Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Editorial de aniversário

A Poli e o papel da imprensa alternativa: um passeio pelas dívidas que a Constituição deixou no campo da Comunicação.
Redação - EPSJV/Fiocruz | 15/08/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

No ano em que a Constituição Federal comemora 25 anos, está nas ruas, com o desafio de coletar 1,6 milhão de assinaturas para ter o direito de tramitar no Congresso Nacional uma proposta de Projeto de Lei de Iniciativa Popular sobre a Comunicação eletrônica no Brasil. O objetivo do projeto? Regulamentar seis artigos da Constituição que, por pressão dos grandes grupos empresariais de mídia do país e falta de vontade política dos sucessivos representantes populares no Executivo e no Legislativo, tornaram-se letra morta, explicitando mais de duas décadas de derrota dos movimentos sociais que lutam pela democratização da comunicação desde, pelo menos, a Constituinte.

No mês em que a Revista Poli – Saúde, Educação e Trabalho também completa cinco anos, o cruzamento dos temas é inevitável. Veículo idealizado e executado por uma instituição pública que se coloca a serviço da ampliação do Estado na direção das parcelas subalternizadas da sociedade, a Poli, apesar de institucional, se coloca politicamente no campo da comunicação alternativa. E isso significa o compromisso de engrossar as vozes que denunciam o grau de concentração dos meios de comunicação no Brasil e as consequências nefastas que esse cenário tem produzido para a maioria da população brasileira. Significa fazer coro à denúncia de que, 25 anos depois de promulgada uma Constituição que prometia inaugurar um novo ciclo democrático no Brasil, justamente a comunicação tem se destacado como um dos maiores obstáculos a essa democratização.

Buscando dar continuidade à sua primeira edição, publicada exatamente cinco anos atrás também com o conteúdo temático exclusivo sobre a Constituição Federal, que naquele momento completava duas décadas, esta revista traz uma outra abordagem: agora, tematizamos não as conquistas, mas as derrotas que os movimentos sociais organizados em torno das pautas mais progressistas tiveram tanto na redação original do texto constitucional quanto no processo de desmonte que ele sofreu ao longo desses 25 anos. Coerentes com as grandes áreas que orientam nosso projeto editorial, priorizamos o mapeamento das perdas relativas aos campos de saúde, educação e trabalho.

Mas esta é também uma edição de aniversário da própria revista, que na sua curta história, tem se comprometido, não pela temática abordada, mas pela sua própria prática, também com as lutas em prol da democratização da mídia, que envolve a produção de informação crítica associada, no nosso caso, à socialização do conhecimento cientifico que se coloca a serviço da sociedade. E essa luta prática tem também referências importantes nas perdas que esse campo da comunicação teve no texto constitucional. O balanço das derrotas 25 anos depois da dita Constituição ‘Cidadã’, feita por um veículo jornalístico, parece requerer também um apanhado dessas perdas no próprio campo da comunicação. Neste texto que abre uma edição comemorativa – mostrando que, na verdade, não há muito a comemorar – façamos, então, um rápido passeio pelas dívidas que a Constituição deixou também com aqueles que, como nós, militam no campo da Comunicação, apostando nele como ferramenta imprescindível – embora não suficiente – para a organização dos trabalhadores e a conscientização social.

A Comunicação na Constituição Federal

Logo no seu artigo 5º, a Constituição garante o “direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou de imagem”. O fato de nunca ter sido regulamentado, no entanto, tem protegido a grande mídia empresarial em muitas situações em que verdadeiras campanhas difamatórias ou desinformativas travestidas de notícia, com toda a sua carga ideológica de imparcialidade, ganham espaço na pauta jornalística. No momento em que esta edição era fechada, ganhava eco nas ruas e nas redes sociais o caso da entrevista que o programa RJTV, da Rede Globo, fez com o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, no contexto da greve dos professores do município, que mobilizou importantes parcelas da população. Desmentido nas suas principais denúncias e esvaziado nas suas reivindicações pelas explicações (parciais) apresentadas pelo prefeito, o sindicato da categoria, que liderava a greve, não teve o mesmo direito de se expressar.

O artigo 220 também delegou a uma futura lei federal que nunca veio o poder de estabelecer “meios legais” que possibilitassem defender as pessoas e as famílias de programas de rádio e TV que contrariassem os princípios estabelecidos pela própria Constituição e da propaganda de “produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”. Os tais princípios que deveriam orientar os programas de rádio e TV foram estabelecidos no artigo seguinte, o 221, destacando as “finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”; a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação”; “regionalização da produção cultural, artística e jornalística”; e o “respeito aos valores políticos e sociais da pessoa e da família”. Se a TV que você assiste e a rádio que você ouve não promovem nada disso, não estranhe: também essas determinações são claramente ignoradas em função da não-regulamentação desse artigo e, no que vai além da questão meramente legal, pela correlação de forças que ao longo desses 25 concedeu um poder assustador a esses grandes conglomerados empresariais que respondem pela grande mídia no Brasil.

Por fim, no que diz respeito aos artigos não-regulamentados, o parágrafo 5º do artigo 220 provavelmente é o mais comprovadamente ignorado no capítulo da Constituição sobre a Comunicação Social. Ele estabelece que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”, o que parece uma piada de mau gosto num país em que, como mostrou reportagem da última edição Poli, apenas as Organizações Globo tem 69 veículos próprios, além de um conteúdo distribuído por mais de 340 outros veículos impressos e eletrônicos e mais de 3.300 retransmissoras de TV de todo o país.

Em artigo recente em que trata exatamente do que não se tem a comemorar neste aniversário da Constituição em relação à comunicação, Venício de Lima destaca ainda iniciativas diretas de desmonte do pouco que foi conquistado nesse campo. “A vinculação entre faixa etária e faixa horária prevista no artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990), na qual se baseia a Portaria 1.220/2007 do Ministério da Justiça, que instituiu a Classificação Indicativa de obras audiovisuais destinadas à televisão e congêneres, fundamentada no inciso I do § 3º do artigo 220, está sendo questionada por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 2404) patrocinada pelos empresários de radiodifusão, usando a sigla do PTB e representados pelo ex-ministro Eros Grau”, exemplifica. Outro caso, esse alterando diretamente o texto constitucional, ocorreu em 2002, quando a Emenda Constitucional 36 passou a permitir a participação de capital estrangeiro em até 30% das empresas jornalísticas e de radiodifusão.

Tudo isso sem contar o que esse mesmo pesquisador chama de “coronelismo eletrônico”, que é o fato de muitos parlamentares brasileiros terem a concessão de emissoras de TV que, além de serem um claro desrespeito à Constituição, servem de ferramenta política local; e o fato de o Conselho Nacional de Comunicação Social, cuja instituição foi determinada pelo artigo 224 da Constituição, e sua criação formal ter ocorrido em 2002, nunca ter se efetivado.

A institucionalidade a serviço do alternativo

Toda essa análise legal é, no entanto, apenas parte da discussão maior que, essa sim, envolve também a mídia impressa e outros veículos, sobre liberdade de imprensa e de expressão, uma falsa bandeira que tem servido de justificativa para a concentração de poder econômico e político dos grandes grupos empresariais que monopolizam – sim, contrariando a Constituição – a comunicação social no Brasil. Colocar em debate, por meio de uma prática jornalística engajada, essa concepção de liberdade e de imprensa é parte das tarefas que a Poli se coloca ao longo dos seus cinco anos de vida.

Nesse tempo, muitas reportagens da Poli foram republicadas em veí-culos de comunicação alternativa no Brasil e fora dele, contribuindo para pautar, de forma aprofundada, politicamente engajada e cientificamente fundamentada, as áreas de saúde, educação e trabalho no interior da imprensa popular. Jornais e revistas impressas e eletrônicas, blogs e agências de notícias como o Brasil de Fato, a Caros Amigos, a Adital, o Instituto Humanitas Unisinos, a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, a Articulação Nacional de Agroecologia e a Comissão Pastoral da Terra, por exemplo, têm sido importantes canais de divulgação das nossas pautas jornalísticas e agendas de pesquisa e, consequentemente, de reconhecimento do trabalho da Poli. Com isso, alinhada ao projeto político-pedagógico da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, unidade da Fundação Oswaldo Cruz que corajosamente a idealizou e incentiva, a Poli tem tentado colocar, também no campo da comunicação, a institucionalidade a serviço das demandas sociais.

E isso significa não apenas se situar fora do campo hegemônico de produção de informação, mas também reconhecer a informação como ferramenta de luta e militância política, institucional e científica. Significa, pois, antes de tudo, negar a imparcialidade da comunicação não por ser ela um princípio inalcançável, mas por ser um valor indesejável, que nubla as diferenças e os conflitos presentes numa sociedade injusta e desigual como aquela em que vivemos. Nesse sentido, não há qualquer neutralidade no projeto editorial seguido pela Poli ao longo desses cinco anos: ao tratar de saúde, está no campo das lutas progressistas do movimento sanitário, por uma saúde entendida como direito universal e dever do Estado, que só pode ser consolidada com a radicalização do seu sentido público; ao falar de educação, tem como referencial não só a convicção de que ela precisa ser pública, gratuita e laica, mas também a defesa de uma educação crítica e emancipatória, que contribua para a liberdade humana; ao tematizar o trabalho, por fim, se coloca inequivocamente ao lado das pautas que buscam a organização coletiva e crítica dos trabalhadores na defesa dos seus direitos, crescentemente expropriados.

Vida longa – e forte – a todas as iniciativas, institucionais, comunitárias, sindicais ou de qualquer outra natureza popular que se ponham a tarefa de agir na contra-hegemonia da ordem excludente estabelecida.

A redação