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Cooperação internacional: da ajuda humanitária aos projetos estruturantes

Haiti: depois do desastre, atenção para a saúde
Ana Beatriz de Noronha - EPSJV/Fiocruz | 21/12/2010 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

No dia 12 de janeiro deste ano, bastaram 35 segundos para um terremoto de intensidade 7.0 devastar a região mais densamente povoada do Haiti. Para a população da capital Porto Príncipe e das cidades no entorno, o resultado foi drástico: mais de 1,5 milhão de desabrigados, cerca de 200 mil mortes, 300 mil feridos e 4 mil amputações. Cerca de 80% da cidade de Leogane foi destruída. Na área da saúde, de acordo com o governo haitiano, 60% dos hospitais ruíram completamente ou foram severamente danificados, assim como as instalações do Ministério. Metade dos estudantes, vários professores e diretores da Escola Nacional de Enfermagem perderam a vida quando o prédio desabou.



“A extensão da destruição física causada por um terremoto depende de muitos fatores. Além da magnitude do sismo, há a localização do epicentro, a geologia das áreas afetadas e, especialmente, a existência e aplicação de normas antissísmicas de construção. Países como o Chile, que enfrentou fortíssimos tremores em 1960 e 1985, tendem a aprimorar as construções ao longo do tempo. No Haiti, onde o último grande terremoto ocorreu em 1750, a população não tinha memória histórica de um terremoto e não havia grandes cuidados com as normas e os métodos de construção”, comenta Philippe Montagut, consultor para o desenvolvimento de Recursos Humanos em Saúde da OPAS/OMS no Haiti.



No primeiro momento, salvar vidas



Imediatamente após o terremoto, a comunidade internacional se uniu numa ‘resposta humanitária sem precedentes’, como afirma o relatório da OPAS/OMS ‘Situação de Saúde: nove meses depois do terremoto no Haiti’. De acordo com o documento, no final de janeiro, 396 agências internacionais de saúde haviam chegado ao país para oferecer uma ampla variedade de serviços.



Na ocasião, uma das ações mais importantes foi a das Brigadas Médicas Cubanas, cujo trabalho foi qualificado pela diretora da OPAS/OMS, Mirta Roses, como “excelente e maravilhoso”. Segunda ela, os cerca de 400 cooperantes das brigadas cubanas foram responsáveis pela mais importante assistência sanitária ao povo haitiano durante as primeiras 72 horas após o terremoto.



Por meio de um Plano Integral de Saúde, o governo cubano desenvolve ações de cooperação no Haiti desde 1998. Além disso, quase mil profissionais haitianos, dentre os quais mais de 500 médicos, se formaram em Cuba.  Tudo isso, de acordo com Mirta Roses foi fundamental para a rápida resposta das Brigadas após o desastre.



Horas depois do terremoto, Cuba enviou a Porto Príncipe mais 60 especialistas em catástrofes, membros do Contingente ‘Henry Reeve’, com medicamentos, soro, plasma e alimentos. Graças aos médicos cubanos e à ajuda humanitária prestada por vários países, milhares de vidas foram e estão sendo salvas no Haiti, mas isso não é suficiente.



As ações de cooperação em caso de desastres variam ao longo do tempo. Num primeiro momento, a prioridade é salvar vidas e tentar reduzir, por exemplo, o número de amputações, bem como realizar ações de vacinação e controle de epidemias. Em uma segunda etapa, é essencial a prestação de cuidados de saúde que atendam às principais necessidades cotidianas da população. “É preciso suprir a falta dos serviços que deixam de ser prestados pelo sistema de saúde local por causa da perda da capacidade instalada – prédios destruídos e redução no número de trabalhadores da saúde, por morte ou incapacidade”, explica Montagut.

“Por fim, é preciso estabelecer uma transição coordenada das operações de emergência para as de reorganização e reestruturação do sistema local de saúde, o que, no caso do Haiti, envolve a construção de um sistema de prestação de cuidados que considere a acessibilidade da população, as questões de financiamento e de governança, a descentralização dos serviços e a formação de recursos humanos, entre outras coisas”, completa.



A cooperação de longo prazo



O impacto do terremoto foi imenso. Cerca de 300 mil moradias foram perdidas total ou parcialmente, mais de 1.300 estabelecimentos de ensino ficaram inutilizáveis. As dificuldades de acesso aos alimentos e aos serviços básicos aumentaram por conta da perda das capacidades humanas e institucionais dos setores público e privado, deixando o povo haitiano ainda mais vulnerável. Segundo estimativas do governo do Haiti, o valor total dos prejuízos causados pelo terremoto ultrapassou o valor de 7 bilhões de dólares, o equivalente a 120% do PIB nacional em 2009. 



Por conta da magnitude dos problemas enfrentados pelo Haiti, foi realizada no dia 31 de março, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), a ‘Conferência Internacional de Doadores Rumo a um Novo Futuro para o Haiti’, com a participação de representantes de 140 países. Durante o evento ficou estabelecida a doação de 5 bilhões de dólares nos 18 meses seguintes e foi instituída a Comissão Provisória para a Reconstrução do Haiti (CIRH), presidida pelo ex-presidente norte-americano Bill Clinton.



Na ocasião, foi apresentado o Memorando de Entendimento de Brasil, Cuba e Haiti para o apoio ao fortalecimento do sistema de saúde e vigilância epidemiológica do Haiti, no qual os três países assumem a responsabilidade conjunta pela reconstrução do sistema de saúde haitiano. Segundo o memorando, cabe ao Brasil reformar hospitais e centros de saúde, enviar equipamentos e ambulâncias, estruturar programas de atenção básica à saúde, com a formação de pessoal, criar um centro de vigilância epidemiológica e auxiliar na ampliação da cobertura vacinal. Cuba, por sua vez, enviará pessoal especializado na área médica e prestará ajuda operacional. A cargo do Haiti estão a escolha das unidades a serem reformadas e os locais onde serão construídos novos centros de saúde, a infraestrutura para a realização das obras e o pagamento dos técnicos que atuarão na área da saúde.



Também está prevista a capacitação de médicos haitianos formados pela Escola Latino-Americana de Medicina (Elam), em Cuba, para trabalharem nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) a serem construídas. A estimativa é de que o Brasil ofereça 200 bolsas para esse processo.



A saúde no Haiti



Mesmo antes do terremoto de janeiro, segundo o ‘Plano Provisório do Setor da Saúde para o período de 1º de abril de 2010 a 30 de setembro de 2011’, elaborado pelo Ministério da Saúde Pública e População (MSPP) do Haiti, o país já apresentava um sistema de saúde bastante deficiente e caracterizado, entre outras coisas, por:



§    baixa cobertura – 47% da população não tinha acesso aos serviços, principalmente por razões geográficas ou financeiras (¾ da população vive com menos de U$ 2,00 por dia –PNUD-2005) e desigualdades significativas;



§    baixo grau de financiamento – 5,7% do PIB gasto em saúde (2005-06) e 32 dólares de despesa anual per capita (MSPP 2009) –, alto grau de centralização – dos seis hospitais universitários que funcionavam no país, cinco estavam na capital – e disfunção organizacional;



§    escassez de recursos humanos para o setor.– em média 5,9 médicos ou enfermeiros e 6,5 profissionais de saúde por dez mil pessoas, número bastante inferior ao mínimo definido pela OMS de 25 profissionais/10 mil habitantes.





Por tudo isso, o país apresentava o maior índice de mortalidade infantil das Américas (57/1000 nascidos vivos) e a maior taxa de mortalidade materna (630/100 mil) do mundo. O HIV/AIDS, com prevalência de 2,2%, e a tuberculose, com uma taxa de detecção de 70%, representam graves problemas de saúde pública.  

De acordo com o Plano, lançado para tentar reverter o processo de agravamento da situação de saúde após o terremoto, o governo deve:



§    Garantir o acesso universal aos serviços de saúde, especialmente para os grupos mais vulneráveis;



§    Reforçar a função de liderança e coordenação do MSPP, bem como seu papel de facilitador da gestão descentralizada do setor saúde;



§    Restabelecer e reforçar os recursos humanos no setor;



§    Reforçar a governabilidade em nível central e nos demais, garantindo a instauração de um sistema de financiamento solidário baseado em resultados; e



§    Garantir a gestão eficaz e eficiente dos insumos e medicamentos essenciais, estabelecendo mecanismos que permitam sua gratuidade.





A relevância da força de trabalho em saúde



Embora tenha trazido consequências desastrosas para um sistema de saúde que sempre enfrentou graves problemas estruturais, o terremoto de janeiro também trouxe consigo um enorme potencial para a reestruturação desse sistema. Definir a melhor forma de aproveitar o fluxo de assistência humanitária internacional e de atenção global para construir uma infraestrutura de saúde mais resistente e mais resiliente tornou-se fundamental e foi nesse contexto que a questão dos recursos humanos em saúde assumiu sua relevância.



Durante a 37ª Conferência do Conselho Global de Saúde, realizada em Washington-DC, de 14 a18 de junho, o ministro haitiano da Saúde Pública, Alex Larsen, foi enfático ao afirmar que o foco desse processo deve estar sobre os trabalhadores do setor. “Com o terremoto a falta de trabalhadores de saúde aumentou, pois muitos profissionais de saúde perderam suas vidas ou ficaram gravemente feridos”, afirmou, lembrando que a falta de médicos é apenas parte do problema, já que a falta de enfermeiros, agentes comunitários e outros profissionais de nível médio é ainda mais grave. “Profissionais de nível médio e não edifícios. Um hospital tem pouco valor se não há os trabalhadores da saúde em número suficiente”, enfatizou o ministro.



Segundo Larsen, além da escassez numérica também é preciso resolver os inúmeros fatores que afetam a produtividade dos profissionais existentes e, consequentemente, a qualidade dos serviços. “É preciso enfrentar os problemas dos baixos salários e da falta de planos de carreira, de condições adequadas de trabalho e de mecanismos de avaliação de desempenho, bem como a questão da baixa capacidade de retenção do setor público”, acrescentou.



De acordo com o ministro, parece que alguns programas de formação promovidos por organizações que se instalam no Haiti servem apenas para desenvolver talentos que possam ser posteriormente recrutados. “É difícil manter os trabalhadores no país, pois muitos são contratados para trabalhar nos Estados Unidos e no Canadá. Por outro lado, aqueles que permanecerem acabam buscando empregos em ONGs ou no setor privado, por conta dos salários”, explicou.



A formação para a saúde no âmbito do Acordo Tripartite



A primeira reunião do Comitê Gestor Tripartite – responsável pelo plano de cooperação internacional entre Brasil, Cuba e Haiti –, ocorreu nos dias 22 e 23 de abril, no Brasil. Na ocasião, o grupo formado por representantes dos três países fez uma visita técnica à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Rocinha, no Rio de Janeiro e, posteriormente, em Brasília, se reuniu para elaborar um plano de trabalho conjunto, com base nas propostas feitas pelas autoridades haitianas. Também ficou definida a criação de Grupos Técnicos prioritários, dentre os quais o de Formação de Recursos Humanos em Saúde, cujos coordenadores (pontos focais) são: Clarice Ferraz (Brasil), José Caridad Cabrera (Cuba) e Gadner Michaud (Haiti).



Por conta da experiência brasileira com a formação de técnicos de nível médio para o Sistema Único de Saúde (SUS), coube ao Ministério da Saúde do Brasil apresentar um projeto de formação técnica em saúde para o Haiti.



De 5 a 11 de junho, uma missão brasileira esteve no Haiti para analisar, juntamente com representantes cubanos, o contexto atual e avaliar a necessidades de formação técnica em saúde no país. Entre diversas atividades, o grupo participou de uma oficina de trabalho organizada por técnicos e gestores do Ministério da Saúde do Haiti, com o objetivo de estabelecer os eixos norteadores do plano de formação.



Em julho, o Ministério da Saúde do Brasil apresentou uma proposta com base no estabelecido no Memorando e nas informações recebidas durantes a missão ao Haiti. “Depois das análises prospectivas realizadas em visitas ao Haiti e considerando as definições acordadas com o Ministério de Saúde daquele país, ficou estabelecida que as prioridades iniciais de formação seriam para Agentes Comunitários de Saúde (ACS), Técnicos de Enfermagem (TE) e Oficiais Sanitários (OS) ”, explica Clarice Ferraz.



Segundo ela, a ideia é trabalhar com a realidade da infraestrutura do país, na perspectiva de reorganizar o sistema segundo as bases da Atenção Primária em Saúde, tendo em vista a efetivação de uma Política Pública de Saúde.



De acordo com o documento, a educação profissional em saúde deve ser pautada na perspectiva do processo de trabalho em saúde e na contextualização das práticas como fonte de produção de conteúdos significativos, requerendo, portanto, aproximação entre as ações cotidianas do trabalho e as metodologias pedagógicas desenvolvidas. Nesse sentido, a ideia é que a metodologia de formação deve promover a reflexão da prática profissional dos alunos, identificando suas fragilidades e, ao mesmo tempo, apresentar novos conhecimentos que melhorem o desempenho dos profissionais e, consequentemente, a qualidade da atenção à saúde prestada à população.



Em agosto, em uma reunião em Havana, Cuba, o projeto brasileiro foi aprovado por unanimidade pelo Comitê Gestor Tripartite, ficando estabelecida a formação de 2.680 ACS, 1.080 TE e 480 OS, no período de 25 de outubro de 2010 a 16 de abril de 2011. “No início de setembro, enviamos para o Grupo Técnico no Haiti os mapas de competências, marcos de orientações curriculares e os planos de atividades de curso para formação dos agentes comunitários, com textos didáticos, elaborados pela Rede de Escolas Técnicas do SUS, para serem validados e traduzidos para o francês”, conta Clarice.



Os cursos contarão com a participação de professores brasileiros, cubanos e haitianos, e um dos desafios a serem enfrentados é a necessidade de se comunicar em português, espanhol, francês e até mesmo no idioma crioulo haitiano (kreyòl ayisyen), também conhecida como ‘créole’. “Para tentar superar essa dificuldade, alguns profissionais haitianos estão fazendo curso de português na embaixada brasileira em Porto Príncipe”, acrescenta.



Para dar continuidade ao projeto, foi realizada, de 4 a 10 de outubro, em Fortaleza, Brasil, uma oficina de formação para os docentes. Pelo Haiti, participaram da atividade representantes do MSPP e professores do Instituto Haitiano de Saúde Comunitária (INSHAC). Membros da Brigada Médica no Haiti e professores de Havana formaram a delegação cubana. O grupo brasileiro incluiu, entre outros, os responsáveis pela cooperação tripartite, membros do escritório da OPAS/OMS em Brasília, dirigentes da Escola de Saúde Pública do Estado do Ceará e os professores dos primeros grupos que irão dar aulas no Haiti.



Um dos objetivos da oficina foi estabelecer um cronograma para a formação dos ACS, ficando confirmada a data de 25 de outubro para o início das atividades em Porto Príncipe, após uma reunião de todos os professores envolvidos no projeto de 20 a 22, no INSHAC. Em Palland e Aquin, o projeto será iniciado um mês depois.

A formação em Gonaive está prevista para começar em janeiro de 2011.



No âmbito geral do Acordo Tripartite, foi confirmada a montagem de um escritório permanente na embaixada brasileira, com função logística para apoiar o processo.  



A OPAS-Brasil também anunciou a contratação de um consultor que trabalhará no escritório da organização no Haiti, com a função de auxiliar o desenvolvimento do programa de formação. Além disso, também serão transferidos recursos para a tradução e adaptação do material pedagógico.



Na opinião de Philippe Montagut (OPAS/OMS-Haiti), que esteve presente na oficina, o resultado do encontro foi bastante positivo e todas as diferenças culturais e as dificuldades de linguagem foram resolvidas rapidamente. “O Brasil tem expressado com muita firmeza a vontade de formar profissionais capazes de contribuir para a criação de um sistema de saúde abrangente e integrado, a partir da Atenção Primária. A proposta se destina a formar profissionais a serem imediatamente inseridos nos serviços da rede funcional, de acordo com planejamento da autoridade nacional de saúde do Haiti”, ressaltou.



Na próxima reunião do Comitê Gestor Tripartite no Haiti, caberá ao MSPP apresentar, entre outras coisas, as decisões administrativas que dizem respeito a esses novos profissionais – estatuto, remuneração, plano de carreiras – e a revisão e atualização para os perfis já atuam no sistema. A preocupação é avaliar a possibilidade de o Ministério absorver um aumento de 33% de seus quadros (62% se não for considerado o pessoal administrativo).



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