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Carreira de Estado no SUS

Após 18 anos, Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde volta a ocorrer em meio a intenso processo de terceirização e “pejotização” do trabalho no setor
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 01/03/2024 15h05 - Atualizado em 12/04/2024 14h26

O Brasil voltará a promover uma Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde (CNGTES), 18 anos depois da última realização do evento. Em sua 4ª edição, a conferência tem como tema “Democracia, Trabalho e Educação na Saúde para o Desenvolvimento: Gente que faz o SUS acontecer” e será realizada de 10 a 13 de dezembro, em Brasília.

Organizada e realizada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) com apoio do Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), a Conferência aprovará propostas para a formulação de uma política de estado para a valorização do Trabalho e da Educação na Saúde. Convocada em novembro 2023, a 4ª CNGTES ocorre em contexto de aprofundamento da precarização de vínculos de trabalho na Saúde.

Como forma de enfrentar esse processo de precarização, entre os temas que estarão em debate na próxima conferência, está a discussão sobre a criação de uma carreira de Estado no Sistema Único de Saúde (SUS). Na edição anterior, ocorrida em 2006,  trouxe em seu Relatório Final as deliberações de “Extinguir os contratos/convênios com Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP´s e outras entidades que tenham por objetivo a terceirização e privatização da saúde, com o retorno da gestão das unidades já terceirizadas para a administração direta e a revogação imediata da portaria 358, diário oficial de 22 de fevereiro de 2006, do MS” e “Abolir definitivamente a terceirização dos serviços das unidades públicas no SUS em todos os níveis de atenção. Garantir que o tempo de trabalho de todos os profissionais terceirizados seja considerado para todos os efeitos, inclusive para fins previdenciários”. As deliberações não apenas não foram implementadas como, em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) validou como constitucional a implantação das organizações sociais (OSs) na saúde pública.

Coordenadora da Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relações de Trabalho do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisca Valda da Silva, aponta o período do governo Temer como acentuador da precarização das relações de trabalho no SUS. “A reforma trabalhista [de 2017] abriu o setor para a internacionalização da saúde pública e a compra de serviços privados de oferta de trabalho para atividades fim. Inicialmente, a contratação por meios que não o concurso público era destinada apenas para as atividades de apoio, como limpeza, cozinha, lavanderia e portaria, dentre outras. Com a reforma, passamos a ter uma infinidade de vínculos, que passam por carteira assinada (CLT), contrato temporário, trabalho intermitente e técnicos de enfermagem ganhando por hora trabalhada. Foi assim que o trabalho intermitente e a ‘pejotização’ [neologismo derivado do termo "Pessoa Jurídica", que descreve o ato de manter empregados obrigando-os a criarem empresas, e que estabelece uma relação entre empresas ao invés de um contrato de trabalho entre a empresa contratante e seus empregados] entraram na saúde”, relata.

Para se contrapor a esse cenário, o Documento Orientador da 4ª CNGTES apresenta a proposta de “Garantia do futuro do trabalho na saúde com carreira de Estado no SUS”. Afirma o texto: “A luta pela carreira única nacional remonta à histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) e se repete em conferências posteriores, a exemplo da 17ª CNS, que aprovou a proposta ‘Criar a Carreira Única Interfederativa, com financiamento tripartite, piso salarial nacional para todas as categorias profissionais, com contratação exclusiva por concurso público, combate à terceirização, valorização das pessoas trabalhadoras da saúde e priorização das que trabalham no território, ampliação das políticas de educação permanente, atendendo as reais necessidades da população brasileira’”.

De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), a proposta alcançaria um contingente de pessoas que hoje somam mais de 3 milhões de trabalhadores em exercício no SUS, dos quais 75% são mulheres e que, em todas as cinco regiões do país, tem como carreira mais comum (769 mil pessoas) os técnicos em enfermagem.

A proposta de uma carreira de Estado faz parte de um conjunto de orientações sistematizadas em três eixos de deliberação , “Democracia, Controle Social e o desafio da equidade na gestão participativa do trabalho e da educação em saúde”; “Trabalho digno, decente, seguro, humanizado, equânime e democrático no SUS: Uma agenda estratégica para o futuro do Brasil”; e “Educação para o desenvolvimento do trabalho na produção da saúde e do cuidado das pessoas que fazem o SUS acontecer: A saúde da democracia para a democracia da Saúde”.

Os debates sobre o conjunto de propostas foram iniciados em fevereiro de 2024, quando foram iniciadas as etapas municipais do evento, que se estendem até o mês de abril. Entre maio e junho, ocorrerão as conferências estaduais e conferências nacionais livres. Entre 10 e 13 de dezembro, será realizada a etapa nacional.

Para a conselheira do CNS, a Conferência poderá desempenhar o papel de reforçar o entendimento de que o trabalho tenha um papel preponderante na consolidação da oferta do direito à saúde como um direito de todos pelo Estado. “O trabalho que materializa a ação concreta no dia a dia, no cotidiano da população, capilarizado em 3.574 municípios que possuem rede de atenção básica em saúde, e outras redes que complementam e que dão integralidade à atenção”, defende Francisca, acrescentando que, para ela, a recomendação trazida no Documento Orientador tenta dar resposta ao que ela identifica como aprofundamento de uma visão predadora sobre o trabalho, que precisa ser enfrentada. “A transformação do mundo do trabalho ocorre sempre sob a lógica da redução de custos, essa é a palavra de ordem. No caso do sistema público, como o SUS, nós estamos vivendo um processo de ampliação da compra de serviços privados, a parceria público-privada da gestão de recursos humanos, do trabalho em saúde”.

Professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), Ronaldo Teodoro dos Santos, identifica a necessidade de articulação entre as três esferas de governo para que a proposta de uma carreira de estado para os trabalhadores do SUS possa prosperar e efetivamente se tornar realidade no Brasil. “Como tudo no SUS, a organização do trabalho vai demandar um pacto federativo, sobretudo o papel dos estados nesse processo de formação das equipes de trabalhadores, e a gente sabe que o debate que ganha mais projeção hoje em dia, dada a fragmentação da assistência, é pensar a regionalização de seus três níveis”, defende.

Santos identifica que, desde o início dos anos 2000, o SUS passou por um processo de expansão com descentralização dos serviços, seja na Atenção Primária (APS) ou na média e alta complexidades. De acordo com ele, esse processo materializou “a municipalização como lógica de organização da rede”. “O SUS cresce se municipalizando fortemente e, junto com esse processo de municipalização, traz a pulverização dos vínculos de trabalho no SUS. A literatura vai se atualizando ao longo do tempo e hoje identificamos uma compilação de problemas, com instabilidade, vínculos precários e ‘pejotização’. Portanto, a expansão do SUS ocorreu sem que se assegurasse os direitos do trabalho, sobretudo no nível municipal”, identifica o pesquisador.

Por sua vez, Francisca lembra que a proposta de uma carreira de Estado foi aprovada em cada uma das etapas da 17ª Conferência Nacional de Saúde, em 2023, sendo proposta já de conhecimento dos prefeitos e câmaras municipais, e precisa ser negociada não apenas com as três esferas do Executivo. “Ela precisa ser assumida pelo poder legislativo e pelo poder judiciário”, indica. Para que isso ocorra, nas palavras da conselheira, será preciso mobilização ao longo do processo de Conferência. “O evento ocorre dentro de uma perspectiva de fortalecimento dos movimentos sociais que faça frente ao Centrão e a um Congresso Nacional conservador”.

Para o professor do IMS/UERJ, a conquista do piso nacional da enfermagem, a partir da organização e mobilização da categoria em todo o território nacional, precisa servir de exemplo para o enfrentamento das dificuldades em materializar uma carreira de Estado para o SUS. “O piso nacional pode ser considerado uma das maiores conquistas da classe trabalhadora brasileira nos últimos 10 anos, estávamos com uma dificuldade imensa de encontrar uma agenda positiva e esta é de maior relevância”, aponta.