Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Dinheiro novo para enfrentar a pandemia

Numa manobra de recursos, o governo tem anunciado algumas iniciativas para enfrentar o COVID-19. Especialistas indicam caminhos de dinheiro novo para não prejudicar outras áreas durante e depois da superação da crise pandêmica
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 26/03/2020 13h13 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

No final da semana passada, em 20 de março, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, pediu informações ao Poder Executivo da União sobre os efeitos da Emenda Constitucional (EC) 95/2016, que instituiu o teto dos gastos públicos da União, sobre as necessidades decorrentes da pandemia de coronavírus. O movimento foi provocado por conta da mobilização de entidades ligadas à defesa dos direitos humanos que entraram com uma petição no STF pela suspensão imediata da emenda. Para os responsáveis pela petição, a motivação tem caráter emergencial pois a pandemia de COVID-19 coloca em risco o funcionamento do Sistema Único de Saúde. A partir desse movimento, especialistas passaram a ventilar também outras fontes para se conseguir o chamado dinheiro novo para enfrentar a crise.

“A ação de Rosa Weber é apenas um movimento de processo, mas, pela primeira vez, o governo federal foi questionado pelo STF sobre os impactos que essa política de austeridade provocou em áreas tão importantes como a saúde e educação. Isso é uma pequena vitória, mas demonstra que o mundo todo começa a perceber que as decisões que são pautadas pelo interesse do mercado financeiro atingem de forma muito agressiva a qualidade de vida da população. A gente está num momento de virada e precisamos aumentar a pressão pela revogação da emenda e contra todas as políticas de austeridade econômica”, defende Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de São Paulo (USP) e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, uma das lideranças nesse processo.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) também pediu, em nota, a revogação imediata da emenda. “Até agora, de acordo com estudo da Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS, o prejuízo ao SUS já chega a R$ 20 bilhões. Ao longo de duas décadas, os danos são estimados em R$ 400 bilhões a menos para os cofres públicos”, indica a nota. O texto do pedido de urgência de cancelamento afirma ainda que “o resultado do subfinanciamento das políticas de saúde, que já era grave, toma proporções catastróficas em um cenário de crise de saúde, com a pandemia de coronavírus (COVID-19) e as estimativas de sua propagação no país, que devem crescer rapidamente nas próximas semanas caso medidas drásticas e urgentes de contenção, notificação e tratamento não sejam tomadas”.

As movimentações para a derrubada da PEC não vêm de agora. Assim que aprovada, foram impetradas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) contra a medida, que congelou gastos da União com despesas primárias por 20 anos, corrigidos pela inflação medida pelo IPCA (Índice de Preços para o Consumidor Amplo).

Até o fechamento desta matéria, o governo federal havia anunciado transferência de recursos diretamente para o Sistema Único de Saúde a partir de algumas fontes de receita, como o Censo 2020 do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], que foi suspenso (R$ 2,3 bilhões), o saldo do fundo do DPVAT (4,5 bilhões), além de R$ 5 bilhões de crédito extraordinário para o Orçamento do Ministério da Saúde. A soma destes recursos no entanto, não chega perto da perda que o Sistema Único de Saúde teve por conta da EC 95. De acordo com o cálculo realizado pelos pesquisadores Francisco Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocké,  de 2018 a 2020, essa perda chega a R$ 22,48 bilhões.

Para o economista e consultor da Comissão de Financiamento e Orçamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS) Francisco Funcia, já não restam dúvidas do quanto a EC 95 é  prejudicial tanto às políticas sociais quanto ao Sistema Único de Saúde e à Educação. “Um estudo da Secretaria do Tesouro Nacional estima perdas do SUS, numa visão mais substimada, de R$ 9 bilhões, em 2019. Nosso estudo prevê R$ 12 bilhões. Se a Receita [Federal] está admitindo é porque não tem discussão. Não há quem defenda. Repetimos muitas vezes lá atrás que a PEC da Morte passava de um patamar de subfinanciamento para o desfinanciamento. Passamos a retirar dinheiro do Sistema Único de Saúde, após sua aprovação”, avalia.

Outras alternativas de financiamento

Depois do discurso do presidente Jair Bolsonaro em cadeia nacional, no dia 24 de março, intensificou-se a discussão da importância de se preservar a economia em meio à epidemia, o que inclui o debate sobre de onde se deve retirar recursos. As opções apresentadas são as mais variadas: desde a continuidade da política de austeridade até medidas como a taxação das grandes fortunas e a revogação da EC 95.

Para Daniel Cara, alguns setores do governo buscam estabelecer ainda uma normalidade inexistente em meio à epidemia, dando continuidade à política austera. “Enquanto o mundo todo está querendo mostrar o papel e a importância do Estado para a garantia de vida e da qualidade de vida das pessoas, para a mitigação de uma crise sanitária e econômica sobre as pequenas e médias empresas, aqui estamos querendo o oposto. O governo não tem sido capaz de compreender que, se estamos numa economia de guerra, precisamos de uma grande pactuação e não de competição com governadores e prefeitos”, denuncia.

Entre os recursos remanejados de outras pastas ou iniciativas está em discussão o Fundo Petrobras. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou no domingo (22/3) que os recursos recuperados da Petrobras a partir da operação Lava Jato fossem destinados às ações de combate ao COVID-19. O fundo de R$ 2,6 bilhões estava destinado para ações de educação, ciência e tecnologia e para os estados da Amazônia, para combate a desmatamentos e incêndios. Destes, 1,6 bilhões iam diretamente para iniciativas na área da Educação.

Cara critica a utilização desse fundo no lugar de se pensar em recursos novos “Essa falta de aplicação deste recurso na educação até agora e a utilização do mesmo nesse tempo de crise expressam a falta de prioridade dada pelo Governo Bolsonaro para a educação, a falta de compreensão do governo da importância da educação. É um governo que não consegue entender o papel que a educação, ciência e tecnologia têm para o desenvolvimento do país”.

Funcia também aposta na busca de novos recursos para o enfrentamento da crise sanitária. “Tenho severas críticas ao que está sendo posto num momento que exige uma ação efetiva do Estado de combate à pandemia. O que estamos vendo é que está  sendo considerada prioritária a política de austeridade fiscal. Isso é um absurdo. Todas as medidas que estão sendo anunciadas estão muito aquém do que deveria. O caminho correto para o enfrentamento de uma crise, que para alguns economistas podem chegar aos moldes  de 1929 [Grande Depressão], é de aumento dos gastos públicos. É isso que vai reduzir os efeitos do conjunto das medidas  que estão sendo necessárias para o combate aos efeitos dessa pandemia”, aponta.

De acordo com Funcia, até agora o governo só remanejou recursos do próprio Ministério da Saúde ou de outras áreas que serão prejudicadas imediatamente. Dos R$ 5 bilhões de crédito extraordinário que foram dedicados ao conjunto de ações de combate à epidemia, R$ 3,2 bilhões saíram da atenção básica e R$ 1,6 bilhão da assistência hospitalar e ambulatorial. “Já são recursos subfinanciados que agora se esgotarão. Estão sendo retirados recursos de ações programadas. É como se o Covid-19 tivesse substituído outras doenças. E é o contrário, não substitui a necessidade de prevenção. Deveria-se, portanto, botar recursos novos imediatamente, como, por exemplo, o do aumento da dívida pública, e não apenas migrar de áreas”, explica.

Ele lembra que a crise sanitária acontece já num contexto de subfinanciamento, em que, de acordo com o economista, gasta-se R$ 3,60 per capita/dia com a saúde do brasileiro nas esferas federal, estadual e municipal, em ações que englobam desde a vigilância sanitária de produtos, alimentos, estabelecimentos, cargas perigosas, registro de medicamentos até transplante, entre outros. Esse valor implica um gasto público consolidado em saúde equivalente a 4% do PIB (em 2017), quase a metade do gasto do Reino Unido (7,9% em 2015, segundo a Organização Mundial de Saúde). “É bom deixar claro que o subfinanciamento crônico do SUS e especialmente o desfinanciamento gerado pela EC 95 é responsável para que a estrutura de equipamentos e insumos estejam mais inadequados do que estariam caso esses recursos tivessem sido gastos em ações e serviços públicos nos últimos três anos. Estaríamos mais preparados e equipados para o enfrentamento a essa crise”, relembra Francisco.