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Alames divulga informe sobre a saúde no trabalho

Associação Lationoamericana de Medicina Social analisou a situação em seis países e uma cidade.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 17/12/2008 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


A Rede de Saúde e Trabalho da Associação Lationoamericana de Medicina Social (Alames) apresentou, no dia 12 de dezembro, o Informe Continental sobre a Situação do Direito à Saúde no Trabalho 2008. O documento, que reúne estudos sobre seis países e uma cidade - Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, México, Uruguai e Québec, no Canadá –, objetiva ser um instrumento para a discussão e as ações na área da defesa, proteção e exigência do direito à saúde no trabalho.

Segundo sua apresentação, uma das particularidades do informe é o tratamento dos dados estatísticos, que “buscou abordar o problema a partir de um ponto de vista crítico, recuperando os limitados dados oficiais, mas buscando ir além deles”.  O estudo também investiga os novos impactos que o capitalismo neoliberal tem na saúde do trabalhador.



O caso brasileiro



De danos causados por toques repetitivos no teclado do computador ao trabalho exaustivo na plantação de cana de açúcar: a situação da saúde do trabalhor no Brasil reflete suas múltiplas desigualdades. Na parte dedicada ao país, o documento aborda velhos problemas, como trabalho escravo e infantil, mas também se debruça sobre um novo perfil da força de trabalho, informalizada, terceirizada e precarizada que, segundo o estudo, é típica do movimento mundial de reestruturação produtiva neoliberal. 



Utilizando na maior parte dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que cobrem até o ano de 2005, o informe desmembrou algumas das principais diferenças da força de trabalho brasileira.



Setores e regiões



Entre os setores econômicos, os dados mostram uma maior concentração de trabalhadores ocupados (formal ou informalmente) na agricultura (21%); seguida pelo comércio (18%); a indústria (15%); a educação e serviço social (9%) e a construção civil (7%).



Segundo o estudo, a extração mineral e a indústria de transformação são os setores que apresentaram a maior incidência de acidentes. Ambos têm um longo histórico de riscos à saúde do trabalhador e ostentam os maiores índices de gravidade e mortalidade.



A formalização do trabalho é bastante diferenciada entre os setores econômicos. Na agricultura, o IBGE estima que 68% dos trabalhadores não possuam carteira de trabalho assinada. Nos demais setores, a formalização da situação ocupacional situa-se em 53%, variando por cada região: 38% na região Norte e 40% na região Nordeste, 61% no Sudeste, 63% no Sul e 48 % no Centro Oeste. “As diferenças regionais são marcantes: Norte, Nordeste e Sul concentram grande proporção de seus trabalhadores na agricultura”, revela a Alames. Por outro lado, a indústria se expressa mais fortemente nas regiões Sul e Sudeste.



A tendência desigual continua quando o assunto é previdência social: no Nordeste apenas 29% são contribuintes, número que sobre para 59% no Sudeste. A situação  da organização dos trabalhadores em sindicatos é ainda mais crítica. No Brasil, apenas 18% da população ocupada declara ser sindicalizada, com esses valores sendo mais altos no Sul (23%) e mais baixos no Norte e no Centro-Oeste (15%).



Informalidade e precariedade de vínculo 



A pesquisa adverte que a subinformação torna o quadro da saúde do trabalhador brasileiro bastante impreciso. Isso porque, para fins de estatística oficial, apenas as informações de trabalhadores contribuintes do seguro social se configuram em registro de acidentes e doenças. “Cabe lembrar que apenas 35% da PEA (população economicamente ativa) brasileira está coberta pelo seguro social e freqüentemente são divulgados casos de acidentes ou de doenças cujo nexo não foi estabelecido por dificuldades relacionadas com as informações, o registro ou a capacidade técnica do perito”, informa a Alames.



A natureza dessas ocupações é majoritariamente informal – apenas 39,57% eram contratados formalmente em 2005 -, fato que, segundo a pesquisa, “tem vários significados simbólicos”. Para se ter uma diéia em 1991, os empregados com carteira representavam 55% da força de trabalho, quase 20% eram autônomos registrados e 4,5% empregadores. Os empregados "informais" representavam 20%. Como se pode ver, desde essa época a informalidade não parou de crescer.



Para os trabalhadores sem vínculo formal, que representam mais da metade da força de trabalho brasileira, as estatísticas oficiais não se aplicam. Pode-se estimar em cerca de 19 milhões as pessoas que trabalham por conta própria ou que não têm remuneração. Esse mercado informal é constituído, de um lado, por pessoas com renda insuficiente para se filiar à Previdência Social e, de outro, por menores de 16 anos, maiores de 60 anos e trabalhadores de empresas de pequeno porte.



Além disso, observou-se uma expansão de diversos níveis de precarização: terceirizados, temporários, em tempo parcial, por tarefas e trabalho familiar. Segundo estimativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 60 milhões de trabalhadores brasileiros estão inseridos no mercado de trabalho informal ou “precarizado”, descobertos da proteção da legislação trabalhista e do seguro de acidentes do trabalho (SAT) do Ministério da Previdência Social.



Queda de acidentes camuflada



No período de 1970 a 2005, a Previdência Social registrou uma média de 950.421 acidentes de trabalho ao ano. Na década de 70, a taxa média foi de 13,67 acidentes por 1.000 trabalhadores, baixando para 5,39 em 80 e 1,96 nos anos 90 e na primeira metade da década de 2000. O estudo alerta que a queda nessas taxas precisa ser analisada “à luz das mudanças no processo de trabalho, da subnotificação do sistema de informação e da tendência de privatização do seguro social”.



A intensa terceirização da força de trabalho, especialmente em áreas de maior risco, associada a campanhas pela redução do registro dos acidentes de trabalho voltadas para a privatização do seguro e o aumento do mercado informal associado à redução do trabalho formal explicariam porque a letalidade, que define a gravidade dos acidentes, só cresceu. Se a média era de 22,7 por 10 mil acidentes na década de 70, ela segue aumentando em 1980 (42,64) e 1990 (89,83), retrocendendo timidamente para 87,49 nos primeiros anos da década de 2000.



Trabalho infantil e escravo



“Um dos aspectos mais violentos da precariedade do trabalho reside na persistência da exploração do trabalho de crianças e adolescentes”, entende o estudo, dizendo que no Brasil, 3,5 milhões de trabalhadores têm menos de 16 anos e apenas alguns poucos trabalham legalmente na condição de aprendiz. Trabalho infantil e escravo expressam uma dimensão quantitativa de problemas identificados, porém os aspectos essenciais relativos à economia, aos impactos sociais e, sobretudo, à saúde continuam em grande parte invisíveis nas estatísticas e nos estudos epidemiológicos.



Entre os trabalhadores infantis, 65,1% são homens, 33,5% trabalham 40 horas ou mais por semana, 48,6% não têm remuneração, mais da metade utiliza produtos químicos, máquinas, ferramentas ou instrumentos no trabalho e 80% combinam o trabalho com a freqüência à escola. A maior parte trabalha em atividade agrícola (43,4%), porém esse percentual é mais elevado nas faixas etárias mais jovens, alcançando 75,9%, no grupo de 5 a 9 anos, e 56% no grupo de 10 a 14 anos.

Sabe-se também que mais de 80% dos trabalhadores infantis estão no setor informal e que o serviço doméstico é uma das principais atividades produtivas urbanas. “A questão do trabalho infantil acompanha a própria trajetória do país enquanto colônia, quando crianças descendentes de negros e índios eram obrigadas a incrementar a mão-de-obra das fazendas. De lá para cá, expandiram-se as frentes de trabalho até chegar, inclusive, aos soldados e aos 'aviões' na venda de drogas”, analisa a Alames.



De acordo com o estudo, o trabalho escravo ainda existe em quase todos os estados do Brasil. Envolve produtores e empresas dos mais variados tipos. As vítimas da escravidão têm todas as idades e o Nordeste abriga duas em cada três vítimas do trabalho cativo. A prática perdura, segundo a pesquisa, sobretudo nas áreas onde ainda acontece um desmatamento mais intenso de vegetação nativa, visando à expansão do agronegócio exportador em grandes latifúndios monocultores.



Contradições e novas ameaças à saúde



O estudo sublinha que as novas tecnologias também inovam no campo dos danos à saúde. Não só por causa do condicionamento do corpo do trabalhador às máquinas, causa da já conhecida lesão por esforço repetitivo (LER), mas também pela imposição de ritmos de trabalho cada vez mais intensos. Em contrapartida, também convivem no cenário epidemiológico brasileiro a tuberculose e a hepatite, decorrentes da contaminação no trabalho, e a morte por exaustão causada por esforço físico intenso – chamada de “karoshi” ou “birôla”.



A situação aparentemente contraditória é, segundo a Alames, um reflexo do neoliberalismo, que se expressa na saúde pela degradação das condições de trabalho associada à inserção de novas tecnologias “implementando o convívio de situações ‘antigas’ e ‘novas’ e associando à exposição dos clássicos fatores de risco, ‘novos’ riscos e cargas introduzidos pelas inovações organizacionais”.



Além disso, diz o estudo, o capital financeiro introduziu no modelo capitalista tradicional o crescimento econômico sem a proporcional geração de empregos, sendo o desemprego e a exclusão social tendências contemporâneas. “É neste cenário que a significação do trabalho se complexifica, modifica os aspectos subjetivos do trabalhador, acrescentado à ameaça permanente do desemprego as dificuldades de organização, a descrença nos valores tradicionais e a inércia do Estado no trato deste novo cenário”, aponta o estudo.



Diante desse quadro, a intensificação do trabalho e a submissão impõem-se de forma gritante, o que origina situação propícia a mudanças do perfil patológico das populações trabalhadoras. O informe aponta um predomínio de doenças crônicas, cujo nexo de causalidade com o trabalho não é mais evidente. Proliferam as doenças cárdio-circulatórias e gastro-cólicas às quais somam-se o desgaste mental de doenças psico-afetivas, que, apesar de acometerem toda a população, entre os trabalhadores passam a atingir uma faixa etária mais precoce.