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Descaso com a educação indígena

Pela legislação, escolas indígenas deveriam ser interculturais e diferenciadas para cada povo. Na prática, falta infraestrutura e há uma demanda muito maior do que a oferta.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 30/07/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Pela legislação, escolas indígenas deveriam ser interculturais e diferenciadas para cada povo. Na prática, falta infraestrutura e há uma demanda muito maior do que a oferta.



 



 No município de Dourados, no Mato Grosso do Sul, na aldeia Bororó, os indígenas Guarani - Kaiowá denunciaram em agosto de 2009 que a escola municipal que atende as crianças da aldeia estava sem material didático, materiais de higiene para as cozinheiras e não tinha área de lazer para os momentos de recreação. Além disso, várias lâmpadas estavam queimadas e a prefeitura ainda não tinha providenciado a reparação, o que prejudicava o ensino noturno na escola. O caso é um dos 11 descritos pelo relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil em 2009 , elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O capítulo II é dedicado a descrever a violência por omissão do poder público e a desassistência na área de educação faz parte deste trecho do relatório, assim como a desassistência à saúde, tema também de outra reportagem da EPSJV/Fiocruz.



Um ano depois da ocorrência da denúncia sobre o descaso na escola municipal de Dourados, procurada pela reportagem, a prefeitura respondeu que parte dos problemas já foi solucionada, como a falta de material didático, material de limpeza e iluminação. Sobre a falta de espaços de lazer, a prefeitura respondeu que o problema não foi resolvido: "Há espaço, mas falta infraestrutura. Não há, por exemplo, refeitório na escola", observou, acrescentando outra deficiência que sequer havia sido apontada pelos indígenas: a ausência de um local adequado para refeição. O relatório também apresenta outro problema no município de Dourados: a falta de transporte escolar para levar crianças indígenas com necessidades especiais para estudarem na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), que fica na zona urbana. Sobre este caso, a prefeitura respondeu que as falhas foram resolvidas, "menos em dias de chuva, quando o ônibus não consegue entrar nas aldeias por causa das estradas".



Os outros nove casos descritos pelo relatório são ocorrências nos estados de Alagoas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Santa Catarina, Roraima e São Paulo, e dão conta de situações de falta de transporte, merenda escolar, professores, energia elétrica e falta de escolas. Em Santa Catarina, cuja denúncia era de uma escola fechada por falta de professores, o governo do estado respondeu que a unidade já funciona normalmente desde o ano passado. No Pará, onde o problema é a inexistência de Ensino Médio em uma aldeia distante do perímetro urbano, segundo o governo do estado, já há providências para construção de escolas nesta e em outras regiões desassistidas, mas as unidades ainda não estão prontas.



De acordo com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC), responsável em última instância pela educação escolar indígena, os problemas descritos no relatório são problemas de gestão.  "O MEC define a política, legisla, cria programas para desenvolvimento da educação, mas os executores são os estados e os municípios. Há um regime de colaboração entre estes três entes. Os casos são problemas de gestão educacional mal encaminhada e mal resolvida, mas com toda a certeza esta desassistência não se aplica somente à questão indígena. As escolas do campo devem estar também com muitos problemas", afirma a coordenadora substituta da educação escolar indígena, Susana Grillo.



De acordo com o MEC, de 2002 a 2007, houve um aumento de 48% no número de matrículas na educação escolar indígena e ampliou-se também a formação de professores para atuarem nas escolas indígenas, que hoje somam cerca de 10 mil profissionais. Susana diz que não foi possível criar infraestrutura no mesmo ritmo deste crescimento. "Houve um aumento muito grande de matrículas de alunos indígenas, então, a carência de infraestrutura, que já era grande, ampliou-se. Hoje temos muitos professores indígenas formados e isso fez com que a matrícula aumentasse muito. Muitas escolas não têm prédios próprios, funcionam em galpões, igrejas ou casas de professores", observa Susana.



A coordenadora diz que o MEC entrará em contato com as secretarias para saber o andamento das soluções para os problemas descritos no relatório e que algumas questões podem ser resolvidas em curto prazo. "O que nós podemos fazer é entrar em contato com as secretarias estaduais e municipais e saber como os problemas vêm sendo tratados. Temos contato com as secretarias o tempo todo, seja mobilizados pelos índios ou por iniciativa nossa, mas não temos como chegar na ponta a todo momento. As reivindicações nos chegam pelas lideranças ou pelos professores que nos contatam", responde.



O MEC informou ainda que vem tentando suprir esta carência na educação escolar indígena, e que em 2007, com o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), foram descentralizados R$ 80 milhões para a construção de escolas indígenas.



Educação intercultural



Tanto a Constituição Federal quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) asseguram a possibilidade de uma educação intercultural para os povos indígenas. De acordo com as leis, o ensino deve ser feito em língua portuguesa, mas também em outra língua materna definida pela comunidade indígena, e também devem ser respeitados os processos educativos próprios dos povos indígenas.



O Plano Nacional de Educação (PNE), publicado em 2001 e em vigência até o fim deste ano, estabeleceu metas a serem cumpridas em diversas áreas, entre elas, a educação escolar indígena. Segundo o documento, era preciso incentivar a formação de professores indígenas para dar conta desta educação intercultural, bem como ampliar a oferta de forma a atender a demanda. Como se vê pelo relatório do Cimi, quase dez anos depois da publicação do PNE e já no fim da sua vigência, algumas metas ainda não foram totalmente alcançadas.



"A formação de professores é primordial para organização destas escolas, bem como prédios adequados, equipamentos, e isso ainda é deficiente. O Estado brasileiro não consegue dar conta disso, com exceção de algumas regiões. O Estado, em termos de burocracia, não está no mesmo ritmo das discussões dos povos indígenas", diz o indígena André Baniwa, vice-prefeito do município de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas.



O indígena considera que atualmente há um processo diferente de demanda por educação dentro das comunidades indígenas. Ele próprio teve que sair da aldeia para estudar fora. Hoje, na comunidade onde André nasceu há o ensino fundamental e a comunidade está tentando estruturar o ensino médio, mas ainda sem reconhecimento do poder público. "Eu saí em uma época bastante diferente. A luta do nosso povo era de fato buscar a compreensão da sociedade da qual fazemos parte, apesar de sermos diferentes, procurando entender como se colocar no meio desta sociedade. Essa foi a busca que eu fiz: saí da comunidade sem falar português direito e fui ‘encarando', estudando em Manaus. Mas se houvesse escolas na comunidade, como hoje, certamente eu não sairia. Não tive oportunidade de estudar muito e, por isso, luto para que a educação escolar indígena seja adequada à nossa realidade, desde o ensino fundamental até o superior. E aqui nós discutimos muito a necessidade de um ensino superior indígena", conta.



Segundo o MEC, atualmente há dois mil alunos indígenas em 16 instituições de ensino superior cursando licenciatura intercultural, que abre a possibilidade para que atuem como professores no segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio. Ainda de acordo com os dados do ministério, dos cerca de 10 mil professores que atuam hoje nas escolas das aldeias, 95% são indígenas. Os 5% não indígenas estão sobretudo no ensino médio. Pelos dados do censo de 2007, existem cerca de 118 escolas que oferecem essa fase de ensino, atendendo, de acordo com o MEC, apenas cerca de 4% da demanda. "Houve uma melhoria significativa de 2007 para cá, mas ainda pequena frente à demanda", reconhece Susana Grillo, da Secad. Ela diz ainda que os indígenas requerem hoje um ensino médio integrado à educação profissional. André concorda: "É muito forte na comunidade indígena a ideia da educação profissional. Este é o discurso e também desejo. E isso se encaixa perfeitamente na modalidade de ensino médio integrado, com a valorização da cultura, do trabalho e da tecnologia", afirma. De acordo com Susana, há iniciativas neste sentido em alguns estados como Mato Grosso, Roraima e Tocantins.



Para a pesquisadora do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (Pró-Indio) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Andrea Sales, é muito importante que a escola seja dentro da aldeia. Ela ressalta que no caso das aldeias guarani, onde tem contato, no interior do estado do Rio, há um forte apelo dos pais para que haja uma educação na própria comunidade, já que a escola ‘de fora' só ensina sobre a cultura do ‘povo branco'.  Há mais de 500 anos a escola pensada para o índio no Brasil sempre buscou retirar a cultura, a língua e as tradições indígenas para transformá-los em não índios. Desde a Constituição de 1988 - e, no caso de algumas etnias da região norte, mesmo antes disso -, os indígenas vêm lutandopor uma escola diferenciada. Eles dizem que sua maior vitória é poderem permanecer índios - aprender o próprio processo de aprendizagem, utilizar a língua materna e as outras línguas de contato (em algumas etnias fala-se até cinco línguas), e, depois, o português", ressalta.



Andrea lembra que muitas comunidades já perderam suas línguas e que, se os indígenas mais velhos não começassem a participar das escolas para passarem o conhecimento para os jovens, várias outras línguas já estariam perdidas. "Graças a essa escola diferenciada o indígena mais velho pôde estar dentro da escola", diz.



Para a pesquisadora, por mais que haja escolas regulares que recebam bem os indígenas, é difícil que o conteúdo se adapte de forma intercultural, e é aí que está o problema. "O indígena irá viver a cultura dele só quando estiver em casa, na aldeia, mas quando estiver naquele lugar dito do conhecimento, onde se diz que os conhecimentos são valorizados, ele não verá o retrato dele. Ele estará ali porque ele quer um certificado, mas não irá funcionar", alerta a professora.



De acordo com Susana, o MEC aponta às secretarias estaduais a necessidade de os indígenas participarem dos vários conselhos de educação para que interferiram e apontem caminhos para as políticas de educação escolar indígena. A LDB e o PNE asseguram a participação dos povos indígenas em diversos conselhos, como o de fiscalização do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e também no Conselho de alimentação escolar (CAI). "Temos notícias de que em alguns municípios os indígenas participam destes conselhos, mas ainda em um número reduzido", diz Susana. Ela comenta que alguns estados criaram conselhos específicos de educação escolar indígena, como Tocantins, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Roraima e Paraíba.



Invisibilidade



A coordenadora da pesquisa que deu origem ao relatório elaborado pelo Cimi, a antropóloga Lúcia Helena Rangel, explica por que a desassistência na área de educação faz parte da pesquisa. "O relatório trata da violência e também da violação de direitos. O fato a escola não receber material didático ou de estar em péssimas condições de funcionamento é uma violação de direitos. Muitas vezes as crianças indígenas vão para a escola pública e não são atendidas como crianças indígenas. Temos também casos de racismo, porque as crianças às vezes são discriminadas nas escolas", relata.



A antropóloga avalia que as violações de direitos dos povos indígenas ainda tem pouca visibilidade na sociedade, apesar de o relatório ser publicado desde os anos 1980. "Publicamos o relatório anualmente, chamamos a imprensa e os jornais noticiam os resultados, mas depois o assunto morre e ninguém dá importância. E ainda há aqueles que acham que o Cimi é exagerado e dizem: ‘Ah, imagina, a maioria dos índios vivem muito bem, há muitas conquistas'. De certa forma, é verdade. Se fizermos uma retrospectiva desde os anos1970, muitas terras foram demarcadas e o movimento indígena se fez presente na sociedade. Mas sempre que nós denunciamos as pessoas se esquivam: a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e os ministérios, os representantes da educação e da saúde e a sociedade em geral. Há um racismo muito grande contra a população indígena, que faz com que todos fiquem cegos e não queiram enxergar os problemas", critica Lúcia Helena.