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Comemorar ou não? Eis a questão

Mudanças feitas pelo Senado no projeto de lei que cria novas atribuições para agentes comunitários de saúde dividem a categoria
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 22/09/2017 09h13 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Entidades que representam a categoria se dividem sobre projeto que trata das atribuições dos ACS Foto: Moreira Mariz/Agência Senado

'Nada é tão ruim que não possa piorar'. O dito popular, atual sob muitos aspectos, parece caracterizar as recentes turbulências que atingem os agentes comunitários de saúde e os agentes de combate às endemias. Pouco depois da pactuação da nova Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), que prevê a flexibilização da presença do agente comunitário nas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), mais mudanças vieram, desta vez do Senado Federal. No dia 13 de setembro, um projeto que regulamenta a atuação desses trabalhadores foi aprovado por unanimidade pelo plenário da Casa. Boa notícia? Há divergências. Como a sigla sugere, o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 56/2017 estava sendo examinado pelos senadores depois de ser aprovado pelos deputados federais. O texto, que originalmente tramitou como PL 6437, sofreu alterações da senadora Marta Suplicy (PMDB/SP) e, na avaliação de parte da categoria, se tornou mais uma ameaça.

"Nós entendíamos que o projeto de lei original era importante pois criava uma rede de proteção para a categoria. Mas ele foi completamente desfigurado. Não entendo por que estão comemorando", afirma Fernando Cândido, presidente da Federação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias (Fenasce). "Está tão nebuloso que não estamos nem entendendo", confessa Wagner Souza, vice-presidente do Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde do município do Rio de Janeiro (Sindacs). Ambos se referem ao posicionamento da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs), que divulgou nas redes sociais vídeos e textos que levantaram dúvidas. Em uma postagem de 20 de setembro, a Conacs afirmou que "o plenário do Senado Federal mais uma vez foi palco de uma grande vitória para a categoria".

“Foi uma grande vitória. Críticas a gente sempre vai sofrer. Quando a gente não participa efetivamente, não acompanha pari passu, não está inserido dentro da discussão, está vendo de fora as redes sociais, é uma coisa. Agora, quem participa do dia a dia, quem está construindo é que sabe o sabor de uma vitória de você tramitar um projeto de lei em tempo recorde e ter a aprovação de 100% dos pares presentes. Nós estamos comemorando exatamente isso: a força política que os agentes de saúde têm no Congresso Nacional a ponto de, num momento político conturbado de desconstrução e de votação de medidas que trazem atraso para o trabalhador, o agente de saúde avançar, tramitar e votar tendo todos os senadores presentes”, responde Ilda Angélica Correia, presidente da Conacs. E acrescenta: “Sem falar nos pontos positivos – porque nós temos pontos positivos no PL aprovado no Senado. Nós não temos um texto que está simplesmente tirando direitos”.

 

Antes e depois

Roque de Sá/Agência SenadoO PL 6437 partiu de uma iniciativa da própria Conacs e tinha o objetivo de fazer um contraponto a possíveis prejuízos resultantes da reformulação da PNAB anunciada pelo governo em junho do ano passado (entenda mais aqui). O projeto define atribuições, nível de qualificação e condições de trabalho dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias. A proposta foi apresentada pelo deputado federal Raimundo Gomes (PSDB/CE) em março deste ano. O substitutivo do deputado Valtenir Pereira (PMDB-MT) foi aprovado por unanimidade no dia 16 de agosto pela comissão especial da Câmara criada para apreciar a matéria. Dali, o texto seguiu para a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, onde foi encaminhado para a relatoria de Marta Suplicy (PMDB-SP). No dia 6 de setembro, a senadora – que também é presidente da CAS – deu seu parecer e sugeriu mudanças no texto.

A alteração que tem gerado mais preocupação é aquela que, na visão dos agentes, seria o antídoto contra a PNAB. Isso porque a senadora suprimiu o dispositivo que caracterizava como atribuição “privativa” dos agentes comunitários a realização de visitas domiciliares rotineiras, casa a casa, na busca ativa de pessoas com sintomas de doenças para encaminhar para tratamento na unidade de saúde e no acompanhamento de usuários em situações peculiares como, por exemplo, idosos acamados. "Era uma forma de garantir que não houvesse a fusão dos agentes comunitários com os agentes de combate às endemias que era, até então, a intenção do ministro [Ricardo Barros] e também proibia que outras categorias, como os auxiliares e técnicos de enfermagem, fizessem nossas atribuições”, explica Fernando Cândido, que identifica em outras mudanças um sentido comum: “O PL deixa de lado o termo obrigatório para colocar a presença dos agentes comunitários como 'essencial'. A partir daí já começa uma mudança drástica, grave e que coloca em risco toda uma política de saúde preventiva. Marta Suplicy deixou o texto completamente alinhado à PNAB”.

Também para Wagner Souza, o PLC 56 ficou "muito parecido com a PNAB". "A versão da Marta está de acordo com o que o Ricardo Barros quer", diz. E argumenta: "Não dá nenhuma segurança jurídica para o agente comunitário, não delimita o número de agentes dentro das equipes. Está igual à PNAB". O sindicato, ligado à Conacs, não vê razões para comemorar. "O Rio está questionando. A gente tem uma análise do que foi feito para quem já tem a efetivação [contratação direta pela administração pública]. Para o restante do Brasil que não é efetivo, foi um tiro no pé", avalia.

A presidente da Conacs contrapõe: “Algumas alterações que foram feitas no Senado deram uma melhorada na redação da proposta. E outras não. Realmente ficaram bem mais complicadas para a categoria. Mas teremos oportunidade de mexer no projeto na Câmara e temos a intenção de apresentar as adequações que julgamos necessárias. Contanto que a gente não perca o que conquistou, que é a garantia de que o presidente da República não trará nenhum veto para esse PL”, diz. Segundo Ilda Angélica, tanto Marta Suplicy, que tratou de fazer a articulação com o governo, quanto o Ministério da Saúde garantem que a atual redação do PLC 56 não receberá vetos de Michel Temer quando for à sanção presidencial. Dentre os pontos inegociáveis para o governo, segundo ela, estão a retirada da busca ativa domiciliar como atribuição “privativa” e a supressão da parte da redação que buscava assegurar a presença do agente comunitários em toda a atenção básica – e não só na Estratégia Saúde da Família, já que a nova PNAB abre a possibilidade de financiamento de todas as equipes deste nível de atenção, o que muitos analistas consideram que impulsionará a substituição da ESF (onde o número de agentes foi reduzido, mas continua obrigatório) pela atenção básica tradicional em parte dos municípios.

A senadora divulgou em suas redes sociais que “após ampla discussão” acatou “sugestões do Ministério da Saúde” e de “quem tem a mão na massa”. Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não se posicionou sobre a nova redação do PLC 56. "Conversamos com a senadora sobre a necessidade de o projeto ser aprovado na íntegra por medo das alterações, que poderiam prejudicar a categoria, como também pelo fato de, havendo alterações, ter que voltar para a Câmara. Mobilizamos as entidades que representam os agentes comunitários em São Paulo [base da parlamentar], que fizeram vídeos e áudios tentando sensibilizar a senadora, mas ela infelizmente não atendeu ao apelo dos trabalhadores e resolveu contemplar os interesses do Ministério da Saúde. Todas as características de um projeto de lei que tinha a pretensão de criar uma rede de proteção para os agentes foram quebradas", relata Fernando Cândido.

“A negociação não foi feita com a categoria. Essa posição foi dada pela senadora após conversa com Ministério, Conass e Conasems. O PL não foi bem visto pelo Ministério da Saúde, a priori. Até mesmo CNM [Confederação Nacional dos Municípios] foi ouvida para que ela modificasse radicalmente o texto”, conta Ilda, que continua: “Tivemos oportunidade de sentar com ela um dia antes da aprovação na CAS e mudamos muita coisa porque estava muito mais grave. Estava colocada a integração dos agentes comunitários com os agentes de combate às endemias. Conseguimos tirar”.

A presidente da Conacs, no entanto, acredita que o tensionamento poderia ter gerado consequências piores. “A gente precisava que ela votasse isso lá. Se a gente interferisse mais no que iria acontecer, ela ia simplesmente engavetar o projeto ou faria um substitutivo colocando cruamente o que o governo quer – e tem demonstrado isso na reformulação da PNAB – para o agente comunitário de saúde. E se ela faz isso, vai para sanção e o presidente sanciona. Então, é melhor mexer lá e trazer para a Câmara onde a gente tem mando de campo, digamos assim, a possibilidade de ajustar dentro da medida do possível e ainda tentar evitar os vetos presidenciais e garantir a nossa sobrevivência enquanto agente comunitário de saúde através da força de uma lei”, defende.

Para Fernando, da Fenasce, o novo debate entre deputados e trabalhadores não pode prescindir do que considera a condição para a continuidade da existência da categoria: "O que não dá é para ser aprovado dessa forma. Do jeito que está, o projeto nos coloca em completa vulnerabilidade. A extinção da nossa categoria dada a partir da nova PNAB é ratificada pelo PLC 56", diz, completando: "Tem que acrescentar um dispositivo que assegure a quantidade mínima de agentes comunitários por equipe de Saúde da Família e tornar a presença do agente obrigatória em todas as equipes de atenção básica".

Até o fechamento desta matéria, o PLC 56 ainda não tinha retornado para a Câmara dos Deputados. A previsão de Ilda Angélica é que o texto chegue à Casa na próxima segunda-feira (25).

Outras preocupações

O PLC 56 traz ainda outras mudanças que levantam preocupações entre trabalhadores e especialistas no assunto. Uma delas diz respeito à inclusão de mais atribuições vinculadas a procedimentos biomédicos. Agora, além de aferição de pressão arterial, medição de glicemia capilar e orientação no domicílio do usuário para correta administração de medicação, o PLC 56 incorporou atribuições previstas na nova PNAB, como aferição de temperatura axilar e realização de curativos. “Mas não é só isso. Essas atribuições seriam realizadas no domicílio em situações excepcionais, não seriam incorporadas no processo de trabalho em todos os cenários em que o agente comunitário atua. Isso faz muita diferença porque a preocupação agora é que essas atividades se tornem as prioritárias no trabalho do agente comunitário. O risco é fazer isso em todos os domicílios e, inclusive, na unidade de saúde”, pontua Mariana Nogueira, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), que integra a coordenação do curso técnico de ACS.

“Verificar pressão, fazer curativos etc. – até onde isso invade ou não atribuições de outros profissionais da saúde? Não está claro. O PLC e a PNAB, a meu ver, dão ao gestor a possibilidade de usar os agentes comunitários e os agentes de combate às endemias como quer e quando quer”, expõe Volmar de Souza Netto, presidente da Associação de Florianópolis dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias (Afase).

Em nota enviada à reportagem, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) afirmou que acompanha "com muita preocupação" o PLC 56. Segundo o órgão, o projeto "pode pôr em risco a população assistida ao atribuir a agentes de saúde atividades como verificação dos sinais vitais, teste de glicemia, curativos” com “capacitação de apenas 40 horas”. A assessoria do conselho confirmou que o órgão pretende atuar na Câmara dos Deputados para alterar aspectos do PLC 56 que “colidem” com a legislação profissional de enfermagem. “Caso o projeto venha a ser aprovado nos termos atuais, buscaremos o veto do poder executivo", afirmou por e-mail o presidente do Cofen, Manoel Neri.

Também foi retirada da redação do projeto de lei a perspectiva de que estados e municípios fossem responsáveis por ofertar cursos técnicos com carga horária mínima de 1,2 mil horas para agentes comunitários e agentes de combate às endemias. Agora, as prefeituras precisam oferecer apenas uma capacitação de 40 horas aos trabalhadores. “Foi uma perda muito importante. Mesmo que não estivessem assegurados prazo e financiamento para a oferta do curso técnico, no PL 6437 ele era citado”, lamenta Mariana Nogueira, que considera que na justificativa que Marta Suplicy deu para fazer a alteração, a senadora abre um flanco para o setor privado. “Ela diz que o curso pode ser oferecido por outras instituições que não o poder público; ou seja, está dizendo que a iniciativa privada pode assumir esses cursos. A gente entende que o curso é direito do trabalhador, cujo âmbito de atuação é a política pública. Logo, seria obrigação dos entes financiarem e ofertarem o curso. Vai acontecer uma transferência da responsabilidade da formação profissional técnica para os agentes comunitários e agentes de combate às endemias”, critica, questionando: “Nesse cenário, como a gente vai garantir, por exemplo, que seja um curso técnico em agente comunitário de saúde e não em enfermagem?”.

O projeto de lei define em 40 horas a jornada de trabalho da categoria, dividida em 30 horas semanais para as atividades externas de visita domiciliar e outras ações de campo e mais dez horas para atividades de planejamento e avaliação das ações. Para Mariana, foi “importante” para os agentes delimitar um tempo no território. “Essa é uma fala recorrente em todos os lugares do país. A última pesquisa do Observatório dos Técnicos em Saúde mostrou que o tempo do trabalho no território está sendo diminuído por conta da burocratização e que o próprio sentido do trabalho no território está sendo reorientado a partir das demandas advindas da unidade de saúde, principalmente demandas voltadas para responder às metas e sistemas de avaliação”, diz. 
Porém, com o anúncio de que o Ministério da Saúde vai distribuir tablets e smartphones para todos os agentes comunitários e agentes de combate às endemias para que eles alimentem sistemas de informação, a garantia das 30 horas no território pode não ser suficiente para retomar o sentido original do trabalho dos agentes. “Tanto o PLC quanto a PNAB têm uma perspectiva de trabalho individual e voltado para procedimentos biomédicos. Mesmo que o PLC cite mobilização popular, a perspectiva está vinculada à prevenção de agravos e doenças. Mesmo que utilizem a terminologia da educação popular – engajada, militante, política –, as atribuições não têm a ver com auto-organização comunitária e reivindicação por direitos. Isso já é uma tendência. Enquanto a perspectiva de mobilização para mutirão voltada ao combate de vetores de doenças como dengue vai sendo fortalecida, a mobilização popular não voltada somente para doença, mas para a participação social e o trabalho de escuta das famílias, de pautar o serviço de saúde a partir dessas demandas da comunidade vai sendo enfraquecida. Uma questão é você assegurar o tempo do trabalho no território; outra é assegura o sentido desse trabalho”, alerta Mariana Nogueira.

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