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A queda de braço por trás da PNAB

Política representa novo capítulo em embate entre gestores e agentes comunitários de saúde.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 22/09/2017 11h09 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

"Tomamos o caminho errado, vamos voltar e pegar a avenida principal porque, na realidade, esse atalho aqui não vai dar em lugar nenhum”. Há pouco mais de um ano, você leu essa frase na Poli. Brasília, 30 de junho de 2016: depois de ver revogado o atalho –sua decisão de mudar a composição das equipes da Estratégia Saúde da Família –, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) entrou na avenida principal: a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). O “caminho errado” ao qual Pollara se referiu foi pavimentado pouco antes, em 11 de maio, quando o ministro substituto José Agenor Álvares assinou duas portarias – 958 e 959 – que extinguiam a obrigação de essas equipes contarem com o agente comunitário de saúde.

“Para nós, agentes comunitários, essa PNAB nada mais é do que a 958 e a 959 embutidas. Quando milhares de agentes acamparam na porta do Ministério da Saúde e conseguimos, por pressão, a revogação das portarias, sabíamos que não ficaria barato para nós. A nova PNAB é o desejo de reduzir ou acabar com a nossa categoria”, disse Ronaldo Moreira, presidente do Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde do município do Rio de Janeiro (Sindacs), dirigindo-se aos representantes dos gestores responsáveis por ambas as decisões e a uma plateia lotada de trabalhadores que participavam da reunião do Conselho Nacional de Saúde realizada 9 de agosto na Fiocruz para debater a nova PNAB, que acabou sendo aprovada no dia 31.

O que muda

A partir de agora, o mínimo de agentes por equipe de Saúde da Família cai de quatro para um. Só isso daria margem para que 195 mil profissionais fossem demitidos numa tacada só. Hoje, de acordo com o Ministério da Saúde, existem 260.755 agentes comunitários no país. Mas como a média por equipe é de seis agentes, poderia haver mais demissões. A preocupação, expressa por entidades, trabalhadores e pesquisadores ao longo do último mês, foi rechaçada pelo ministro da saúde, Ricardo Barros. “Pura mentira. Onde está escrito na nova Política Nacional de Atenção Básica que vai ter redução de ACS? Vai ter redução da turma que quer ser contra a mudança do que está ruim”, respondeu, durante evento que discutiu a integração entre o SUS e o setor privado no dia 17 de agosto. 

Depois de aprovada a nova PNAB, o Ministério foi mais claro ao noticiar, no site, a mudança: “A nova legislação mantém o mínimo de profissionais – médico, técnico de enfermagem, odontólogo –, garantindo a qualidade do atendimento, mas flexibiliza o número de agentes comunitários de saúde. O mínimo agora é um agente”. Depois da consulta pública, os gestores fizeram uma distinção entre regiões ‘normais’ – onde basta um ACS – e “regiões de vulnerabilidade social” – onde se mantém o número mínimo de quatro – sem, contudo, definir que regiões são essas. Além disso, o governo federal passa a financiar também equipes de atenção básica que têm apenas médico, enfermeiro e técnico ou auxiliar de enfermagem. 

A nova PNAB prevê também que os ACS agora podem fazer curativos, aferir pressão e glicemia, atividades que hoje são privativas do campo da enfermagem. Algumas dessas mudanças são apoiadas pelas entidades de classe dos agentes e já estão em debate no Congresso Nacional. Segundo o Ministério da Saúde, as novas atribuições visam “qualificar” e tornar “mais resolutivo” o atendimento da população nas visitas domiciliares. “Para mim, ACS tem que tirar glicemia, pressão, dar uma injeção, fazer um curativo, atender a orientação se tem foco na casa ou não; se é uma coisa insalubre. Uma parede embolorada na casa, ele tem que falar: ‘ó, você vai dormir nesse quarto e vai ficar doente’. Então ele tem que dar uma orientação e tem que resolver o problema”, defendeu Ricardo Barros, também no evento do dia 17. 

Após a aprovação da PNAB, o Ministério divulgou que 40% dos 329 mil agentes comunitários de saúde e de combate às endemias possuem qualificação como técnicos de enfermagem e “estão aptos a realizar as novas funções”. Com isso, se compromete a “capacitar” cerca de 200 mil profissionais nos próximos cinco anos. Embora exista formação técnica específica tanto para o agente comunitário de saúde quanto para o agente de combate às endemias, os cursos de ACS e de vigilância em saúde não são mencionados. Os referenciais curriculares nacionais desses cursos foram publicados, respectivamente, em 2004 e 2011. “A iniciativa partiu do próprio Ministério e contou com a colaboração da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que segue defendendo a sua implementação como meio de qualificar e profissionalizar os agentes”, lembra Márcia Valéria Morosini, professora-pesquisadora da EPSJV.

Apesar disso, lembra ela, a pasta nunca incluiu em seus programas de qualificação o financiamento das 1,2 mil horas da formação técnica do agente comunitário. O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) sempre se opôs, sob o argumento de que, com o curso técnico, os trabalhadores iriam custar mais para as prefeituras. “Desse modo, foram oferecidas somente as 400 horas da primeira etapa da formação técnica, o que sequer atingiu todos os ACS”, diz Márcia.

Desde que as críticas à nova PNAB chamaram atenção da mídia, os gestores elegeram alguns pontos-chave para dialogar com a sociedade. Em relação aos agentes comunitários e de combate às endemias, esse ponto foi o compartilhamento de ações entre esses profissionais. Quem acompanha as discussões desde o ano passado, contudo, sabe que um documento produzido em um fórum organizado pelo Departamento de Atenção Básica do MS em outubro do ano passado chegou a propor que os ACS e ACE fossem unificados em uma profissão só. Recentemente, a hipótese foi afastada pelos gestores, mas retornou no texto da nova PNAB por meio das atribuições comuns a ambos os agentes. O Ministério nega: “Hoje é muito comum um ACS visitar um domicílio e no dia seguinte ou no mesmo dia o ACE visitar o mesmo domicílio, sendo que um olha um conjunto de coisas e o outro olha outro conjunto de coisas. Não conversam, não se integram e a ideia é unir o território. Não é substituir, não é diminuir o número de agentes de combate às endemias e agentes comunitários mas somar a atuação desses atores para que a gente possa ampliar a oferta e o acesso aos serviços”, disse Allan Sousa, ex-diretor do DAB, durante coletiva de imprensa no Ministério da Saúde no dia 10 de agosto.

Outra novidade anunciada é a ampliação do papel desses trabalhadores na coleta de dados. Tendo a informatização como bandeira de gestão, Ricardo Barros tem afirmado que vai distribuir tablets ou smartphones para todos os agentes. “Nós vamos treinar o agente comunitário de endemias [sic.] para também fazer o trabalho do agente comunitário de saúde. E vice-versa. Vamos dar tablet para todos; smartphone para todos. Na informatização, todos eles vão lançar os dados que vão coletar lá na família online. Quando chegar na UBS [Unidade Básica de Saúde] descarrega as informações. Não vai ter ficha; perder ficha; errar digitação”, disse o ministro. Especialistas alertam que isso pode representar mais burocratização do trabalho sob roupagem tecnológica.

“As atribuições históricas dos ACS estão sendo esvaziadas e as que restam são justamente aquelas das quais os agentes têm reclamado constantemente: a burocratização do seu trabalho, a crescente predominância de atividades administrativas, de produção de dados e esvaziamento das atividades de promoção à saúde, a visita domiciliar com uma perspectiva educativa”, pontua Márcia Valéria. E completa: “Temos acompanhado uma série de ataques aos agentes. Reviravoltas como a edição das portarias e a proposta de unificação das profissões levaram a categoria a mobilizar novamente seu poder de influência no Congresso Nacional. Não é à toa que eles recorrem ao legislativo. No Congresso, eles não perdem. Mas na correlação de forças na CIT e no Ministério, sim”.

Ação e reação

Reação contra os sinais emitidos pelos gestores desde o ano passado, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 56/2017 que, dentre outras coisas, muda as atribuições dos agentes comunitários de saúde. A portaria 958 autorizava os gestores a substituir quatro agentes comunitários de saúde por um técnico ou auxiliar de enfermagem, sob a justificativa de que algumas cidades do país precisavam dar ênfase ao cuidado biomédico. “Tem regiões que precisam de assistência de saúde e o agente nem com treinamento vai poder fazer: aferição de pressão, acompanhamento de glicemia capilar, um curativo, um atendimento num leito de um paciente, uma assistência ao idoso, ao hipertenso. Isso não vai poder fazer. A não ser que eles façam um curso técnico de enfermagem ou outro na área da saúde”, afirmou Mauro Junqueira, presidente do Conasems, na reunião da Comissão Intergestores Tripartite do dia 31 de março de 2016, logo após a revogação das portarias.

O PLC 56 é fruto de uma articulação da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) com parlamentares. “Vimos que era a hora de a gente propor a revisão das atribuições para que não fôssemos substituídos por outro profissional”, explicou a presidente da entidade, Ilda Angélica Correia, durante audiência pública que marcou o início da rápida tramitação da matéria, em março.  Dentre as mudanças propostas pela Conacs estão a autorização para que o agente afira a temperatura e oriente usuários sobre a forma correta de tomar medicamentos. Contudo, observa Márcia Valéria, o projeto não prevê realização de curativos como propõe a nova PNAB.

Com a aprovação da Política e a divulgação de estatísticas de agentes com formação técnica em enfermagem, o cenário é de incertezas. “A Conacs tentou se antecipar às ameaças do Ministério da Saúde e do Conasems criando um projeto de lei que ‘blindasse’ a categoria de possíveis mudanças na PNAB. Tentaram fazer as mudanças com alguma governabilidade antes que viessem de cima para baixo. O problema é que a nova PNAB possibilita aos gestores municipais desempregarem os ACS. E o PLC, por enquanto, não dá conta de barrar esse processo”, analisa Márcia Valéria. A pesquisadora também acredita que há sinais do retorno da priorização da ênfase biomédica e defende que caso as novas atribuições sejam aprovadas pelos senadores, a formação técnica do agente comunitário prevaleça e não se perca a atuação histórica desse profissional. “O currículo do curso pode ser modificado para incluir o novo âmbito de atuação, mas de forma articulada. É necessário preservar a perspectiva de educação e promoção da saúde como eixos centrais do trabalho do ACS, não transformá-lo em outro trabalhador, com outra perspectiva de trabalho”, explica.

Se o PLC 56 foi uma reação à gestão, muita gente acredita que as últimas investidas dos gestores para reduzir a importância dos agentes são respostas às muitas conquistas da categoria, sempre partindo da sua influência no Congresso Nacional. Em 2006, a lei 11.350 passou a exigir que as prefeituras contratem esses profissionais por vínculo direto. No mesmo ano, conseguiram os votos necessários para que uma emenda à Constituição assegurasse que o ingresso na carreira por meio do processo seletivo e não do concurso público, já que precisam morar na região em que trabalham. Em 2014, os agentes aprovaram um piso nacional. Por essas e por outras, os agentes são acusados pelos gestores de uma atuação corporativa que vai contra a realidade econômica do país. “Essa categoria está querendo situações que estão acabando, matando a própria categoria. E eles não estão percebendo isso.(...) [pleiteiam] uma série de outros benefícios que ninguém consegue, mas que essa categoria está conseguindo com o apoio de uns deputados que fazem muito barulho e que infelizmente estão aprovando leis para o gestor municipal cumprir”, disse o presidente do Conasems em junho do ano passado.

“O agente comunitário vem remando contra a maré da precarização da força de trabalho no país, à revelia da onda de flexibilização das contratações que acontece no SUS desde os anos 2000. E o Conasems tem feito um enfrentamento constante na tentativa de desregulamentar ou de criar formas de diminuir a presença do agente comunitário na Saúde da Família”, caracteriza Liu Leal, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Junto com o vínculo direto, o piso é uma queda de braço sem fim entre agentes – que seguem conseguindo aprovar leis – e gestores, que não as cumprem.

Nesse sentido, a outra iniciativa da categoria que tramita no Congresso é a PEC 22/2011, que estabelece novas regras para a remuneração desses trabalhadores e fixa um piso salarial de R$ 1,6 mil para jornada de 40 horas. O piso nacional de R$ 1.014 está congelado há mais de três anos. No auge das polêmicas sobre a nova PNAB, a proposta foi aprovada por unanimidade em uma comissão especial na Câmara no dia 16 de agosto. Agora, a categoria tenta garantir regime de urgência para a votação em plenário. “A decisão de aprovar a PNAB agora é porque a conta não fecha. E não fecha porque se os gestores não podem evitar que os agentes consigam a aprovação do piso no Congresso Nacional, eles desempregam”, acredita Liu. Segundo ela, os agentes poderiam garantir sua presença na equipe da Saúde da Família mesmo depois da nova PNAB caso incluíssem dispositivos nas matérias que estão sendo apreciadas pelo Congresso. Mas com as mudanças, os textos teriam que voltar para a estaca zero na tramitação.

Por enquanto, a iniciativa mais contundente contra a PNAB partiu da Federação Nacional de Agentes de Saúde e de Combate as Endemias (Fenasce), que também representa a categoria. No dia 11 de agosto, a entidade entrou com uma ação civil pública na Justiça Federal pedindo a suspensão da revisão da Política até que se garantisse ampla participação social nesse debate. Já a Conacs quer traçar estratégias que minimizem os efeitos da nova PNAB.

“O Saúde da Família deu certo porque começou inverso. Ele não começou da cidade para o interior, veio do interior para a cidade. A mortalidade infantil teve uma redução muito grande porque era o povo que estava ali cuidando. O povo tinha a responsabilidade de visitar os seus vizinhos para que as coisas dessem certo. E chegou ao tamanho que chegou. E se paga com ingratidão esse trabalho que deu e dá certo não só no interior, não só no Nordeste, mas em todos os locais onde foi implantado com seriedade”, disse Ronaldo Moreira para os gestores no dia 9 de agosto, durante uma grande mobilização contra a Política ocorrida na Fiocruz, completando: “O que eu vejo é um desmonte não só do Saúde da Família, mas o começo da derrocada do SUS”.

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