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Democratização para além do acesso

Terceiro eixo da conferência discute acesso, permanência e sucesso escolar
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 10/10/2009 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

O termo ‘democratização da educação’ remete quase sempre à idéia de garantia de acesso. Nesse sentido, o Brasil comemora há alguns anos a quase completa universalização do ensino fundamental – as últimas pesquisas mostram uma taxa de escolarização de crianças entre 6 e 14 anos que vem se firmando em torno de 97%. Apesar disso, hoje, cerca de 10% dos brasileiros maiores de 15 anos são analfabetos, enquanto em outros países da América Latina, como Uruguai, Argentina e Chile, essa taxa não chega a 4%. Também nessa faixa etária, 21 em cada 100 brasileiros completaram menos de quatro anos de estudos e são considerados analfabetos funcionais. Já os maiores de 25 anos têm, em média, apenas sete anos de estudo.



Dados como esses, apresentados pela última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), mostram que a educação formal no país ainda está longe de ser para todos. É bem verdade que já foi pior: no início do século passado, em 1900, as estatísticas populacionais mostravam que quase 75% dos brasileiros não sabiam ler e escrever. Décadas depois os indicadores continuavam bastante ruins e, em 1960, pouco menos da metade dos que tinham mais de 15 anos eram alfabetizados.



Na Conferência Nacional de Educação (Conae), o acesso será discutido como uma das faces da democratização da educação, mas não a única: de acordo com seu documento-referência, é preciso também avaliar o fluxo escolar e a apreensão de conteúdos pelos alunos. Por isso, ‘Democratização do acesso, permanência e sucesso escolar’ é o tema do terceiro eixo da Conae.





Sucesso e fracasso



Segundo Romualdo Portela, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), aquilo que se está chamando ‘sucesso escolar’ tem duas dimensões: “A primeira diz respeito ao tempo que um aluno permanece no sistema sem concluir a etapa correspondente. Se alguém passa oito anos no ensino médio e não conclui essa etapa, isso significa que se trabalhou durante oito anos e não houve progresso”, diz, explicando que as múltiplas reprovações, muitas vezes, acabam por levar à evasão dos alunos – nesse caso, pode-se dizer que não houve sucesso no sistema. Isso explica a defasagem série-escola, que ainda é muito grande. De acordo com o IBGE, em 2008, 82,1% dos brasileiros entre 15 e 17 anos – idade correspondente aos anos do ensino médio – estavam na escola. Isso poderia sugerir uma boa taxa de atendimento nessa etapa do ensino, mas outro dado desfaz essa ideia: apenas 42% dos jovens dessa faixa etária estavam, de fato, no ensino médio, o que significa que mais da metade estudava fora da etapa adequada à idade.



A outra dimensão do sucesso, de acordo com Romualdo, refere-se à apreensão do conteúdo, propriamente. “Se um aluno conclui o ensino fundamental no tempo correto, mas não incorpora os conhecimentos previstos – ou seja, não aprende –, isso também configura uma situação de fracasso escolar”, afirma o professor. Ele diz que o centro das discussões varia de acordo com as etapas do ensino e o patamar que elas alcançaram. “No caso da educação infantil, do ensino médio e do superior ainda há problemas sérios de acesso. Por outro lado, no caso do ensino fundamental, o debate já não é mais sobre o acesso – está relacionado ao progresso no interior do sistema e à conclusão. Depois disso garantido, começa a discussão sobre o aprendizado em si”, pontua.



Os programas de proibição de reprovação (conhecidos como aprovação automática), de acordo com ele, estão ligados a essa segunda preocupação, agindo sobre a correção do fluxo escolar e atuando naquela primeira dimensão do sucesso. “E ela é, a meu ver, condição para a segunda. Quando simplesmente se reprova, existe uma culpabilização da vítima, como se o problema fosse do aluno. Quando se proíbe a reprovação, faz-se também uma transferência dos problemas para a escola, que tem a responsabilidade de garantir que a criança aprenda os conteúdos”, diz.



Para o professor Dante Henrique Moura, do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN),  considerar e resolver a questão por etapas é um problema. “A lógica que vem prevalecendo é essa: primeiro, amplia-se o acesso. Depois, pela ideia de que é obrigatório aprovar, os estudantes são promovidos ano a ano, concluem uma determinada etapa e recebem um certificado – mas o certificado é vazio de sentido, porque nem sempre eles de fato aprenderam. É preciso pensar no processo como um todo – ou seja, incidir diretamente sobre os aspectos que estão provocando a não-aprendizagem”, defende.



Ele acredita que o principal desses aspectos é fato de que a escola não é pensada para as classes populares. “Até os anos 1970, a escola pública era uma referência de qualidade, mas para poucos. Houve um movimento importante de abri-la para as classes populares, mas a abertura não veio com uma reorganização da escola em função dessa mudança. Os projetos político-pedagógicos continuam voltados para a realidade de elites, enquanto famílias mais pobres muitas vezes têm condições socioeconômicas que tornam até mesmo difícil manter a criança na escola. Os pais, muitas vezes, não tiveram acesso à educação escolar e têm dificuldades em orientar os filhos em casa. E a escola precisava ser pensada para esse tipo de situação, mas em geral não está preparada para isso”, observa.





Um novo perfil para o ensino médio



Dante acredita que uma grande falha do ensino médio, como vem sendo visto e trabalhado, é sua desarticulação com o “mundo do trabalho”, lembrando que 80% da população vive e trabalha com esse nível de escolarização. “O grande problema é a falta de sentido que o ensino médio tem para a grande maioria dos brasileiros. De modo geral, ele apenas discute o conhecimento das letras, das ciências e das artes como parâmetros de entrada para o ensino superior, sem articulá-los ao mundo do trabalho. Só que apenas 20% dos que concluem essa etapa ingressam no ensino superior. A grande maioria conclui o ensino médio e vai trabalhar sem uma formação que lhe permita uma reflexão sobre o trabalho e uma inserção em atividades mais complexas”, aponta.



Por isso, ele defende a ampliação do ensino médio integrado a cursos técnicos – uma proposta que também está presente no documento-referência da Conae como uma das bases para a democratização da educação. “É preciso oferecer todos os conhecimentos do ensino tradicional, mas sob a perspectiva de formar o ser humano em todas as dimensões, integrando trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Dessa forma, o ensino médio ganha um novo sentido para os alunos, que, ao concluírem essa etapa, têm condições tanto de prosseguirem os estudos como também de trabalhar em atividades complexas de nível médio”, diz.



O plano de expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, que desde 2005 vem sendo colocado em prática pelo governo federal, vai ao encontro dessa perspectiva. No entanto, para Dante, a função social da rede, que deveria estar no centro dos debates, vem sendo pouco discutida. “Apesar de essa expansão ser um processo importante para a sociedade, a concepção de ensino médio integrado não tem prevalecido nas discussões. Em vez disso, o foco tem sido nas questões administrativas e organizacionais, como a constituição das instituições e a transformação de diretorias em pró-reitorias, por exemplo”.



Acesso ao ensino superior



“É inevitável: na medida em que se melhora o fluxo escolar na educação básica, um percentual maior de alunos conclui o ensino médio e a demanda por ensino superior aumenta. E nossas políticas públicas não têm conseguido expandir o sistema o suficiente”, aponta Romualdo Portela. Hoje, De fato, a grande expansão do ensino superior tem sido feita justamente a partir da iniciativa privada – segundo Dante Moura, enquanto na educação básica as matrículas em instituições públicas representam quase 90% do total, no ensino superior a situação se inverte: hoje, há cerca 5 milhões de matrículas nessa etapa do ensino, sendo 75% na iniciativa privada e apenas 25% na rede pública.



Existem esforços para a construção de universidades públicas e para a expansão das já existentes, pela Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). No entanto, uma das maiores – e mais criticadas – ações do governo no sentido de ampliar o acesso é o Programa Universidade para Todos (ProUni), que concede vagas em instituições particulares para alunos de baixa renda, mediante a isenção de tributos por parte dessas instituições. De acordo com Dante Moura, o primeiro grande problema do programa é que ele parte da existência de uma capacidade instalada e não ocupada na iniciativa privada, o que gera um desconforto para os empresários. “A educação superior foi vista como um grande mercado, investimentos foram feitos, mas nem todas as vagas são ocupadas, o que gera dívidas. A pressão da sociedade por acesso ao ensino superior e esse quadro de capacidade não ocupada tiveram como resposta do governo a criação um incentivo ao acesso das classes populares via setor privado”, diz.



Para Dante, além dessa questão, também merece destaque a dimensão da qualidade nessas instituições. “Embora haja escolas privadas de qualidade, os dados gerais de avaliação mostram que as públicas em geral são melhores. Se o mecanismo para que as classes populares ingressem no ensino superior é a sua entrada em instituições privadas, isso significa que se está garantindo o ingresso em escolas de pior qualidade, o que consolida a lógica de uma educação pobre para os pobres. Isso precisa ser enfrentado”, avalia.