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Desafios para a nova gestão

Especialistas de saúde, educação e financiamento público apontam nessa rodada de perguntas quais os principais problemas que os gestores municipais devem encarar na nova legislatura, de 2021 a 2024
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 06/01/2021 10h03 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Os novos gestores de saúde e educação que assumiram a administração de seus municípios em janeiro de 2021 encontraram mais dificuldades que os seus antecessores, apontam os especialistas. No total, 5449 prefeitos foram eleitos no ano passado, dos quais 963 farão um segundo mandato. O cenário está posto. Desafios antigos e novos se juntarão na administração dos municípios. Filas de cirurgias eletivas, falta de materiais, equipes adoecidas, corrida pela vacina, aulas remotas e novas estruturas de sala de aula são algumas das questões que os novos gestores terão que enfrentar, de acordo com seis especialistas em saúde, educação e financiamento dessas políticas ouvidos pela reportagem. E tudo isso vai acontecer com os cofres mais vazios do que em 2020, já que, conforme previsto na lei 173/2020 e disponibilizado no orçamento de 2021, os municípios, assim como estados e Distrito Federal, deixarão de receber o auxílio emergencial pago pela União em função do contexto da pandemia.

 

 

 

Quais os principais desafios dos gestores municipais de saúde para a nova gestão 2021-2024?
 

 

Médico sanitarista e professor da Universidade de Campinas

Duas posturas dos prefeitos e dos secretários de saúde municipais são fundamentais. Uma é a defesa do fortalecimento do SUS [Sistema Único de Saúde]. E a segunda é que eles funcionem como agentes políticos dessa defesa. O município isolado, sozinho, não conseguirá garantir o direito universal, integral e equitativo à saúde.  [Devem], inclusive, agir através do Conasems [Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde] e construir os colegiados regionais para garantir o devido apoio financeiro, logístico e na política de pessoal das secretarias estaduais e do Ministério da Saúde. E, por fim, acrescento ainda que busquem uma comunicação transparente com a sociedade civil, com os usuários [do SUS]. Comunicação transparente significa reconhecer os problemas que têm, apontar as vantagens e o que funciona bem, e contar com o apoio político da sociedade.

Agora, em relação aos procedimentos, a primeira ação é o combate à pandemia. Os novos gestores têm tarefas importantes. Uma é cobrar ação do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais e também realizar o que está evidente: garantir a vacinação imediata de, no mínimo, 80% da população o mais rápido possível. Os secretários de saúde precisam participar dessa negociação difícil. Além disso, todos os municípios precisam fortalecer a atenção primária, a Estratégia de Saúde da Família e defender os Nasf [Núcleos Ampliados de Saúde da Família]. Na portaria do Programa Previne Brasil [n° 2.979/19], o Ministério da Saúde se isentou de financiar os Nasf e ficou por conta dos prefeitos fecharem os quase 7 mil que existem no Brasil. Cabe a eles e aos estados manterem [esse núcleos] com orçamento próprio, o que é muito difícil.

E outro desafio é imediatamente envolver a atenção primária na vigilância epidemiológica comunitária e territorial, que é tão importante quanto a vacina. Os casos novos que vão aparecendo precisam ser diagnosticados rapidamente. Cada unidade básica, cada equipe tem que ter acesso ao teste. O resultado precisa sair em 48 horas, em três dias no máximo, para fazer o rastreamento dos comunicantes e o bloqueio. A meu ver, é necessário ainda que se faça um programa ao longo do mandato, de estender a atenção primária para atender os problemas crônicos, continuar com vacinaçőes de tudo que for prevenível, fazendo um trabalho territorial. Além da pandemia de Covid-19, é importante a gente enfrentar a dengue, chikungunya, a violência, a violência doméstica, os traumas do assassinato, ou seja, [continuar] esses programas de promoçăo à saúde e vigilância. Todas as cidades estão sofrendo com isso.

E a outra coisa é o seguinte: os municípios precisam ter um sistema de gestão que combine a valorização dos trabalhadores de saúde com a responsabilização sanitária. A pandemia mostrou que nem equipamento de proteção individual (EPI) a gente tem. Mesmo passando a pandemia, os profissionais de saúde precisam de EPI para entrar na casa dos outros paramentados, para fazer atendimento, para proteger a si próprio e ao usuário. Precisam chamar os estados e o Ministério da Saúde e construir políticas de pessoal integradas. Tem que ter uma política de pessoal para atenção primária, e não só repasse de recursos para o município por cada equipe, população cadastrada ou seja lá o que for. É preciso que o Ministério da Saúde e a secretaria de estado se envolvam, que a gente tenha políticas de pessoal do SUS, com contribuição orçamentária para seleção de pessoal e capacitação dos três entes federados.

E eu faço um apelo aos prefeitos: que não importem para a área da saúde modelos de gestăo que funcionam quando se tem uma linha de produção de fast-food. Na saúde a gestão que funciona é aquela que responsabiliza as equipes, os profissionais dos hospitais etc. não por procedimentos, não por produtividade, mas por uma população e pelos problemas de saúde. Ou seja, é preciso cobrar a responsabilidade sanitária, é preciso cobrar envolvimento, mas limitar a burocratizaçăo e o gerencialismo, que só aumentam o sofrimento dos profissionais de saúde e não melhoram a qualidade nem a humanização do atendimento.
 

Secretário executivo do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems)

Disparado, o problema mais grave do SUS é o subfinanciamento. Nós temos R$ 3,79 por habitante/dia para fazer tudo que está garantido no texto constitucional. E ainda, este ano, com o cenário todo da pandemia. Nos 30 anos do SUS, o governo federal aplicou 1,5% do PIB [Produto Interno Bruto] em saúde, os municípios brasileiros têm colocado cada vez mais recursos na saúde porque a judicialização é muito forte e acontece lá na ponta, onde o prefeito está, onde os órgãos de controle sabem como encontrar o secretário de saúde.

Em seguida, tem a questão dos recursos humanos. Faltam, em várias partes do país, profissionais médicos para dar atenção básica à saúde para os brasileiros. Outro grande problema é com relação aos vazios assistenciais em serviços como, por exemplo, oncologia, cirurgias de média e alta complexidade, ortopedia, uma série de outros procedimentos que nós não temos em todos os municípios. São barreiras que os municípios enfrentam no seu dia a dia, que estão além da pandemia.

Mas o segundo grande problema do SUS é a rotatividade na gestão. Em 2021, a gente espera que haja mais ou menos 4 mil novos secretários de saúde. Esses gestores vão chegar no meio de um cenário de pandemia, em meio ao desafio de imunizar toda a sua população num cenário em que não se têm ainda vacinas disponíveis e se inicia uma distribuição de vacinas ainda muito aquém da necessidade da população. E isso com um orçamento do Ministério da Saúde igual aos dos anos anteriores, sem o orçamento de guerra que nós tivemos em 2020. Temos todo um cenário novo, com um déficit de 1,1 bilhão de procedimentos ambulatoriais e hospitalares que deixaram de ser realizados em 2020. Eu, que sou gestor nos últimos 30 anos, posso dizer que será um ano tão difícil quanto foi 2020. Então, as perspectivas não são boas.

Para isso, o Conasems vai lançar ao longo do primeiro trimestre algumas estratégias para apoiar esses gestores, tanto os que vão se manter na gestão quanto os novos.  Entre elas, tem a elaboração de um manual de apoio à gestão, que ele edita a cada dois anos, e que vamos transformar num processo de educação. Há muitas questőes a debater com novos gestores, que envolve o cenário pandêmico mas o que tínhamos antes dele também.

 

 

 

 

Quais os principais desafios dos gestores municipais de educação para a nova gestão 2021-2024?

 

Doutora em educação e professora da Universidade Federal do Paraná

Por um lado, as gestőes municipais contarão com um novo cenário de financiamento da educação devido à aprovação da Emenda Constitucional 108, que torna o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação] permanente. Por outro, são gestőes que começam no meio de uma grave crise econômica aprofundada tanto pela austeridade fiscal quanto pelo contexto da pandemia de Covid-19. A aprovação do Fundeb permanente implica uma complexidade maior na execução dos recursos para a educação, pois a ampliação da complementação da União ao Fundo passará a ser de 23%. E agora municípios que estão em estados que não tinham complementação poderão passar a receber. A definição do Custo Aluno-Qualidade [CAQ] também pode vir a ser um elemento de ampliação de recursos para os municípios pobres. A vigência do Fundeb permanente em 1º de janeiro de 2021 exigirá atenção dos gestores para que esses elementos permitam organizar as redes para avançarem na oferta educacional.

O avanço na qualidade da oferta tem pelo menos duas implicaçőes. Uma é a ampliação das redes municipais de forma a assegurar vagas, especialmente para a educação infantil na qual ainda convivemos com listas de espera sem qualquer perspectiva de atendimento. A obrigatoriedade da oferta de educação a partir dos quatro anos ainda não assegurou que todas as crianças estejam matriculadas, portanto a garantia de pré-escola – etapa da educação infantil para crianças de quatro e cinco anos - continua na agenda de muitos municípios. Porém, é urgente a expansão da oferta de educação na etapa da creche – para crianças de zero a três anos. Do ponto de vista da oferta, as gestőes municipais tęm o grande desafio de avançar na quantidade.

A segunda grande questão é a valorização dos trabalhadores de educação, especialmente do magistério. O cenário de austeridade mais uma vez tem significado congelamento de carreiras em muitos municípios e descumprimento das condiçőes definidas nas carreiras em outros. É de extrema importância respeitar quem educa e parte desse compromisso depende das condiçőes de remuneração e cumprimento do Piso Salarial Profissional. Em um cenário de crise, os prefeitos não podem tomar o caminho mais fácil de cortes de direitos, é preciso que o compromisso com a educação seja expresso na manutenção das condiçőes de oferta.

Aliado a esses elementos, os gestores têm como tarefa imprescindível cumprir os termos dos Planos Municipais de Educação, que têm metas e estratégias que devem expressar as demandas locais. Cabe aos gestores eleitos em 2020 cumprirem a lei local, portanto, pensarem o Plano Plurianual (PPA) que será elaborado no primeiro ano de gestão, incorporando as demandas do PME.

Finalmente, os gestores municipais precisam contribuir para que superemos as rachaduras que nossa democracia vive deste 2016. A ausência de diálogo é um grande dilema que amplia a violência em diferentes formas. Gestão democrática da educação pública, diálogo e respeito aos trabalhadores e garantia de direitos a crianças, jovens e adultos são compromissos indispensáveis para quem assume o cargo de prefeito nas cidades, mas também para todos os vereadores que terão a tarefa de fiscalizar e legislar nos milhares de municípios brasileiros.

 Presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime)

É preciso categorizar os desafios. Há aqueles de caráter político-administrativos porque, com o fim de uma gestão e início de outra, e a chegada de novos dirigentes sem experięncia na gestão, eles precisam se inteirar, ter informaçőes sobre estrutura, funcionamento etc. Nesse sentido, a Undime tem o ‘Guia dos 100 dias’, um documento de referência para nortear esse trabalho de formação básica dos gestores. E temos um desafio sanitário, que é a preparação da estrutura das escolas para receber os alunos no processo de retomada. É importante, primeiro, garantir que todos os municípios tenham protocolos e que as escolas estejam prontas para esse início quando ele for possível. Essa adaptação da rede escolar também está colocada. Dentro desse contexto nós temos os desafios ainda da questão financeira. A perspectiva de queda do valor aluno/ano do Fundeb para o ano que vem vai gerar um impacto bastante forte. Vai ter que reprogramar o orçamento, inclusive aqueles que foram enviados para as câmaras.

E temos ainda os desafios pedagógicos, que são a compreensão do que foi possível ser feito até agora e a construção de uma estratégia de trabalho que permita olhar para trás e ofertar em 2021 aquilo que não foi possível ser desenvolvido em 2020. De que forma isso é possível? Sobretudo por meio da construção de projetos complementares. Nós sabemos que simplesmente utilizando a estrutura de horário que existe, isso não será possível. Então, vai ser necessário usar períodos complementares, novas metodologias, ensino híbrido e tantas outras questőes para se garantir que não vai ficar nenhum direito de aprendizagem sem ser ofertado ao aluno.

Antes mesmo do cenário pandêmico, os desafios postos já eram grandes, porque precisamos superar a questão das dificuldades financeiras e a correção do Plano Municipal de Educação, do Plano Nacional de Educação. Por exemplo, a questão da educaçâo infantil é um desafio para muitas redes. E, falando sobre a educação dos anos iniciais, nós sabemos que só com atividade presencial não vai ser possível realizá-la. E a gente tem metodologias que permitem fazer um trabalho misto de atividades. Sobretudo quando voltarem as aulas presenciais, a gente tem condição de desenvolver ensino híbrido, que exige um acompanhamento, orientação, um monitoramento do professor e das atividades a serem desenvolvidas em outros espaços. A grande expectativa agora é que a gente possa começar a qualificação de professores e funcionários para o desenvolvimento dessa metodologia. Para isso, é preciso financiamento. E como eu disse anteriormente, nós temos uma queda em torno de 8% do valor aluno/ano em função da queda do movimento econômico. Nós temos dito isso reiteradamente. A Undime tem dito da importância de o Ministério da Educação buscar instrumentos para sanar essa lacuna. O orçamento atual não permite esse tipo de ação, infelizmente.


 

 


Qual o principal desafio que os gestores municipais enfrentarão na gestão 2021-2024 em relação ao financiamento da educação pública?


Professor da Universidade de São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação de Ribeirão Preto (SP)

Dentre seus muitos efeitos, a pandemia de coronavírus que nos atingiu mostrou que a pobreza no Brasil é bem maior do que se pensava e que nossa escola, como o rei da história, estava nua. Ela deixou à vista problemas crônicos do nosso sistema escolar de educação básica, em particular, o atraso tecnológico, a falta de recursos e suporte aos professores e a grande dificuldade da equipe escolar em estabelecer relaçőes significativas com as famílias. Embora clame por participação familiar, boa parte dos gestores entende essa participação como mero alinhamento com diretrizes escolares que, muitas vezes, representam restriçőes do direito a uma educação de qualidade, tais como: exigência de uniformes; pagamento de taxas de APM [Associação de Pais e Mestres], ‘direito’ de reprovar os estudantes, estabelecer códigos disciplinares sem a participação dos interessados e que fazem pouco ou nenhum sentido para os estudantes.

O primeiro desafio pós-pandemia: as crianças e jovens devem encontrar uma escola diferente, mais atrativa e receptiva, que ensine coisas que façam sentido para a vida da comunidade onde está inserida. O segundo é que a escola precisa entrar no mundo virtual, deixar de brigar com os celulares de seus alunos, incorporando-os ao cotidiano das salas de aula e das atividades escolares. Mas para isso é preciso garantir a universalização do acesso à rede mundial de comunicação. As experiências de ensino remoto em meio à pandemia mostraram as lacunas nas regiőes urbanas mais pobres e periféricas, assim como na zona rural.  Enquanto isso, o FUST [Fundo de Universalizaçăo dos Serviços de Telecomunicaçőes], com R$ 22 bilhőes em caixa, teve uma execuçăo de apenas 0,002% desde sua criação. Há um projeto [PL 172/2020] aprovado no Senado que busca mudar essa triste sina.

Outro desafio é garantir condiçőes adequadas de higiene e saúde, reduzindo o número de alunos por turma. Essa medida implica significativo esforço financeiro por parte das prefeituras, seja na contratação de novos professores, seja na ampliação do espaço físico. Esse esforço será acentuado frente à nova demanda de crianças e jovens vindos da rede privada de ensino em virtude das restriçőes econômicas sofridas por suas famílias. Essa demanda adicional de recursos ocorre exatamente em um momento de queda dos recursos do Fundeb, principal fonte de recursos para a educação para boa parte dos municípios brasileiros. Em 2017, para metade dos municípios, o Fundeb representava 71% do total de recursos educacionais; 91% para 5% do total. Como a principal fonte do Fundeb, o ICMS [Imposto sobre Circulaçăo de Mercadorias e Serviços], depende diretamente da atividade econômica, é fundamental a recuperação da economia no ano de 2021 sendo, para tanto, imprescindível a manutenção de programas de transferência de renda à população mais pobre.

O governo federal tem um papel central nesse apoio aos municípios nos próximos quatro anos. A ampliação do complemento da União [no Fundeb], de 10% para 23%, também vai beneficiar muitos municípios de menor receita em todos os estados da federação. Contudo essa ampliação será em doses homeopáticas, só atingindo o valor final em 2026.

Finalmente, é fundamental que os prefeitos eleitos e seus respectivos secretários tenham como norte para sua atuação o respectivo Plano Municipal de Educação e fujam das propostas miraculosas para a educação, tão ao gosto das ONGs ligadas ao setor empresarial e das consultorias privadas e implementem uma política de Estado, em sintonia com o Conselho Municipal de Educação. Aprendemos com a pandemia que a escola precisa ser mais próxima de sua comunidade e mais bonita e atraente para seus estudantes.


Qual o principal desafio que os gestores municipais enfrentarão na gestão 2021-2024 em relação ao financiamento da saúde pública?


Economista e consultor da Comissão de Financiamento e Orçamento do Conselho Nacional da Saúde

Eu entendo que nós estamos vivendo uma grave crise econômica no Brasil, que não é de responsabilidade exclusiva da pandemia. Quando tivemos a primeira morte oficial registrada por Covid-19 no país e as medidas de isolamento social, que tiveram repercussão na atividade econômica a partir de março, nós passamos a enfrentar uma situação que já pegou um país debilitado do ponto de vista da sua dinâmica econômica. É importante isso ficar claro, porque o país já vem patinando do ponto de vista econômico, por responsabilidade das decisőes que estabelecem medidas de austeridade fiscal, especialmente a partir de 2016, quando se aprova a Emenda Constitucional 95.

O grande equívoco da Emenda Constitucional 95 não está na ideia de que é preciso encontrar mecanismos para controlar as contas públicas ou equilibrá-las. O grande erro é que se escolheu um mecanismo errado para fazer isso que é, basicamente, um teto de despesas primárias congeladas no nível de 2016. E isso significa que você tira completamente a capacidade do país de financiar políticas públicas capazes de reduzir a desigualdade, tira a capacidade de o gasto público ser um dos elementos para promover um processo de retomada da atividade econômica diante de um cenário de recessão, em que nãăo há estímulo aos investimentos privados. O gasto público tem esse papel de compensar a falta de gasto privado e, com isso, possibilitar uma retomada da atividade econômica. Manter o teto a qualquer custo é matar as pessoas. E esse cenário da Emenda 95 também tirou recursos do SUS porque congela o piso da saúde no nível de 2017 e, como a população cresce, é óbvio que a cada ano você está alocando um valor menor da receita para a saúde.

E o que isso reflete na gestão municipal? Dois terços do orçamento do Ministério da Saúde são para estados e municípios. À medida que você fragiliza o financiamento do SUS federal, também está comprometendo a capacidade do Ministério da Saúde em participar, como a Constituição estabelece, desse financiamento tripartite. Os estados têm sempre uma participaçăo muito pequena no financiamento municipal, portanto, o que está acontecendo é que os municípios que, na média, aplicam em torno de 25% da sua receita de impostos e transferências, embora o piso dos municípios seja 15%. Nesses últimos quatro anos a participação dos municípios no financiamento do SUS está em torno de 31%. Isso tende a comprometer o atendimento da população, traz prejuízos para a qualidade do atendimento que, pela lógica do SUS, é descentralizado. Um outro aspecto é que essa política econômica de austeridade fiscal – em que o país não cresce, ou cresce em níveis baixos – interfere na receita dos municípios por dois motivos: porque uma parte da receita das cidades vem da atividade econômica, como é o caso, por exemplo, do ISS [imposto sobre serviços] que, [caindo], compromete também uma parte da arrecadação dos municípios. Segundo, não só na saúde, os municípios são muito dependentes das transferências [federais e estaduais]. E a atividade econômica em queda também interfere na arrecadação de tributos federais que são transferidos. Por exemplo, tem uma parte de IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados], que é transferido para o fundo de participação dos municípios. Se as empresas não tęm lucro, cai o imposto de renda da pessoa jurídica, que também tem uma parte transferida para os municípios. Se as atividades econômicas estão em baixa, o ICMS dos estados está em baixa, uma parte disso é transferida para os municípios. Então, a atividade econômica em baixa interfere na arrecadação das três esferas.