Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Educação: direito universal, público e gratuito

Constituição Federal prevê a formação de sociedade preparada para o exercício da cidadania
Juliana Chagas, Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2009 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Deputados e senadores promulgam a Constituição Cidadã Foto: Câmara dos Deputados

A ideia de que o Estado é responsável por assegurar direitos sociais perpassa toda a Constituição de 1988 e também está presente na seção que se refere à Educação. O artigo 205 diz que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Para Carlos Jamil Cury, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e ex-membro da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, esse artigo mostra uma grande diferença conceitual do texto de 1988 em relação à legislação anterior: o reconhecimento da importância da educação para formar cidadãos. “Essa é uma característica importante e inovadora: a Constituição vê a educação como um direito social fundador da própria cidadania”, afirma.

E, para assegurar esse direito, a Constituição proclama a gratuidade em todo o ensino oficial. “Antes, apenas o ensino fundamental era gratuito nacionalmente. Não havia nenhuma imperatividade com relação ao ensino médio ou infantil face à gratuidade. É claro que existiam instituições públicas responsáveis por essas fases do ensino, mas elas estavam submetidas às constituições estaduais, que podiam prever a cobrança de taxas ou mensalidades”, explica Cury.

O texto também delega ao Estado o dever de garantir o “ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria”. O professor Romualdo Portela, da Universidade de São Paulo (USP), destaca a importância disso para a ampliação do acesso. “É inequívoco o papel decisivo da Constituição para a ampliação desse direito. Hoje, praticamente temos o ensino fundamental universalizado em função desses avanços”, analisa.

Também foi em 1988 que, pela primeira vez, uma Constituição brasileira reconheceu a existência de escolas particulares com fins lucrativos

Quanto ao ensino médio, a carta original promulgada em 1988 dizia que o Estado deveria promover a “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade” desse nível de ensino. Em 1996, a Emenda Constitucional 14 mudou o texto para “progressiva universalização do ensino médio gratuito”, embora a postulação anterior tenha permanecido na Lei de Diretrizes e Bases. Para Carlos Cury, essa mudança foi negativa na medida em que um artigo constitucional tem mais força que uma lei ordinária. “O princípio não foi erradicado, já que continuou na LDB, mas tem menos força. Quando se diz ‘extensão da obrigatoriedade’, o direito está necessariamente vinculado ao dever do Estado. Já quando se fala em universalização, entende-se que o poder público deve abrir as escolas necessárias”, explica.

Para Romualdo Portela, a alteração não trouxe mudanças significativas em termos práticos, já que a universalização do ensino médio não é propriamente uma decorrência do texto constitucional, mas da ampliação do ensino fundamental. “O texto original era mais enfático mas, de toda maneira, ele se tornou letra morta na medida em que o grande ampliador do direito à educação foi a própria ampliação do acesso e conclusão do ensino fundamental. Daí decorreu a notável expansão do ensino médio nas últimas duas décadas”, explica.

Outro avanço é a constitucionalização da universidade, que aparece no artigo 207: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. A Constituição ainda estabelece a possibilidade de essas instituições receberem apoio financeiro do poder público para as atividades de pesquisa e extensão. De acordo com Cury, antes de 1988 havia leis ordinárias que mencionavam as universidades, mas elas nunca haviam aparecido em nenhuma Constituição.

Público e privado

Também foi em 1988 que, pela primeira vez, uma Constituição brasileira reconheceu a existência de escolas particulares com fins lucrativos. O texto reconhece que o ensino é livre ao setor privado, desde que sejam cumpridas as normas gerais da educação nacional e que o poder público  autorize o funcionamento e avalie a qualidade das instituições privadas. “Isso consolida uma situação que, de fato, já existia. Até 1988, a legislação não permitia a existência dessas instituições mas, na prática, elas já estavam presentes no nosso sistema de educação e apenas burlavam a contabilidade para esconder o lucro”, comenta Romualdo Portela.

Cury explica que, apesar de a Constituição de 88 em geral privilegiar o poder do Estado, essa é uma característica relativa aos sistemas públicos. “A Constituição foi fruto de uma negociação que incluía grupos representantes do sistema privado. Assim, enquanto garante a gratuidade da educação em todos os níveis, ela diminui, em contrapartida, o poder de controle do Estado sobre as escolas particulares”, diz.

Uma das consequências disso é, segundo o professor, a mudança do regime de vigência desse tipo de instituição. “Até 1988, o setor privado atuava sob concessão. A partir dessa data, a vigência passou a se dar mediante autorização. Antes, o concedente era o Estado, que era o titular, e o concedido dependia dele para seu funcionamento. Hoje, ainda existe uma hierarquia baseada no estatuto de avaliação e autorização, mas ela é menos forte”, explica.

De acordo com Cury, essa flexibilização traz alguns problemas. “Há um confronto de princípios. Por um lado, essas instituições só podem conceder diplomas com valor oficial mediante autorização de funcionamento pelo poder público e mediante uma avaliação da qualidade. O problema é que essa avaliação é feita, mas suas consequências não são efetivadas. Com isso, temos uma expansão absurda e descontrolada de escolas com baixa qualidade e que, no caso das universidades, lançam no mercado profissionais mal preparados”, analisa.

Para Cury, o ideal é que, na Constituinte, se tivesse votado um sistema nacional de educação, como a saúde conseguiu. “Mas, na negociação entre partidos de esquerda e de direita, não conseguimos fazer isso. A ideia votada foi a de um sistema público feito pela colaboração entre União, estados e municípios, com áreas de atuação definidas”. O professor afirma que o governo atual [de Luiz Inácio Lula da Silva] tem feito esforços para pôr esse tema em pauta novamente, mas lembra toda mudança na Constituição deve ser feita através de emendas constitucionais, que dependem de aprovação na Câmara e no Senado. “A formação de um sistema nacional significaria maior presença da União, de modo que os estados e municípios perderiam poder. Assim, nem todas as bancadas estaduais estão de acordo. Além disso, os sistemas privados, que desejam manter sua flexibilidade, também podem acionar suas bancadas para conservar a situação atual. Com a união dessas bancadas, torna-se quase impossível aprovar uma emenda que altere o sistema”, analisa.

Ele afirma que a divisão por áreas de atuação gera complicações. “A educação infantil, por exemplo, é responsabilidade do estado, enquanto o ensino fundamental pertence ao município e ao estado, o ensino médio pertence prioritariamente ao estado e o ensino universitário pertence à União. Ocorre que, em alguns casos, há instituições privadas que trabalham desde a educação infantil até a superior, e precisam, portanto, prestar contas ao município, ao estado e à União. Essa é uma dificuldade operacional muito grande”, conta.