concessões, realizar amplo e longo ajuste fiscal, e atender as “condições do mercado”. Ele sempre afirmava que temos que “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”, então não seria agora que ele leria nos cartazes a urgência por mais direitos.

Ele afirma que “queremos uma sociedade com liberdade individual, relativa igualdade e eficiência produtiva”. Nós quem, cara-pálida? Não foi isso que se viu nas ruas. Ao contrário, as manifestações gritavam por uma sociedade mais solidária, repugnavam a desigualdade social imposta pela distância das prioridades governamentais dos anseios e necessidades populares, e exigiam mais e melhores políticas de proteção social, com qualidade “padrão FIFA”.

Não se viu cartazes pedindo mais mercado, mas mais Estado! Porém um Estado ampliado, mais permeável e democratizado, e menos dominado por interesses econômicos, seja de multinacionais do futebol, de empreiteiras e Eikes. A exigência é também por uma classe política menos privatizada, e por formas de participação mais direta nos rumos da nação.

Apesar de nascido no dia dos trabalhadores, Delfim segue uma racionalidade demofóbica, moralista e autoritária, assim como os governos militares de que participou, onde o povo, conceituado quase como “tudo aquilo que não é governo”, deve ser educado para a reprodução e apassivamento. A catequese da dominação é sugerida, e na falta de canhões e paus de arara, insta a presidenta a fazê-la mostrando “liderança” e competência. O aconselhador-mor se crê moderno, mas apenas maquia posições medievais, dando eco ao uso que Santo Alcuíno fez do famoso ditado popular, que em 798 D.C. dizia: “Não devem dar ouvidos aos que costumam dizer que a voz do povo é a voz de Deus, pois a impetuosidade da multidão sempre está muito próxima da loucura".

Não, Delfim, você não nos representa! Saiba tu, pai da dívida pública brasileira, que temos asco em saber que em 2013, até 17 de julho, sua filha consumiu 53% de todo gasto público federal . Não temos que “devolver racionalidade ao sistema”, como recomenda, pois é esse sistema que você ajudou, ajuda e aconselha que nos fez ir às ruas. Nossa voz de fato não é a voz de Deus, nem a voz da lógica. Já dissemos para o Feliciano, e agora pra ti: as ruas são laicas, nossa voz é laica, e cheia de som e fúria. Sua voz é a voz do mercado vândalo, mas a nossa voz, a voz do povo, é o grito dos excluídos, procurando furar os tímpanos da classe dominante e dos gestores.

É o grito de quem sofre com o péssimo sistema de transporte, nas filas de unidades de saúde, frequentando escolas e professores alquebrados, e morre e apanha da polícia-bandida nas favelas. É certo que as mudanças demoram. Reformas estruturais, exceto em contexto revolucionário, são lentas. A urgência é pela disposição e orientação clara de que é a voz do povo e não o poder econômico que será ouvida em primeiro lugar.

A voz da rua não é a voz de Deus nem a voz da lógica, diz ex-ministro Delfim Netto

O ex-ministro Delfim Netto faz um alerta: "A voz das ruas não é a voz de Deus".Ele se refere aos protestos que sacudiram o país nas últimas semanas. Segundo ele, as manifestações são uma prova de que as prioridades dos governos estavam equivocadas, mas que agora é preciso "liderança política". "O governo precisa mostrar liderança, porque o país está no limite", diz Delfim, referindo-se à inflação alta e ao deficit nas transações com o mundo. Para colunista da Folha, a saída é a presidente Dilma Rousseff usar a sua credibilidade para fazer um ajuste fiscal. "Tivemos truques demais [na área fiscal]."

Folha - Por que as pessoas foram às ruas?

Delfim Netto - É uma emergência. Alguns fenômenos vão ocorrendo aos poucos e, de repente, a acumulação provoca uma mudança qualitativa. São Paulo é um inferno, mas aos poucos as pessoas se convenceram de que a solução é impossível, porque não tem recursos. De repente, aparece recurso para fazer estádio.O povo é muito sábio. Recurso não é dinheiro, mas cimento e ferro. O povo concluiu o seguinte: o cimento e o ferro que construíram o estádio são o cimento e o ferro que não construíram o metrô.

Mas há recursos para fazer mais metrô?

Claro que não. O problema é que as prioridades do governo não eram as que a sociedade desejava. A primeira reação do governo foi de susto e produziu uma esquizofrenia hiperativa. De repente, o Congresso aprova projetos parados há dez anos em quatro horas. Mas aprovou sonhos, ideias. Ou seja, nada será cumprido. Teremos de devolver racionalidade ao sistema.

Raquel Landim, jornal Foha de São Paulo 07/07/2013O ex-ministro Delfim Netto faz um alerta: "A voz das ruas não é a voz de Deus".Ele se refere aos protestos que sacudiram o país nas últimas semanas. Segundo ele, as manifestações são uma prova de que as pr
Acesse a matéria na íntegra