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A Reforma Tributária vem aí

Primeira etapa simplificará estrutura, mas impactos sobre Saúde e Educação ainda estão em aberto
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 08/01/2024 10h39 - Atualizado em 12/04/2024 14h29

O arroz e o feijão seriam quase 20% mais baratos se não fossem os impostos, carne vermelha e peixes, 30%. A informação é do site ‘Impostômetro’, mas não é difícil encontrar tabelas e campanhas que critiquem a alta carga tributária brasileira. Por outro lado, como manter políticas de Saúde, Educação, vias públicas, serviços de energia e aposentadorias sem a arrecadação do governo? Essas questões não são contraditórias, de acordo com os especialistas ouvidos por esta reportagem, e o motivo, como diz a letra da banda As meninas “todo mundo já conhece: o de cima sobe e o de baixo desce”.

Como assim? A explicação está na forma de arrecadação que existe no Brasil, feita principalmente a partir do consumo em que todos pagam a mesma proporção de tributos, sem distinção de renda. Esse modelo é chamado de regressivo, ou seja, quanto menor a renda, maior é a cobrança. “Na compra do arroz e do feijão, o rico e o pobre pagam o mesmo tributo. É claro que o rico consome mais e, portanto, em valores absolutos, ele paga mais tributos, mas em percentual da renda esse valor é menor. É isso que a gente chama de uma carga tributária regressiva”, explica a professora do Kings College, na Inglaterra, Natássia Nascimento, especialista em tributação e desigualdade. A cobrança a partir do consumo também é chamada de indireta. Do lado oposto estão os tributos diretos, relacionados em especial à renda, e a possibilidade de uma cobrança de forma progressiva, em que quem ganha mais paga uma proporção maior.

O que se chama de carga tributária é calculada a partir da soma de tudo que o governo arrecada com tributos em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) a cada ano. No Brasil, esse valor está em torno de 33%, sendo 15% relativos ao consumo, 8% sobre renda e lucros e 8% em contribuições sociais, de acordo com dados de 2021 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Um percentual abaixo de países desenvolvidos como a França (45%) e Itália (42%), que também apresentam uma taxa de consumo menor em relação aos outros itens. No entanto, a carga tributária brasileira é maior do que a de países com economias similares na América Latina, como o México (17%), com baixa contribuição social e impostos equivalentes sobre renda e consumo. “Carga tributária elevada não é problema, principalmente quando lembramos que temos um país de mais de 200 milhões de pessoas, um sistema educacional público, um sistema de saúde, assistência social. Tudo isso tem que ser financiado de uma forma justa”, diz Nascimento.

A necessidade de mudar a cobrança de tributos no Brasil é uma discussão antiga e avançou em 2023, com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019 pelo Congresso no final de dezembro.  Considerado pelo governo como uma primeira etapa de mudanças, o texto trata principalmente de unificar tributos e alíquotas cobradas justamente na área de consumo. Para os especialistas ouvidos pela Poli, a reforma é necessária, mas o texto aprovado pelos parlamentares não toca em pontos essenciais. “A estrutura tributária é da década de 1960 e é mesmo muito complexa, mas a proposta não vai enfrentar o principal problema, que é uma estrutura tributária muito injusta”, diz o professor da Universidade de São Paulo (USP), José Marcelino Rezende Pinto, especialista em financiamento da Educação.

Francisco Funcia, vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), segue a mesma linha. “A simplificação é um dos princípios da tributação que incide sobre produção e consumo. De um lado, facilita a vida da gestão de negócios, o que tem um efeito positivo para a atividade econômica, e torna mais transparente o processo de tributação. Porém, a proposta atual é parcial. É preciso colocar na agenda a necessidade de trazer a justiça tributária”, defende.

O que a reforma propõe?

A aprovação da reforma em dezembro de 2023 levou o país a adotar o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que será subdividido em dois tributos principais: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Há ainda um terceiro, também de âmbito federal: o Imposto Seletivo, apelidado de Imposto do Pecado, que incidirá sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. A relação ainda não está definida, mas entre os produtos que devem entrar no pacote estão cigarros e alimentos com excesso de açúcar. O primeiro ano do novo modelo em vigor será 2026, ainda em fase de teste.

A CBS corresponde à unificação das contribuições federais PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), o que gera preocupações sobre o orçamento da Seguridade Social – que envolve Saúde, Previdência e Assistência Social –, já que significa o fim de recursos nominalmente assegurados para a área. “O orçamento da seguridade social, tal qual concebido pela Constituição Federal, ficou fortemente atingido. Da maneira como está sendo apresentado, não haverá mais tributos diretamente vinculados e é quase como se o orçamento da Seguridade ficasse dependente do chamado orçamento fiscal, decidido ano a ano pelo Congresso”, avalia Francisco Funcia. Por outro lado, ele não vê alterações na capacidade de arrecadação para o SUS, Sistema Único de Saúde, uma vez que a Constituição estabelece que o piso da saúde corresponde a 15% da receita corrente líquida, ou seja, de tudo que é arrecadado pelo governo.

A preocupação que havia na Educação em relação à reforma tributária era a inclusão do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na CBS. No entanto, o Imposto foi retirado do pacote na votação final realizada na Câmara dos Deputados. Caso fosse mantida, a inclusão do IPI como ‘contribuição’ e não mais como ‘imposto’ retiraria recursos federais da Educação, uma vez que a Constituição prevê que o mínimo constitucional de 18% seja proveniente apenas de “impostos”. Outra boa notícia para complementar o orçamento da União para a Pasta da Educação é a criação do Imposto Seletivo, que passará a compor a arrecadação dos mínimos constitucionais. Há ainda uma preocupação com a manutenção do salário-educação, contribuição de responsabilidade das empresas, cobrada sobre o valor da folha de pagamento, que é destinada diretamente a programas e projetos da Educação Básica. O texto da Reforma dá o prazo de 90 dias após a aprovação para o Executivo encaminhar o novo modelo da tributação em folha. Logo, no momento em que esta edição da Poli foi concluída, esse ponto ainda estava em aberto. “Por enquanto, não há previsão de alteração no salário-educação, mas é um risco. Só sabemos que haverá uma contribuição sobre bens e serviços, mas nada está regulamentado, tudo vai depender dos projetos de lei que forem encaminhados na sequência”, avalia Marcelino.

Uma das principais mudanças trazidas pela reforma é a união do ICMS, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, e o ISS, Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza. O primeiro é de competência estadual e o segundo municipal. Além da unificação, também está prevista a mudança do local de cobrança: em vez do estado onde o bem é produzido, será feita naquele em que é consumido. O objetivo dessas medidas é colocar fim à ‘guerra fiscal’, em que os estados e municípios tentavam reduzir os impostos para atrair um maior número de fábricas e empresas. “O peso de pagar o tributo não é da população onde está a fábrica, é onde está o consumidor final. E acho isso justo”, pontua Marcelino. Para compensar as perdas de arrecadação dos estados, como será o caso de São Paulo, que concentra um grande número de indústrias, a proposta prevê a criação de um fundo com recursos federais. O fundo funcionará até 2032 e, no ano seguinte, o ICMS será definitivamente extinto. O texto também prevê a criação de um outro fundo com o intuito de reduzir as desigualdades de arrecadação entre os estados.

Os novos tributos ainda dependem de leis complementares para serem regulamentados, mas essas legislações precisam prever algumas isenções. Entre os setores que podem conseguir isenção total estão os itens da cesta básica, já outros podem alcançar até 60%, como bens para saúde, educação, medicamentos, transporte coletivo de passageiros. No entanto, a Proposta prevê que esses benefícios tenham contrapartida com taxação maior sobre outros produtos.

Outra possibilidade colocada pela PEC é a opção de cashback para beneficiários de programas sociais. Nesse caso, ao realizarem compras de itens que compõem a cesta básica e medicamentos, um percentual dos novos tributos será depositado no cartão do beneficiário. Mais uma vez, a forma e as regras para essa devolução ainda precisam ser regulamentadas por lei. “A maior parte do consumo da população é justamente os itens da cesta básica e medicamentos. Quando a gente tem uma isenção, você está fomentando que as pessoas consumam mais e melhor”, diz Nascimento. No entanto, ela pondera que não se trata de uma política de redução de desigualdades. “A opção de cashback está ali para eliminar a regressividade. Então, na verdade, elas são neutras”, diz e lembra que as isenções podem levar a uma redução de arrecadação por meio do consumo, com necessidade de contrapartida. “E o melhor lugar para compensar isso é justamente na renda dos mais ricos”, propõe a economista.

Em relação às projeções sobre o aumento ou diminuição da receita para Saúde e Educação, Marcelino entende que ainda é cedo para saber. “Acho que temos que esperar um pouco ainda. Creio que os valores para a Educação tendem a ser preservados num primeiro momento. A questão será como os novos tributos responderão, via vinculação, às dinâmicas da economia”, explica.

O economista da Abres acrescenta a preocupação da pouca autonomia dada aos municípios para gerir seus recursos, uma vez que a reforma pode agravar uma tendência de centralização de recursos por parte da União. Nos cálculos feitos pela Abres, na atual divisão dos tributos da União fica com 57% de tudo que se arrecadou, estados com 25% e municípios com 18%. “A centralização da competência de tributar na União, e contraditoriamente, há crescentes obrigações por parte dos municípios nas áreas sociais, que têm levado a um crescimento de romarias de prefeitos a Brasília”, conta. Em sua avaliação, a criação do IBS torna os municípios mais dependentes dos repasses de instâncias superiores e a falta de competência para os municípios criarem seus tributos incentiva a busca individual por recursos, assim como aumenta a importância das emendas parlamentares. Para Funcia, a possibilidade de editar aumentos do IPTU, o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana é insuficiente. “Nós precisaríamos discutir uma reestruturação da competência de tributar no Brasil, de tal forma que aumentasse a participação dos tributos municipais. A discussão da reforma tributária não pode ficar restrita ao tema em si, ela tem que discutir como possibilitar uma maior distribuição de recursos entre as três esferas de governo, porque tributo é financiamento de despesas”, opina.

Justiça tributária

Uma das mudanças mais esperadas da reforma, que levaria ao aumento da arrecadação e o consequente aumento de recursos previstos pela Constituição para Saúde e Educação, ficou para uma suposta segunda etapa. “Eu achava que a parte da renda seria a primeira a ser alterada”, confessa Nascimento, sob o argumento de que esta seria a parte mais fácil. “O Imposto de Renda é progressivo e bem estabelecido. A gente só precisa estratificar mais as rendas ou aumentar a alíquota máxima”, analisa. Ela considera uma boa fatia a arrecadação do Imposto de Renda representar 22% do país, mas é preciso uma cobrança mais justa. “Quando a gente pensa que 5% da população brasileira ganha acima de R$ 5 mil, então ele está tributando os mais ricos. Mas não é bem isso, porque dentro desses 5%, há pessoas que ganham R$ 300 mil por mês e que pagam os mesmos 27,5%, o que torna o IR regressivo na última faixa de renda”, compara.

De acordo com os entrevistados desta reportagem, a proposta aparentemente mais promissora dessa primeira fase é a inclusão de uma taxação progressiva na transferência de título de propriedade, tanto no país quanto no exterior. Atualmente, a arrecadação sobre a propriedade responde por 5% da arrecadação. Apesar de a progressividade estar prevista, a alíquota máxima se manteve em 8% sobre a diferença entre o valor pago pelo imóvel e o valor vendido. “Se houvesse uma elevação do percentual atual, em 8%, nós teríamos um potencial grande de receita”, projeta Marcelino.

O texto também prevê o pagamento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), taxação de veículos aquáticos, como lanchas e iates, e aéreos, como jatinhos. No entanto, na avaliação de Nascimento e Marcelino, o impacto dessa inclusão é simbólico. “Havia uma defesa de que iates e helicópteros fossem taxados, mas a renda é tão concentrada que o efeito será a demonstração de justiça, mas não creio que a mexida do IPVA vá avançar na arrecadação”, diz Nascimento.

A professora acrescenta que outras formas de taxação das riquezas são necessárias para a diminuição da desigualdade, como um imposto sobre operações financeiras e propriedade, mas explica que isso representa uma parcela muito pequena da nossa carga tributária. Segundo ela, entre os impostos de propriedade já existentes e que poderiam resultar em mais receita está o ITR, Imposto Territorial Rural. “O principal problema desse imposto é que ele é autodeclarado”, e, de acordo com Nascimento, é difícil para o Estado fiscalizar o tamanho real da área – diminuída – e o que é área utilizada – inflada.

Nascimento defende também a taxação de lucros e dividendos, que hoje são isentos no Brasil. “Uma pessoa pode ganhar R$ 300 mil por mês e ter a maior parte [dessa renda] isenta porque a declaração é feita como lucros e dividendos”, exemplifica e contesta o argumento de que a taxação de lucros e dividendos poderia inibir investimentos e o crescimento da economia. “Essa ideia de que a gente não pode tributar os mais ricos porque são eles que investem nunca foi observada na realidade. A teoria existe, mas empiricamente isso nunca foi observado. Pelo contrário, a partir dos anos 1980 e, principalmente, de 2000 em diante, com uma desregulamentação do mercado financeiro, o que houve foi um acúmulo de renda na mão dos mais ricos em ativos financeiros que não geram consumo ou emprego, apenas renda de juros”, diz.

A combinação de incentivos fiscais à indústria com juros mais baixos para fomentar determinados setores, em especial os inovadores, aliada ao aumento dos tributos para os mais ricos, é vista como uma boa combinação para geração de empregos e diminuição da desigualdade. “Diminuir a taxa de juros é uma política monetária expansionista, com o objetivo de expandir o PIB, a produção interna. Já o aumento dos tributos é uma política fiscal contracionista, porque, em tese, retira renda da população. Mas se esse aumento está focado nos mais ricos, há a redução da desigualdade”, explica.

Em paralelo à aprovação da reforma, ainda no final de dezembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a tributação de 15% sobre fundos exclusivos, formados por fortunas acima de R$ 10 milhões e offshores, ou seja, aplicações financeiras no exterior. De acordo com reportagem do G1 de 14 de dezembro, os cálculos do governo mostram que existem 2,5 mil brasileiros com renda no exterior e a expectativa é arrecadar R$ 30 bilhões até 2025. Nascimento elogia a iniciativa, mas pondera que, assim como o IPVA para jatos e iates, essa medida é simbólica. “Isso não significa dizer que essa é uma arrecadação irrelevante, mas a taxação dos fundos não costuma ser alta porque não é possível acabar com o patrimônio. É preciso taxar rendimentos, lucros e dividendos”, avalia.

Mesmo sendo uma iniciativa bem-vinda, os analistas ouvidos pela reportagem aguardam mais recursos para as áreas sociais e esperam que a segunda etapa da reforma, que deve incidir sobre a renda, venha em seguida. Funcia lembra que os gastos com Saúde no Brasil respondem a 9,6% do PIB, sendo apenas um terço custeado com recursos públicos. Já Marcelino se refere à Educação pública, cujo investimento atualmente corresponde a 5% do PIB, e segue com a meta de alcançar os 10%, conforme prevê o Plano Nacional de Educação atual. 

Quais as formas de arrecadação de tributos?

Os governos têm cinco formas de arrecadação de tributos. A mais comum são os impostos, que não possuem um destino específico, embora também não estejam livres de qualquer vinculação. A Constituição prevê, por exemplo, que 18% da arrecadação de impostos da União seja destinada à Educação, enquanto para estados e municípios a determinação é de 25%. Já as taxas preveem a cobrança por uma prestação de serviço direta, como a emissão de documentos ou a coleta de lixo. E há ainda dos tipos de contribuições, que têm destino definido: as de “melhoria”, em desuso, que previa a cobrança específica para a realização de obras públicas, mas em desuso, e as “especiais”. No segundo caso estão o salário-educação e a Cofins, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social. Por último, há a previsão de empréstimos compulsórios, em que o governo pega emprestado do cidadão com garantia de devolução, mas isso só pode ocorrer em casos de calamidade pública. Entre 1986 e 1988, foi cobrado um percentual de cerca de 30% sobre a venda de gasolina e aquisição de carros novos.

 

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