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Brasil retrocede na maioria das metas de saúde, educação e trabalho da ONU para 2030

Das 168 metas presentes nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, 110 estão retrocedendo no país, segundo relatório de monitoramento da Agenda 2030
Redação - EPSJV/Fiocruz | 08/07/2022 10h49 - Atualizado em 08/07/2022 12h12

O Brasil vem retrocedendo na maioria das metas relacionadas à saúde, educação e trabalho presentes nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). É o que mostra o Relatório Luz 2022, divulgado na sexta-feira (1º). O documento, em sua 6ª edição, é produzido anualmente pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, formado por organizações não-governamentais, movimentos sociais e universidades. O GT faz o monitoramento das metas previstas no compromisso assinado por inúmeros países, entre eles o Brasil, durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável em 2015.

O documento deste ano mostra uma “realidade gravíssima”, como destacam os autores na apresentação do relatório. Num contexto de crise sanitária e climática, continua o texto, o aumento da pobreza, da fome, da perda de biodiversidade e da qualidade de vida no Brasil “indicam, de forma irrefutável, uma sociedade adoecida não apenas pelos efeitos devastadores da pandemia da Covid-19, mas, também, pelo crescimento das desigualdades”.

Das 168 metas aplicáveis ao Brasil previstas nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, 110 (65,47%) estão em retrocesso. Segundo a metodologia do relatório, isso expressa as políticas e ações que foram “interrompidas, alteradas negativamente ou sofreram esvaziamento orçamentário”. No ano passado, o número de metas em retrocesso era de 92. Entre as que progrediram, apenas uma meta o fez de forma “satisfatória” segundo o documento; outras 24 apresentaram progresso insuficiente, ou seja, aquém do necessário para sua implementação até 2030; 11 metas permaneceram ou entraram em estagnação e 14 se encontram “ameaçadas”, o que significa que, ainda que não haja retrocessos, elas estão em risco devido a “ações ou inações cujas repercussões comprometam seu alcance”. Sobre oito das metas não há dados suficientes disponíveis.

Os objetivos de desenvolvimento sustentável abrangem basicamente três eixos: o primeiro reúne aqueles ligados à dimensão social, como a erradicação da pobreza e da fome, melhoria de indicadores de saúde e de educação de qualidade, igualdade de gênero, entre outros; o segundo enfoca a questão ambiental, com objetivos ligados à redução de emissão de gases de efeito estufa, acesso à água potável e saneamento e preservação da vida na terra e na água; já o terceiro eixo se refere a uma dimensão econômica, com metas ligadas à proteção do trabalho decente, crescimento econômico sustentável e infraestrutura.


Mortalidade materna, exposição a agrotóxicos e gastos privados com saúde avançam

Das 13 metas mais diretamente relacionadas à saúde, referentes ao ODS 3, quatro estão em retrocesso. Entre elas a que diz respeito à redução da mortalidade materna. A pandemia de Covid-19 foi, segundo o relatório, a principal responsável por um aumento expressivo na mortalidade materna, que atingiu 74,7 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, crescimento de 223% em relação ao ano anterior. Também de acordo com o monitoramento, 59% desses óbitos foram diretamente relacionados à Covid-19. A meta referente ao acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva também retrocedeu, mais uma vez devido à pandemia. A implantação de dispositivos intrauterinos (DIUs) e a realização de laqueaduras recuaram em mais de 40%, enquanto os gastos do Ministério da Saúde com insumos contraceptivos foram reduzidos em 17%. A permanência das desigualdades no acesso e uso de métodos contraceptivos se expressa na estagnação da taxa de crianças nascidas vivas de mães adolescentes, de 14 por 100 mil habitantes. 

Houve piora também na meta que propõe a redução substancial das mortes causadas por produtos químicos perigosos e contaminação do ar e da água. O relatório lembra que em 2021 foram liberados 562 agrotóxicos, 14% a mais que em 2020 e maior volume da série histórica iniciada em 2000 pelo Ministério da Agricultura. “O aumento da população abaixo da linha de pobreza (ODS 1) significa mais pessoas expostas a fontes de água e saneamento inseguros e à falta de higiene, favorecendo a transmissão de doenças e a desnutrição. O avanço das queimadas contribuiu também para o aumento das mortes por poluição atmosférica”, indica o relatório.
Entre as metas classificadas como ameaçadas está a que busca atingir a cobertura universal de saúde, “incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos”. O Relatório Luz 2022 aponta que, enquanto os recursos previstos no orçamento federal para a saúde em 2022 caíram ao patamar de 2012, os gastos das famílias com saúde vêm aumentando: em 2019, a saúde privada, incluindo custos com planos e médicos, tornou-se a principal despesa das famílias com saúde, um total de R$ 427 bilhões, seguido pelos medicamentos, com R$ 122 bilhões.


Fome atinge 33 milhões de brasileiros

Em retrocesso também estão sete das oito metas relacionadas ao objetivo 2, que trata da erradicação da fome e da ampliação da segurança alimentar. Como destaca o documento, o “empobrecimento ampliado com a alta do desemprego e da inflação e a desconstrução de políticas e programas de redução da pobreza e promoção da saúde” contribuíram para o crescimento da insegurança alimentar grave em todas as regiões do país, nas zonas urbanas e rurais. Foi o que mostrou uma pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), que apontou que de 2020 para 2021 o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave saltou de 19 milhões para 33 milhões de pessoas no Brasil.

As metas referentes à ampliação da renda e do acesso à terra dos pequenos agricultores, “particularmente mulheres, povos indígenas, agricultores familiares, pastores e pescadores”, e à garantia de sistemas alimentares sustentáveis também decaíram, devido ao “desinvestimento e posterior extinção” de políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), o Programa Um Milhão de Cisternas, em paralelo ao avanço do agronegócio exportador de commodities como a soja, que por sua vez contribui com o aumento do desmatamento. A “priorização da exportação de commodities em detrimento da produção alimentar” também impactou negativamente a meta relativa ao controle da inflação dos alimentos, segundo o documento, que complementa que as áreas plantadas de produtos como o feijão, o arroz e a mandioca atingiram os menores índices registrados desde o início das séries históricas registradas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). O que contribui para o cenário identificado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que registrou aumento no custo da cesta básica em todas as capitais do país entre abril de 2021 e abril de 2022.


Brasil entre os piores países para se trabalhar

O aumento da inflação e o desemprego elevado no período, associado ao desfinanciamento de políticas sociais, fez com que a maioria das metas dos ODS relativas à promoção do trabalho decente também involuíssem. Entre os retrocessos estão a meta que prega a redução da proporção de jovens sem emprego, educação ou formação. “A população jovem tem sido a mais afetada pela intermitência trabalhista, pela informalidade e falta de capacitação – educação especializada –, que se somam a um cenário de permanência do trabalho infantil e/ou análogo ao trabalho escravo. As juventudes das famílias mais pobres, consequentemente, sofreram ainda mais o impacto da perda para a Covid-19 de entes que sustentavam a casa”, afirma o relatório.

O combate ao trabalho forçado, análogo à escravidão e infantil também retrocedeu. “Entre 2019 e 2021, o governo federal reduziu em 95% a execução de verbas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Quase 1,8 milhão de crianças e jovens trabalhavam no país antes da pandemia, 66,1% pretas ou pardas, e 706 mil realizando os piores tipos de trabalho. Com a pandemia este quadro piorou, aumentando as violações aos direitos dessa população, afastando-a da escola e do lazer”, denuncia o relatório. O texto destaca ainda que o Brasil figura desde 2019 na lista dos piores países do mundo para se trabalhar segundo o Índice Global de Direitos, estudo anual realizado pela Confederação Sindical Internacional (CSI), que analisa o respeito aos direitos dos trabalhadores em 148 países do mundo.


Educação: cortes orçamentários e aumento das desigualdades

Na educação, o cenário também é preocupante: nove das dez metas se encontram em retrocesso e uma está ameaçada. “O cenário geral da educação brasileira é de cortes orçamentários aprofundados, exclusão e violações a direitos. Ao contrário do que preconiza o Plano Nacional de Educação (PNE), avançam os projetos e políticas educacionais discriminatórias e censoras, como o PL da educação domiciliar (homeschooling), aprovado na Câmara dos Deputados”, aponta o texto. Retrocessos que, como destaca o documento do GT da Sociedade Civil para a Agenda 2030, vem na esteira de uma redução anual do orçamento federal para educação, área para a qual foram autorizados R$ 137,9 bilhões em 2022, mais de R$ 10 bilhões a menos do que o valor previsto em 2019, de R$ 148,7 bi. Em 2021, por exemplo, foram realizadas 627 mil matrículas a menos na educação básica do que em relação ao ano anterior. Em 2020, por sua vez, 6,4 milhões de estudantes não tiveram acesso às atividades escolares promovidas em meio à pandemia. “Na faixa etária de seis a 14 anos, cerca de 505 mil crianças não puderam acompanhar o ensino fundamental, sendo que 154 mil nem mesmo frequentaram escolas e 351 mil estavam em atraso escolar. A distorção idade-série média foi de 13,7%, chegando a 21% nos anos finais do ciclo. No ensino médio, o número de matrículas aumentou (2,9% em relação a 2020, chegando a 7,8 milhões e consolidando crescimento formal de 4,1% entre 2019 e 2021), mas a distorção idade-série foi de 24,4% no primeiro e terceiro anos e de 26,6% no segundo ano”, aponta o documento, que ressalta ainda que a taxa de alfabetização permanece estagnada em 94,2% desde 2020, enquanto o analfabetismo funcional chegou a 29%.

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