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14ª CNS: consolidação da Seguridade Social deve permear debates

Integração das ações de Saúde, Previdência e Assistência Social é vista como condição para bom funcionamento do SUS
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 30/09/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Entender e problematizar o SUS no âmbito da Seguridade Social será um dos objetivos da 14ª Conferência Nacional de Saúde. Segundo a conselheira nacional do CNS Ruth Bittencourt, a ideia é destacar a importância da consolidação do sistema de proteção social previsto na Constituição para ampliar a qualidade do acesso ao SUS. “A saúde não se efetiva isoladamente, e é preciso discutir política, participação da comunidade e gestão do SUS para se chegar à seguridade social”, afirma.  Daí a inclusão do sub-eixo ‘Políticas de saúde na seguridade social, segundo os princípios da integralidade, universalidade e equidade’ como um dos norteadores dos debates da Conferência, que tem como tema ‘Todos usam o SUS! SUS na Seguridade Social, Política e Patrimônio do Povo Brasileiro’.

Nesta reportagem, que retoma a série de matérias especiais da Revista Poli sobre a 14ª CNS, você vai saber mais sobre o modelo de Seguridade Social brasileiro, sua trajetória desde a promulgação da Constituição em 1988 e as principais dificuldades no caminho para sua consolidação.

Inovação na proteção social

A Constituição define seguridade social como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Sonia Fleury, professora da Escola de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica que o texto constitucional inovou ao vincular a cidadania a direitos sociais universais, que deveriam ser garantidos pelo Estado. No artigo ‘Políticas públicas em busca da qualidade dos serviços de saúde’, ela escreve: “No modelo de Seguridade Social busca-se romper com as noções de cobertura restrita a setores inseridos no mercado formal e afrouxar os vínculos entre contribuições e benefícios, gerando mecanismos mais solidários e redistributivos. Os benefícios passam a ser concedidos a partir das necessidades, com fundamentos nos princípios da justiça social, o que obriga a estender universalmente a cobertura e integrar as estruturas governamentais”.

Essa integração seria garantida por meio de dois mecanismos: o Conselho Nacional da Seguridade Social (CNSS) e o Orçamento da Seguridade Social (OSS). O Conselho seria formado por representantes dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados, do Governo e dos órgãos colegiados de cada uma das três áreas que integram a Seguridade Social. Ele seria responsável pela administração do OSS, composto por contribuições incidentes sobre os trabalhadores, sobre a folha salarial, faturamento e lucro das empresas e sobre a receita oriunda de loterias. Só que o modelo nunca foi bem implementado, como diz Ruth Bittencourt: “Enquanto se discutia seguridade, os governos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso começaram a implantar o projeto neoliberal no Brasil: limitação de direitos, desmonte do Estado, desregulamentação do trabalho. Então vivemos essa dicotomia, de falar em seguridade social ao mesmo tempo em que estava em curso uma contrarreforma de desmonte dos direitos sociais. Esse é o quadro em que vivemos até hoje”.

Desmonte

Criado em 1991, o CNSS tinha, entre outras atribuições, a elaboração do Orçamento da Seguridade Social, a formulação de políticas de integração entre as três áreas e o zelo pelo cumprimento da legislação pertinente à seguridade. No entanto, o conselho teve vida curta, sendo extinto por meio da Medida Provisória 1799-5/99. “Já o orçamento da seguridade social hoje só funciona atuarialmente. Ele nunca foi discutido como forma de planejamento das ações coletivamente”, diz Sonia Fleury, em entrevista à Poli. Segundo ela, a responsabilidade pelas políticas públicas da seguridade social se dispersou entre diversos ministérios, sem que tivessem sido criados mecanismos de interface. “Cada ministério trabalha de um jeito, e isso não funciona. Chegou a um ponto de a área mais débil, que é a da assistência social, ter dois ministérios [Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome e Ministério da Assistência Social]”, aponta.

O financiamento da seguridade social também sofreu duros golpes. “Com o Plano Real, o governo decidiu que precisava de dinheiro para estabilizar a moeda e pagar o superávit primário. O mecanismo criado para isso foi a DRU [Desvinculação das Receitas da União], que permitiu que 20% do que deveria ser destinado à seguridade social fosse desviado para pagar os juros da dívida”, diz Sonia.

Subfinanciamento

De acordo com relatório da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), em 2010 a seguridade social teve superávit de R$ 58,1 bilhões. Dos R$ 458,6 bilhões destinados à área, R$ 61,1 bilhões foram para a Saúde, valor “muito aquém das necessidades”, segundo a Anfip. “A DRU subtraiu da Seguridade, em 2010, R$ 45 bilhões (...) Nesse tema, lutar contra a renovação DRU, que se extingue em 2011 , está na ordem do dia”, conclui o relatório.

Essa é apenas uma das demandas no sentido de fortalecer a Seguridade Social. Para Sonia Fleury, a proposta de reforma tributária em discussão no Congresso pode significar mais cortes de recursos. “Há uma proposta de desonerar a folha salarial, o que vai afetar a previdência e a Seguridade Social como um todo. O ‘cobertor está curto’ na seguridade, enquanto existem muitos que não contribuem, como setores da indústria que se beneficiam com isenções”.

Avanços

“Não há condições de se ter um sistema universal de saúde eficiente se não houver outras políticas funcionando. Sem uma política assistencial forte, as pessoas miseráveis vão ter doenças e vão parar no SUS, que só pode dar certo se a seguridade social der certo”, avalia Sônia Fleury, que considera a recente lei que consolidou o Sistema Único de Assistência Social (Suas) um passo no sentido de integrar saúde e assistência social. Ruth Bittencourt concorda. “Isso tira a assistência social da benevolência e da esfera de vontade do governo, e a torna uma política pública, com continuidade, garantias orçamentárias. Aprovar o Suas significa ter uma estrutura de centros de referência, de atenção básica e especializada, que trata a assistência social como direito”, explica.

Seguridade ampliada

Mas há ainda outros desafios. Para Sonia Fleury, nem bem foi implementado, o conceito de seguridade previsto na Constituição já está defasado. “Deveríamos pensar uma institucionalidade para além da seguridade social: uma articulação entre todas as políticas da ordem social, que abarca meio ambiente, educação, cultura, etc. Essas áreas deveriam ter uma forma institucional de se articular e fazer políticas em conjunto”, defende. Ela lembra que a Lei Orgânica da Saúde sinaliza esse direcionamento, ao afirmar que “a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais”.

Ampliar o conceito de seguridade social, para Ruth Bittencourt, é importante para a definição das demandas dos órgãos que lidam com políticas sociais. “Temos que juntar todas as políticas que dão conta da qualidade de vida, articulando os conselhos dessas áreas, criando fóruns de políticas nos estados e conselhos intersetoriais. Nós queremos resgatar o Conselho Nacional de Seguridade Social, para que possamos discutir as políticas sociais de maneira integrada”, diz.

Leia mais sobre a 14ª Conferência Nacional de Saúde aqui.