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'Decifra-me ou te devoro'

No mês em que se comemora a Semana Nacional de C&T, reportagem discute como, entre a expectativa pelo controle da Covid-19 e o negacionismo que recusa as evidências, a ciência se tornou uma das protagonistas da experiência da pandemia no Brasil e no mundo
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/10/2020 12h32 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Contra o negacionismo científico, manifestação do clima realizada nos EUA em 2017afirma: "Fatos negados ainda são fatos" Foto: Edward Kimmel

Em 2018, 72% da população mundial confiava nos cientistas, enquanto, no Brasil, 35% das pessoas não achavam que a ciência merecia muito crédito. Os dados são do Wellcome Global Monitor, apresentado como “o maior estudo sobre atitudes globais em relação à ciência e à saúde”, que se baseou na análise de 140 mil entrevistas, entre elas mil feitas com brasileiros maiores de 15 anos. Em 2019, de acordo com a Pesquisa sobre Percepção Pública da Ciência & Tecnologia, feita com 2,2 mil pessoas maiores de 16 anos, 15,1% dos entrevistados citaram os cientistas como a fonte de informação que mais lhes inspirava confiança em assuntos importantes – exatamente o mesmo percentual que atingiram os religiosos. Já em abril de 2020, segundo uma sondagem feita pela agência Edelman TrustBarometer com dez mil entrevistas em dez países, 85% das pessoas acreditavam que era preciso ouvir mais os cientistas do que os políticos e, no Brasil, esse número subia para 89%. Uma das principais diferenças é que, nesse último caso, a pergunta se referia especificamente à Covid-19, uma pandemia que, até o momento em que esta reportagem foi finalizada, tinha matado quase 1 milhão de pessoas no mundo, incluindo mais de 130 mil brasileiros.

"A ideia de que a ciência tem o potencial de vencer essa batalha contra o coronavírus, de produzir uma vacina eficiente, é realmente muito importante e talvez tenha levado muitas pessoas a valorizarem mais a ciência e o trabalho científico de maneira geral. Mas eu tenho a impressão de que o outro lado, dos negacionistas, também se fortaleceu"
Marcos de Oliveira

As conclusões que resultam da comparação desses dados, no entanto, não são tão simples quanto podem parecer. Primeiro, porque nesse mesmo universo de brasileiros que apostam majoritariamente na ciência como o caminho de controle da pandemia, 9%, que equivalem a quase 19 milhões de pessoas, afirmam que não tomariam uma possível vacina contra a Covid-19, segundo pesquisa Datafolha realizada em agosto. Outro levantamento feito pelo Ibope no final de agosto deste ano reduz para 5% a quantidade de pessoas que não tomarão a vacina “de jeito nenhum”, mas aponta outros 20% que responderam que “talvez” se imunizem. Dados de outro estudo produzido pela agência Reuters junto com o Instituto Ipsos mostram que, nos Estados Unidos, onde o movimento antivacina ganhou corpo nos últimos anos, 14% não têm nenhum interesse em se vacinar contra o coronavírus, o que se soma a outros 10% que “não estão muito interessados”, além de 11% de indecisos sobre o tema. Seja por razões religiosas, recusa ao discurso de governantes específicos ou simples desconfiança, esse é um entre vários outros exemplos do que se tem chamado de “negacionismo científico” que, contraditoriamente, hoje convive com o aumento da aposta na ciência como principal caminho para dar fim à crise sanitária mundial. “Eu acho que a ideia de que a ciência tem o potencial de vencer essa batalha contra o coronavírus, de produzir uma vacina eficiente, é realmente muito importante e talvez tenha levado muitas pessoas a valorizarem mais a ciência e o trabalho científico de maneira geral. Mas eu tenho a impressão de que o outro lado, dos negacionistas, também se fortaleceu”, alerta Marcos de Oliveira, físico, doutor em filosofia da ciência e professor da Universidade de São Paulo (USP).

O “outro lado”

Recusa do isolamento social como estratégia de contenção do vírus, questionamento sobre o uso de máscaras, defesa de medicamentos como a cloroquina e a ivermectina como tratamento para a Covid-19: de fato, não foram poucos os comportamentos, opiniões e esperanças nutridas durante a pandemia que seguiram na contramão do que dizia o conhecimento científico. O historiador e professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) Gilberto Calil ressalta que parte desse cenário pode ser explicada como uma “reação social e psicológica” a um “contexto de desafio difícil”, que faz as pessoas se sentirem impotentes ao reconhecerem também, de certa forma, os limites da ciência, que, apesar de importante, não tem poder para decretar o fim do sofrimento no tempo que se deseja. Ele lembra, inclusive, que, guardadas todas as diferenças, processo semelhante aconteceu com a fosfoetanolamina, a chamada ‘pílula do câncer’, criada por um professor aposentado da USP, que foi questionada pela comunidade científica por não ter cumprido todas as etapas de testes e comprovado sua eficácia, e, mesmo assim, teve sua liberação aprovada por meio de um Projeto de Lei aprovado no Congresso Nacional. E que voltou a ter sua distribuição proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em resposta a uma ação da Associação Médica Brasileira.

Tomado como um fenômeno social mais amplo, no entanto, o chamado negacionismo tem história e se manifesta para muito além da pandemia e dos problemas relacionados à saúde. De acordo com Gilberto Calil, o “ponto fundador” do que hoje se entende por negacionismo foi o movimento de um conjunto de autores que ocuparam o debate público para recusar a existência das câmaras de gás e de todo o terror produzido pelo Nazismo. “A gente pode tratar de forma análoga o tipo de relação que se constitui em relação à ditadura militar, com aqueles que negam que houve desaparecimentos, tortura e toda a dinâmica configurada do terrorismo de Estado”, completa. Nesse caso, diz, ele se diferencia do “revisionismo”, que busca amenizar os efeitos negativos de determinados fatos históricos, por exemplo, argumentando que, nas ditaduras latino-americanas, ambos os lados – o Estado e os movimentos de oposição - eram igualmente violentos.

Na avaliação do professor da Unioeste, para defender os seus argumentos, o negacionismo articula “teorias da conspiração” com “formas escancaradamente distorcidas de análises de dados” e “conclusões a partir de falas e aspectos muito pontuais” – um método, portanto, que vai na contramão do que se reconhece socialmente como ciência. Em alguns casos, como a dita ‘teoria’ que nega o consenso científico sobre o aquecimento global, é possível identificar relação com interesses econômicos e políticos, segundo Calil. Mas o exemplo mais “generalizado” de negacionismo recente é a crença de que a Terra é plana, que foi tema, inclusive, de uma “Convenção Nacional” realizada em São Paulo no ano passado, embora com protagonismo de youtubers e não de pesquisadores. Essa ‘tendência’ contesta evidências científicas que são indiscutíveis desde pelo menos 1522, quando o navegador Fernão de Magalhães deu a primeira volta ao mundo. Apesar disso, segundo pesquisa Datafolha de julho do ano passado, 7% da população brasileira – mais de 14 milhões de pessoas – duvidam que a Terra seja redonda. “Uma coisa é negar que haja uma mudança climática, que é algo que exige um determinado grau de abstração maior para se perceber. Outra coisa é negar que a Terra seja esférica. Mas [ambas as crenças] estão dentro de uma mesma lógica, que é a perspectiva de negar a realidade”, diz Calil.

De fato, reconhecer que existe uma realidade fora da cabeça do sujeito que pensa, opina e pesquisa é o que define a tal objetividade que a ciência tanto busca. “As coisas são o que são. Elas existem independentemente da forma como a gente as descreve”, resume Mario Duayer, professor aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF). Acontece que lá pelos idos dos anos 1950 e 1960, cada vez mais intelectuais, pesquisadores e pensadores que participavam do debate filosófico e científico da época começaram a colocar isso em dúvida. “Um fator que eu acho que contribuiu para essa época da pós-verdade e do negacionismo que a gente está vivendo foram as concepções pós-modernas, que já há várias décadas questionaram essa ideia de verdade científica e a própria ideia de fato. Elas representaram uma negação de que [essa objetividade era possível] se a ciência procedesse de acordo com regras, com uma metodologia que tem uma certa racionalidade”, opina Marcos de Oliveira, que caracteriza esse ‘movimento’ como um “ceticismo muitas vezes levado ao extremo”. Mario Duayer concorda. “Não penso que o que nós vivemos hoje é resultado de uma mente brilhantíssima da direita, eu penso que foi um fracasso da esquerda em combinação com esse ceticismo pós-moderno, pós-estruturalista, libertário de uma maneira geral”, enumera, afirmando que “essas ideias vão capilarmente descendo e pegando toda a sociedade”. A conclusão, segundo ele, é que, se a objetividade não é possível, a ciência acaba se resumindo a uma “manipulação do mundo”.

Marcados pelo trauma da 2ª Guerra Mundial, aqueles eram tempos de desilusão com o poder destrutivo que alguns resultados do desenvolvimento científico tinham demonstrado. E é exatamente a essa experiência que Marcos Oliveira recorre para argumentar em contrário, a favor da objetividade da ciência. “Certamente a criação, a invenção, a produção da bomba atômica e, mais ainda, o fato de ela ter sido lançada sobre Hiroshima são condenáveis. Agora, a gente não pode negar que a bomba foi eficaz. Ela realmente produziu a destruição e a morte de seres humanos, que eram o seu objetivo”, diz. E completa: “É difícil pensar que a bomba pode ter sido eficaz sem que estivesse baseada em teorias que tivessem algo de verdadeiro”.

Ao contrário da experiência da guerra, no mundo atingido pela pandemia, a ciência tem sido chamada a salvar vidas. E, nesse caso, ainda que percentualmente o comportamento negacionista seja minoritário, ele pode ter consequências sobre o conjunto da população. “A gente está falando de uma parcela absolutamente extrema, radicalizada, mas quando isso atinge 9%, pode ter um impacto. Pensando, por exemplo, em uma vacina que tenha uma eficácia intermediária, não absoluta, ela precisa que o maior percentual possível da população se vacine para ter efetividade. E aí 10% que se recusam já podem ser o suficiente para sabotar uma política pública”, alerta Calil.

Sei que nada sei?

Mas, se negar a ciência é um fenômeno preocupante, o hábito de duvidar e questionar os resultados de pesquisas nas diversas áreas é fundamental para a construção e validade social desse tipo de conhecimento. E como para falar de ciência, mesmo jornalisticamente, também é preciso algum rigor científico, você, leitor, pode começar questionando parte do que leu neste próprio texto que tem em mãos. O professor da USP fez isso: explicando que tem “um certo pé atrás” com algumas pesquisas de opinião, Oliveira colocou uma sombra de dúvida sobre os dados que abrem esta reportagem. O alerta é metodológico: segundo ele, não se pode desconsiderar que fatores como o desejo de agradar o entrevistador e de não parecer inculto, entre outros, podem influenciar as respostas dos entrevistados. Para o pesquisador, essa pode ser uma das explicações possíveis para uma “espécie de contradição” que ele identifica em alguns cenários sobre a relação dos brasileiros com a ciência. Quer um exemplo? Os resultados da versão anterior da Pesquisa de Percepção Social da Ciência e Tecnologia no Brasil, de 2015, apontam que 61% dos entrevistados se declaravam interessados ou muito interessados pelo tema. Apesar disso, 94% não souberam citar o nome de um único cientista brasileiro. “Eu tenho uma certa dúvida sobre o caráter realmente informativo dessas pesquisas”, resume, elogiando que, no caso específico desse estudo, o alerta está feito no relatório que apresenta os dados.

Edward KimmelMas se todo conhecimento científico pode ser posto em questão, por que deveríamos confiar mais na ciência do que em outros tipos de saberes, como o religioso e o senso comum, por exemplo? Esse parece o centro do debate sobre o que caracteriza a ciência e os seus limites. E, exatamente por isso, é aconselhável cautela. Primeiro, porque submeter os resultados de pesquisas ao debate e à crítica científica não é o mesmo que cultivar o negacionismo. Segundo, porque a busca do conhecimento objetivo do mundo é uma característica da ciência, mas sempre aproximativa e processual. “Nas diferentes áreas de conhecimento, há procedimentos, metodologias, há um conjunto de formas de produção e demonstração do conhecimento que garantem uma certa objetividade, o que significa que nem todos os discursos são equivalentes”, explica Gilberto Calil. Ele reconhece, no entanto, que “o processo de produção de conhecimento não é totalmente desvinculado de interesses” e exemplifica com a motivação dos laboratórios privados na busca de uma vacina para a Covid-19. E como se resolve esse dilema? “É claro que há interesses econômicos, é claro que há outros aspectos, mas me parece que a partir da explicitação da metodologia, da elucidação dos procedimentos, é possível ter um certo patamar de objetividade, que é o que caracteriza a ciência”, conclui. Mario Duayer concorda: “Não existe um cientista fora do mundo. Mas o fato de o nosso conhecimento ser motivado por interesses não retira sua possibilidade de ser objetivo. Não existe nenhum ponto de vista fora. Portanto, nós só conhecemos através da crítica recíproca às descrições. É só assim que se garante a objetividade do nosso conhecimento”.

Na mesma direção, Marcos Oliveira recorre ao “pai da sociologia da ciência”, o norte-americano Robert Merton, que teve alguns dos seus principais estudos publicizados na década de 1930, para explicar o que lhe parece a principal saída desse ‘impasse’: a convicção de que o conhecimento científico deve ser, necessariamente, público. “Faz parte dos princípios éticos da prática científica que o cientista tem que divulgar, tem que expor os resultados de suas pesquisas”, diz. E completa: “[A ciência] é um conhecimento criado coletivamente. Não faz muito sentido a ideia de um cientista trabalhando de maneira totalmente isolada. E, dessa forma, a gente pode contrabalançar desvios produzidos por ideologias particulares de cada cientista”.

“Muitas das previsões são feitas no momento em que a informação é muito parcial e, portanto, têm que ser revistas. A revisão constante é característica do conhecimento científico”
Gilberto Calil

A secretária regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Rio de Janeiro, Lígia Bahia, conta que, agora, no contexto da pandemia, esse processo de troca entre cientistas foi particularmente rico, com a participação de muitos grupos, num verdadeiro esforço de cooperação mundial. Ao mesmo tempo, diz, está sendo muito desafiador. “É uma mudança enorme. Muitas publicações em preprint [divulgação antecipada, antes dos trâmites para publicação em periódico científico], todos os artigos em inglês, mas escritos por chineses. Onde a gente já tinha visto isso?”, descreve, referindo-se, principalmente, ao início da crise sanitária. O problema, na opinião de Lígia, é que essa troca de informações, que muitas vezes se dá em etapas intermediárias das pesquisas, acabou extrapolando o universo científico, fazendo com que alguns resultados parciais fossem divulgados para o público em geral como se fossem conclusões acabadas. “[Descrições de] etapas preliminares [de pesquisa] têm que circular, mas em um âmbito mais restrito. Não é segredo, mas a grande divulgação como se fosse uma descoberta é um problema”, opina, explicando que isso pode levar à insegurança sobre os resultados, em função das mudanças, que, no entanto, são parte esperada do processo de construção desse tipo de conhecimento. “Muitas das previsões são feitas no momento em que a informação é muito parcial e, portanto, têm que ser revistas. A revisão constante é característica do conhecimento científico”, reforça Gilberto Calil. 

Diferente do que se dá no processo que Oliveira chama de “ciência curiosa”, mais identificado com a ciência básica, a pandemia depositou sobre toda a comunidade científica uma forte e compreensível “pressão por resultados”. “Cria-se aí uma tensão que é difícil resolver simplesmente por um princípio abstrato. A urgência na busca de resultados não pode ser condenada, não se pode condenar alguém por querer uma vacina tão rápido quanto possível. Isso é um interesse perfeitamente legítimo. Agora, ele tem que ser contrabalançado com as normas, com as regras metodológicas que buscam preservar a objetividade. E, nesse caso, a preservação da objetividade é fundamental porque um equívoco nesse domínio pode ter consequências práticas muito drásticas”, alerta.

Tudo isso, portanto, parece reforçar o princípio do debate público como caminho para a objetividade da ciência. Oliveira resume: “Os cientistas podem ter diferentes posições políticas, diferentes crenças religiosas e por aí adiante. Mas essas preferências não devem interferir na objetividade”. E aqui, novamente, não faltam exemplos na pandemia: para Gilberto Calil, se a defesa da cloroquina marcou, à direita, a polarização política de um debate que deveria ser científico, posicionamentos sobre o registro da vacina produzida na Rússia exemplificaram comportamento semelhante à esquerda. “Construiu-se um debate ideologizado ao extremo em relação à vacina russa. Há, no campo da esquerda, um discurso que indica que ela está pronta e só não se usa porque há interesses. Aí a gente precisa mediar com a objetividade [garantida pela] democratização pública de informações. E, até onde se sabe, não foi feita a fase três [dos testes], que é o básico da pesquisa de uma vacina. Pode-se até dizer que ela é promissora, mas registrar como pronta, não”, ilustra. A boa notícia é que, embora essas ‘disputas’ tenham ocupado o espaço das redes sociais e o discurso de alguns políticos e personalidades públicas, em ambos os casos esse espírito de torcida foi recusado majoritariamente pela comunidade científica.

“Nós estamos formando profissionais de saúde sem base científica sólida"
Lígia Bahia

Mas, para a representante da SBPC, no caso específico do Brasil, o fato de não ter se dado em “uníssono” fez com que essa resposta da comunidade científica deixasse a desejar. Embora muitas entidades científicas e mesmo sociedades médicas tenham se posicionado contra o uso da cloroquina após a Organização Mundial de Saúde (OMS) suspender os estudos sobre o fármaco, concluindo pela sua ineficácia no tratamento da Covid-19, a pesquisadora ressalta como uma derrota da ciência o fato de muitos médicos brasileiros, inclusive alguns famosos, terem defendido e declarado que estavam usando esse medicamento. “Que ciência é essa?”, questiona Lígia. Além de comportamentos isolados, mesmo após as novas orientações da OMS sobre o tema, o Conselho Federal de Medicina (CFM) manteve um parecer produzido em abril, que afirmava a falta de comprovação científica do medicamento ao mesmo tempo em que autorizava a recomendação médica inclusive em pacientes leves com diagnóstico confirmado.

Educação Científica

Para a representante da SBPC, que também é médica sanitarista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esse cenário alerta para um problema que vai muito além da pandemia. “Nós estamos formando profissionais de saúde sem base científica sólida. Esses profissionais não tiveram bolsa de iniciação científica, não puderam frequentar os laboratórios, não tiveram contato com a ciência básica. E, de fato, a maioria dos profissionais de saúde hoje se forma em faculdades privadas, que não fornecem nenhuma base científica”, alerta e completa, referindo-se principalmente aos médicos, que somam quase 500 mil profissionais na ativa no Brasil, segundo dados do site do CFM: “Eles não são os produtores, mas são os grandes usuários e divulgadores do conhecimento científico. E os médicos são confiáveis para a população”. De fato, de acordo com a última pesquisa sobre percepção pública da C&T, de 2019, são exatamente os médicos as fontes de informação em que os entrevistados mais confiam: 49% contra 34% que citaram os cientistas.

“Diante de um contexto em que a produção do conhecimento científico é posta em xeque, é preciso ressaltar o impacto da formação científica na trajetória de jovens já na educação básica”
Cristiane Braga

Acervo pessoalNo centro do debate, está, então, o grau de conhecimento da população – e dos profissionais de saúde, em especial – sobre o que é e como se produz ciência. “Eu acho que mais importante do que confiar na ciência seria ter uma compreensão míni ma do processo de construção desse conhecimento e suas características. Porque aí não seria uma questão de confiança no sentido próximo ao de ter fé, seria uma questão de acompanhamento crítico, que necessariamente colocaria as pessoas como menos vulneráveis”, alerta Gilberto Calil. Segundo o último Wellcome Global Monitor, inclusive, as duas coisas estão diretamente relacionadas: ter estudado ciência na escola ou na faculdade tem um peso importante na confiança que se deposita sobre essa prática. Talvez por isso mesmo, esse conhecimento sobre o fazer científico seja muito desigual ao longo do globo. “Os conceitos básicos de ‘ciência’ e ‘cientistas’ não são universalmente entendidos em todos os países, mesmo em nações de alta renda. Na África, por exemplo, 32% disseram que não entenderam nenhuma das definições apresentadas a eles ou responderam que não sabiam. Na América do Norte e na maioria da Europa, esse número cai para 2%”, detalha o relatório do estudo. “Com o crescimento avassalador do conhecimento científico e a multiplicação de suas interfaces com a sociedade, cada vez mais se faz necessário desenvolver estratégias que visem à educação científica da população”, defende Cristiane Braga, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

Não por acaso, esse é o principal objetivo do Programa de Vocação Científica (Provoc), desenvolvido pela EPSJV/Fiocruz e coordenado por ela. Pioneiro no desenvolvimento da iniciação científica na educação básica, desde 1986 o Programa coloca estudantes do ensino médio de escolas públicas e privadas em contato com cientistas das mais diversas áreas, para aprenderem e vivenciarem, com o devido acompanhamento, todas as etapas de uma pesquisa. “O Provoc não visa apenas formar futuros cientistas, quer também formar indivíduos capazes de lidar de forma madura com o conhecimento científico, através da valorização desta experiência, fazendo com que os assuntos científicos sejam cuidadosamente apresentados, discutidos, compreendidos e aplicados para o entendimento do mundo”, explica. E conclui: “Diante de um contexto em que a produção do conhecimento científico é posta em xeque, é preciso ressaltar o impacto da formação científica na trajetória de jovens já na educação básica”.

Ao mesmo tempo, Cristiane alerta sobre o risco de uma possível “postura ingênua em relação ao papel da ciência”. “Educar para a ciência não significa apenas ensinar a compreender quando falamos de ciência ou divulgar a última novidade saída dos laboratórios, mas também ajudar a pensar cientificamente, interpretar as implicações dos avanços da ciência e tecnologia, através da democratização do acesso ao conhecimento científico e tecnológico, incentivando o interesse pela ciência e pelas relações entre os conceitos científicos e a vida”, resume.