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Crise anunciada na saúde

Plano que prevê demissão de mais de 1,5 mil trabalhadores da atenção básica no Rio acende alerta entre trabalhadores da saúde em outros estados. Para pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, demissões e fechamento de equipes têm relação direta com a nova Política Nacional de Atenção Básica e com a emenda do teto de gastos
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 13/11/2018 16h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

No momento em que esta matéria é escrita, trabalhadores da atenção básica de saúde do Rio de Janeiro estão em greve. O movimento, formado por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, psicólogos, assistentes sociais, agentes comunitários de saúde e farmacêuticos, tem como uma de suas pautas protestar e mobilizar a população contra um plano de “reorganização” dos serviços de atenção primária apresentado pela Prefeitura em outubro. O governo municipal pretende descredenciar e demitir os profissionais de saúde vinculados a 184 equipes de Saúde da Família, 55 equipes de saúde bucal e outras 29 equipes dos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF). A estimativa é de que sejam demitidos mais de 1,5 mil trabalhadores da atenção básica. Pelo menos quinze trabalhadores de duas equipes do NASF que fazem o atendimento especializado de apoio a equipes de saúde da família da Área de Planejamento 3.1, que abrange territórios como o Complexo da Maré, Bonsucesso, Manguinhos, Vila do João, entre outros, já receberam aviso prévio.

O plano acendeu um alerta entre trabalhadores da atenção básica de estados do Sudeste, como Minas Gerais e São Paulo, que já vinham denunciando um processo de desfinanciamento dos serviços de saúde e demissões de trabalhadores nos últimos anos, que se intensificou com a aprovação da nova Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) - que completou um ano em setembro – e da Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos da União pelos próximos 20 anos e que passou a vigorar a partir do exercício financeiro de 2018.


No Rio, demissões podem passar de 1,5 mil

No Rio de Janeiro, a Proposta de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2019 apresentada pelo Executivo municipal para votação na Câmara dos Vereadores prevê um corte de R$ 725 milhões no orçamento da Saúde para o ano que vem. Os cortes afetam principalmente a atenção primária, em especial os Centros Atenção Psicossocial (CAPs), que terão R$ 450 milhões a menos em 2019. A prefeitura, no entanto, tem argumentado que o plano de reorganização da atenção básica tem como objetivo dar maior “eficiência” no atendimento à população, a partir de um diagnóstico sobre a produtividade de algumas equipes de Saúde da Família e de saúde bucal. O Portal EPSJV/Fiocruz entrou em contato com a assessoria de imprensa do governo municipal solicitando alguns esclarecimentos a respeito do plano, mas até o fechamento desta reportagem não havia obtido resposta.

Na apresentação do plano feita pela Secretaria Municipal de Saúde e disponível no site da prefeitura, argumenta-se que o número de equipes de Saúde da Família passou de 760 em 2013 para 1.263 em 2016, mas que sua distribuição no território não atendeu a critérios socioeconômicos e de “sustentabilidade financeira”. Um estudo de reformulação das Clínicas da Família feito pela prefeitura dividiu a cidade em três áreas, de acordo com um chamado “índice de desenvolvimento social”. Segundo o estudo, existem 537 equipes em áreas pobres, 536 em áreas de "classe média" e 187 em áreas ricas. O corte vai atingir todas as áreas, mas principalmente a de classe média, que vai passar a ter 413 equipes, e a rica, onde o número ficará em 132. A área pobre perde seis equipes. A prefeitura defende que o plano trará uma “otimização dos recursos”, com foco na permanência de equipes em áreas que mais necessitam, eliminação de equipes com “baixa produtividade” e aumento do número de atendimentos das equipes que permaneceram.

O corte, no entanto, pode sair pela culatra. Isso porque, no desenho do Sistema Único de Saúde (SUS), a atenção básica tem o papel de promover saúde e prevenir doenças. Isso quer dizer que a prefeitura pode estar mirando numa economia imediata hoje, mas daqui a pouco tempo pode ter que gastar mais com tratamentos de urgência e emergência de problemas de saúde agravados exatamente pela redução dos serviços de atenção básica. O Movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos, que lidera a mobilização contra a proposta, tem batido nesta tecla. Segundo a médica Valeska Antunes, integrante do movimento, na escala pretendida pelo governo municipal, não há como garantir que a população atualmente atendida pelos serviços básicos de saúde municipais continuará tendo acesso a eles após as demissões e redução do número de equipes. “Talvez existam de fato algumas situações em que é possível suprimir uma equipe sem grandes impactos, mas neste nível a gente não tem nenhuma dúvida de que vai sobrecarregar equipes que já trabalham na média de atendimento recomendado ou até acima, e temos certeza de que colocar mais pessoas sobre a sua responsabilidade vai significar inevitavelmente restrição de acesso e perda de qualidade”, defende, reivindicando que o plano seja mais “amplamente debatido” antes de ser implementado. “O Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro entrou com uma ação civil contra o plano, solicitando que esse processo seja impedido de andar até que o Conselho Municipal de Saúde possa de fato entender e dar um parecer a respeito”, diz Valeska. O Ministério Público do Rio de Janeiro também solicitou à prefeitura, ainda em outubro, esclarecimentos a respeito do plano, e solicitou, por ofício, que o governo municipal apresentasse uma previsão detalhada e justificada dos impactos positivos e negativos dos cortes anunciados.

O movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos divulgou um manifesto na internet contra a proposta, que já conta com a assinatura de 24,5 mil pessoas. A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) assina o manifesto, assim como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, o Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro (Sinmed-RJ), o Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde do Rio de Janeiro (Sindacs-RJ) e a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem), entre várias outras organizações.


PNAB e EC 95: o que elas têm a ver com isso?

Para a professora-pesquisadora da Escola Politécnica da Fiocruz Mariana Nogueira, o que acontece no Rio de Janeiro atualmente é efeito direto das mudanças na nova PNAB, cuja portaria foi publicada pelo Ministério da Saúde em setembro de 2017, e também da aprovação da Emenda Constitucional 95, no final de 2016. Ela integrou um grupo de trabalhadores da EPSJV/Fiocruz que, no processo de discussão das mudanças na PNAB, vinha produzindo análises sobre os impactos negativos que sua aprovação teria sobre o SUS. Um deles seriam justamente os possíveis descredenciamentos de equipes de saúde da família e demissões de trabalhadores da atenção básica, principalmente agentes comunitários de saúde. “Na nova PNAB, a Estratégia de Saúde da Família perdeu a centralidade que tinha anteriormente como modelo de reorientação da atenção básica no país”, diz Mariana. A nova PNAB deixou de prever o incentivo financeiro do Ministério da Saúde vinculado a implementação da Estratégia de Saúde da Família, mecanismo de indução que na política anterior funcionava como estímulo para a ampliação da cobertura da ESF.  Além disso, a revisão da PNAB aprovada em setembro de 2017 alterou a composição das equipes de saúde da família: o número mínimo de agentes comunitários de saúde por equipe caiu de quatro para apenas um. No contexto de crise e da aprovação com a EC 95, a alteração foi apontada por setores críticos como uma forma de induzir que os gestores municipais reduzissem o número de ACS ou optassem pela composição de equipes sem os agentes, cujo piso salarial é pago pela União – que transfere aos municípios 95% do valor – com a contrapartida dos municípios. “A Emenda Constitucional 95 reduz os investimentos financeiros do governo federal para os estados e para os municípios. Logo, a atenção básica e a Estratégia de Saúde da Família, que contam com grande aporte municipal, mas também do governo federal, sofrem um abalo direto”, diz Mariana, complementando: “Com a diminuição destes recursos, os municípios ficam estrangulados, sem conseguir pagar o piso salarial dos agentes”.

Valeska Antunes também vê uma relação direta. Tanto que, no plano de reorganização, a prefeitura criou uma nova equipe de atenção básica, em que um agente comunitário de saúde passaria a responder por uma área com uma população de até 18 mil pessoas. A partir da nova PNAB, esse arranjo passou a ser passível de financiamento da União, o que era impossível na política anterior. Nela, cada ACS ficava responsável por atender, no máximo, 750 pessoas, número que servia de critério para a expansão das equipes no sentido de garantir a cobertura de 100% da população cadastrada. Essa perspectiva – de 100% de cobertura - foi retirada do texto da nova PNAB, o que para seus críticos, como Mariana Nogueira, aponta para a focalização da atenção básica na contramão da universalidade da assistência que o SUS preconiza. “Com essa nova equipe se perde toda a perspectiva da equipe de saúde da família. E a gente não sabe quantas equipes vão deixar de ser de Saúde da Família e passar por essa mudança”, aponta Valeska.

A ampliação da cobertura da atenção básica nos últimos anos no Rio de Janeiro se deu principalmente através da Estratégia de Saúde da Família. O município saiu de um patamar de 3,5% de cobertura pela ESF em 2009 para 68% da população em 2016. O corte de equipes proposto pela prefeitura expressa na prática o que os pesquisadores já previam quando analisaram as mudanças na PNAB, de que em um contexto de crise orçamentária e implementação de políticas de austeridade fiscal, como a EC 95, a Estratégia de Saúde da Família deixaria de ser o modelo prioritário para expansão da atenção básica no país. E isso é um problema, argumenta Mariana Nogueira. “É claro que não é um modelo perfeito, tem suas contradições, mas ele vem com uma proposta de mudança no modelo de atenção, com um trabalho territorializado de visita domiciliar que tem resultados concretos: na redução da mortalidade materno-infantil, no acompanhamento de pessoas com doenças crônicas, no estímulo à imunização”, enumera. E em seguida completa: “Quando ela passa a ser só mais uma modalidade, um tipo de equipe, isso retira a centralidade deste trabalho multidisciplinar, deste trabalho territorializado, o que coloca em risco todo o avanço obtido por esse modelo nos últimos 18 anos”.


Trabalhadores da saúde sob alerta também em outros estados

Mariana conta que tem viajado para estados do Sudeste e do Nordeste a convite de sindicatos de trabalhadores da saúde para falar sobre os impactos da PNAB e da EC 95. Em várias localidades, diz ela, ouviu relatos de trabalhadores, especialmente de ACS, sobre a piora nas condições de trabalho e ameaças de demissões. “Apesar de o Rio de Janeiro realmente estar com um sucateamento acelerado e avançado na saúde, a questão da fragilização do vínculo dos trabalhadores da atenção básica, no sentido de terem vínculos precários, terceirizados, é muito característico da região Sudeste, o que coloca os trabalhadores em uma situação vulnerável”, pontua.

Em São Paulo, a aprovação da PNAB acelerou um processo de esvaziamento da atenção básica que vem de alguns anos para cá. É o que afirma Rodrigo Rodrigues, presidente do Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde de São Paulo (Sindacs-SP), que representa os agentes de 38 cidades da região metropolitana. Ele estima que desde a aprovação da nova PNAB cerca de 300 ACS foram demitidos na Grande São Paulo. Em algumas cidades, a ameaça de demissão ronda a categoria. Como em Mairiporã, cidade de 90 mil habitantes a 50 quilômetros da capital paulista que, em 2017, registrou o maior número de casos de febre amarela do país, e onde a prefeitura deu, no dia 5 de novembro, aviso prévio a 59 agentes comunitários. A notificação veio em meio a um processo de mudança na lei municipal que rege a contratação dos agentes, aprovada em 2010. Rodrigo conta que sob a justificativa de um apontamento do Tribunal de Contas do Estado, que identificou irregularidades em um edital de contratação de agentes publicado em 2011, a Prefeitura apresentou ao Legislativo municipal, que aprovou, em janeiro de 2018, um projeto de lei para mudar o regime jurídico dos ACS, que passaram a ser estatutários. Embora o vínculo estatutário seja, de uma maneira geral, uma reivindicação da categoria dos ACS no país, o sindicato de São Paulo teme que, no contexto atual, a mudança possa ser utilizada para reduzir o número de agentes em Mairiporã, uma vez que a nova PNAB prevê um número mínimo de agentes por equipe menor do que a política que era vigente quando se deu a contratação dos agentes que hoje cumprem aviso prévio. “O apontamento do Tribunal de Contas não justifica a necessidade de uma nova lei. Não tem nenhum garantia de que serão contratados 100 agentes e nem de quando isso será feito. Eles podem demitir esses 59 ACS e não contratar outros 59 para substituir, porque pela nova PNAB só precisa de um por equipe de Saúde da Família. Eles podem contratar dez e deixar o restante de cadastro de reserva”, alerta Rodrigo, complementando: “Anteriormente a gente tinha um mecanismo de pressão para que fossem contratados no mínimo quatro agentes por equipe. Agora não. Por isso estamos brigando na Justiça para que esses agentes não sejam demitidos”. Segundo ele, vários municípios da região têm se aproveitado das mudanças da PNAB para reduzir o número de agentes de modo a não ter que pagar os 5% do salário desses profissionais que saem do orçamento municipal. “E como não há mais incentivo financeiro direto da União para que os municípios tenham agentes comunitários, muitos deles estão sendo demitidos”, denuncia. Concorre para isso, segundo Rodrigo, o fato de muitos ACS paulistas terem contratos por tempo determinado e outros vínculos precários, ao arrepio da lei 11.350/2006, que regulamentou a profissão de ACS e de Agentes de Combate às Endemias (ACE). A privatização da gestão da atenção básica pelos municípios é outro problema, principalmente em um cenário em que vários municípios passam por crises orçamentárias. Segundo o presidente do Sindacs-SP, o sindicato acompanha de perto hoje o que acontece em Embu das Artes, por exemplo, onde trabalhadores da atenção básica contratados via Organização Social (OS) estão com salários atrasados. “A gente está correndo risco iminente de o contrato de gestão ser interrompido e do dia para a noite 180 agentes comunitários serem demitidos”, aponta Rodrigo.

Em Minas Gerais, os ACS também estão sob alerta diante de possíveis perdas para a categoria no contexto da crise e de aprovação da nova PNAB e da Emenda Constitucional 95. Segundo Lionete Pires, coordenadora da Secretaria de Assuntos do Interior do Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde de Minas Gerais (Sind-Saúde/MG), a grande maioria dos ACS do estado tem contratos por tempo determinado. “A maioria dos municípios não regularizou os vínculos. Temos municípios que até hoje não pagam o piso dos agentes, que não reajustam o salário há quatro anos e que não pagam adicional de insalubridade. Tem prefeitura que se recusa a pagar 13º e conceder férias”, afirma Lionete, para quem a perspectiva é de precarização cada vez maior do trabalho dos agentes no contexto de queda na arrecadação. “Muitos gestores estão utilizando o argumento da falta de recursos para obrigar os ACS e ACE a exercer funções que não são deles. Temos denúncias de lugares em que agentes comunitários, que moram perto das unidades de saúde, têm que limpar a unidade, ou então atuar como vigias, sendo obrigados a ir até a unidade quando o alarme dispara. O abuso e o medo estão cercando esses trabalhadores. Isso se intensificou a partir da revisão da PNAB”, aponta Lionete. Em algumas localidades, diz a dirigente sindical, novas equipes de Saúde da Família que haviam sido aprovadas por conselhos de saúde municipais não foram implementadas. “Em Vespasiano, por exemplo, a secretaria de saúde tem um posicionamento de manter a estratégia de Saúde da Família e montar mais oito equipes, mas a orientação do jurídico da prefeitura é que não implemente, porque a PNAB mudou e não tem mais recurso federal vinculado à implementação das equipes, o que pode impactar o caixa das prefeituras”, diz.

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