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CNS recomenda revogação do Previne Brasil

Pleno do Conselho Nacional de Saúde aprovou na última semana recomendação contra novo financiamento federal da atenção básica
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 13/12/2019 09h29 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Ascom.CNSO Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou na última sexta-feira (6/12) uma recomendação pela revogação da portaria 2.979 publicada em novembro pelo Ministério da Saúde. A medida administrativa  instituiu o Programa Previne Brasil e estabeleceu um novo modelo de financiamento federal para a atenção primária em saúde. A decisão foi tomada pelo pleno na 324ª Reunião Ordinária do CNS, realizada nos dias 5 e 6 de dezembro, em Brasília. Na mesma semana, o Ministério Público Federal (MPF) pediu que a Pasta encaminhasse estudos técnicos com informações sobre a portaria, com prazo de cinco dias para resposta. O ofício foi enviado pela procuradora Débora Duprat logo após reunião com o presidente do CNS, Fernando Pigatto. Entre diversos argumentos, o Conselho alega que a proposta do governo foi publicada sem o aval do controle social, ferindo assim a lei 8.142, de 1990, que garante a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e a lei complementar 141, aprovada em 2012, que estabelece, dentre outras coisas,  normas para fiscalização, avaliação e controle das despesas da União, estados e municípios.

O pleno do CNS recomendou ainda que o Congresso Nacional vote com urgência projetos de decreto legislativo (PDLs)  de autoria do deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) do senador Humberto Costa (PT-PE) que propõem sustar a portaria. Para Pigatto, é necessário haver uma ampla discussão com o controle social sobre o financiamento da atenção básica. “Vamos continuar o debate e também nos envolver na realização dos seminários estaduais, que serão promovidos pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados”, ressaltou. Além disso, a maioria dos conselheiros de saúde aponta que a medida representa um ataque à universalidade da saúde no Brasil, estabelecida na Constituição Federal, uma vez que impõe restrições importantes ao acesso da gestão municipal aos repasses federais voltados para a atenção básica.

Entretanto, segundo Thiago Campos, advogado sanitarista e diretor regional do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), é possível que a portaria permaneça valendo, mesmo sem o ‘aceite’ do CNS. De acordo com ele, quando uma autoridade edita um ato administrativo – como no caso em questão em que o ministro da Saúde editou uma portaria –, a validade dele é presumida, ou seja, o texto já passa a ter validade após a sua publicação no Diário Oficial. E isso acontece mesmo que o ato administrativo vá contra a lei ou tenha sido praticado por autoridade incompetente, por exemplo. Sendo assim, a validade do ato pode cessar se anulada ou revogada pela própria administração, no caso o Ministério, ou ainda judicialmente.

O ponto de tensão maior é o artigo 17 da lei complementar 141. O texto estabelece que o que deve ser aprovado no Conselho Nacional de Saúde é a metodologia de cálculo dos montantes a serem transferidos a estados e municípios para o custeio das ações e serviços públicos de saúde. O entendimento do Ministério, nesse caso, tem sido de que não há modificação da metodologia e, por isso, a portaria não precisaria ser aprovada pelo Conselho. Mas Thiago Campos discorda: “A portaria muda a forma de cálculo, indicando que o repasse federal será feito por cadastro e não mais pela população aferida pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. E a forma de cálculo diz respeito a método, portanto, à metodologia”.

Campos explica que um conflito normativo se desenha no horizonte, na medida em que o Conselho recomendou a revogação e o Ministério da Saúde, ao que tudo indica, não deve sustar a portaria. "A partir disso é o Poder Judiciário que deve solucionar a questão", indica.

O presidente do CNS, Fernando Pigatto, em entrevista para a revista Poli, afirmou que quando o CNS avalia que o Executivo extrapolou os limites da sua atuação, o controle social costuma acionar deputados e senadores para tentar sustar medidas tomadas à revelia do Conselho. “E, no âmbito do Judiciário, acionamos as entidades que integram o CNS para que ingressem com ação”, apontou.  Além da recomendação, que consiste em “uma sugestão, advertência ou aviso a respeito do conteúdo ou forma de execução de políticas e estratégias setoriais", há outras duas formas de o CNS se manifestar. Uma delas é a moção, definida como “uma forma de manifestar aprovação, reconhecimento ou repúdio a respeito de determinado assunto ou fato”. Outra é a resolução, o ato mais geral e conclusivo. Tem caráter normativo, o que requer tempo para aprofundamento, estudo, debate e esclarecimento dos conselheiros. Campos explica que o Conselho tem poderes deliberativos, a partir da diretriz constitucional de participação social. Contudo, as normas legais o transformaram em um órgão subordinado ao ministro da Saúde, restringindo, assim, as suas competências. E apesar de ser um órgão e não possuir personalidade jurídica, isso não inviabiliza, no entender do advogado, a capacidade de ir a juízo. “Há casos de reconhecimento dessa capacidade por juiz Brasil afora, mas há decisões contrárias também. Por isso, o CNS tem optado por instar outros órgãos legitimados para que ingressem em juízo na defesa das competências do Conselho”, elucida.

O que muda?

O novo modelo de financiamento do governo federal para atenção básica começa a valer em 2020 e fará com que o repasse de recursos aos municípios considere o número de usuários cadastrados nas equipes e o desempenho das unidades básicas de saúde, a partir de indicadores como qualidade do pré-natal, controle de diabetes, hipertensão e infecções sexualmente transmissíveis. Ou seja, quanto mais pessoas inscritas e quanto melhores os resultados, maiores serão os valores. Atualmente, o pagamento é feito com base em dados populacionais.

Em uma apresentação durante a reunião no dia 5, o secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério, Erno Harzheim, apontou que a principal novidade é o aumento no volume absoluto de recursos. Segundo ele, em 2019, repasse federal aos municípios é de R$ 18,3 bilhões. “No ano que vem, já temos a PLOA [Projeto de Lei Orçamentária Anual] de R$ 20 bi. Ou seja, dois bi a mais só na parte do orçamento de repasses”, afirmou. 

Harzheim explicou ainda que a ideia do financiamento se trata de um modelo misto, pautado nos critérios de captação por ponderação, pagamento por desempenho e incentivo a ações "específicas e estratégicas". Ele afirmou que a captação ponderada vai atrelar a transferência do recurso federal a cada pessoa cadastrada na plataforma e-SUS no âmbito da Estratégia Saúde da Família (ESF). E isso vai levar em conta alguns critérios, como a vulnerabilidade socioeconômica, o número de cadastrados recebendo Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários mínimos. Outro critério é a idade, especificamente o número de crianças com até cinco anos e de idosos a partir de 65 anos. O governo federal ainda vai olhar para o tamanho e distância da cidade, segundo a classificação dos municípios na tipologia rural-urbana do IBGE.

Na avaliação de Carlos Ocké, técnico do Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) presente no debate promovido pelo CNS,um dos pontos mais polêmicos é a necessidade de cadastro da população para que seja feito o repasse dos recursos aos municípios. Isso porque as cidades já arcam com 70% do financiamento da atenção básica – enquanto ao Ministério da Saúde cabem os 30% restantes. E para cadastrar mais habitantes, os prefeitos terão de contratar mais profissionais, já que cada equipe não pode ultrapassar certos limites de usuários a elas vinculados.

“Isso me parece extremamente problemático, do ponto de vista da sustentabilidade dos municípios”, pontuou.

Ainda segundo Ocké, o debate em torno da eficiência precisa de mais tempo para ser amadurecido. “Afinal de contas, o que seria uma atenção primária à saúde mais eficiente? Poderia significar mais recursos e não menos, por exemplo, uma vez que eficiência no setor saúde é um conceito associado à ideia de eficácia, segurança e qualidade?”, questionou. E respondeu: “Na saúde, eficiência não significa, sobretudo considerando os pressupostos constitucionais do SUS em torno da universalidade, integralidade, da equidade e da participação social, corte de recursos. Pelo contrário. Para produzir melhor é necessário mais recursos. E talvez esse seja o maior problema na conjuntura, mas precisamos enfrentá-lo”.

Para Francisco Funcia, da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS), o novo modelo representa uma mudança do conceito de acesso universal para o da cobertura universal de saúde. “Porque a cobertura universal de saúde é o modelo defendido pelo Banco Mundial, é um mix público-privado. O governo está dizendo que ano que vem vai apresentar um estudo de novo modelo também para atenção especializada da saúde. Então já tem um erro de concepção. Tem que pensar no sistema como um todo, e não fragmentado, tem que ter integração no cuidado com a saúde”, opinou.

O economista criticou ainda o que acredita ser falta de transparência por parte do governo, que ainda não apresentou nenhum estudo técnico sobre o novo modelo de financiamento. “Estamos falando do direito à vida, não de  asfaltar mais ou menos ruas, ou construir mais ou menos aeroportos, é outra dimensão"ressalta, acrescentando que falta pouco para essa conduta ser caracterizada como irresponsabilidade fiscal. “Você não está aplicando dinheiro público para atender as reais necessidades da população. Isso é irresponsabilidade fiscal”, alerta.

Procurados pelo Portal EPSJV, os integrantes da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) – onde a proposta da mudança de financiamento foi aprovada –  o Conselho Nacional de Secretarias Municipais (Conasems) e o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) não se manifestaram até o fechamento dessa reportagem. Segundo o Conasems, a questão ainda seria debatida durante uma reunião de diretoria. Já o Conass não respondeu a solicitação da reportagem.