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Educação profissional carece de livros didáticos

Desafio ainda é ter livros em qualidade e variedade diante de um mercado editorial altamente concentrado
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 03/09/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Se o curso é técnico, o livro que deve ajudar os estudantes no processo educativo é como se fosse um manual, uma cartilha, ou outra publicação que, na maioria das vezes, minimiza os conteúdos e confunde o aspecto didático com o técnico. Assim, fica ainda mais dificultado o caminho para uma formação crítica e que amplie o nível de reflexão dos alunos. No caso do Brasil, o diagnóstico da falta de livros adequados no mercado editorial para a educação profissional é tanto de pesquisadores, como do próprio Ministério da Educação (MEC).



De acordo com Luiz Caldas, diretor de formulação de políticas da educação profissional e tecnológica da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec/MEC), o Ministério tem se posicionado de duas maneiras frente a este problema. Neste ano, foi feito um convite para que as editoras que já tenham livros publicados para a educação profissional e tecnológica os apresentem ao MEC. "Este primeiro processo tem como principal objetivo uma avaliação do que há hoje na escala de comercialização dirigidos à educação profissional e tecnológica. Nós temos uma leitura muito breve de que precisamos avançar nesta questão da publicação de livros didáticos para educação profissional e tecnológica. Ainda temos um cenário de muita confusão entre livro didático e livro técnico, que não tratam esse segmento a partir do que hoje o MEC compreende e defende enquanto diretrizes para educação profissional e tecnológica", define.



Luiz Caldas explica que o MEC está concluindo a análise destas publicações e, posteriormente, os livros selecionados constituirão um catálogo de referência que será colocado à disposição das escolas federais. A segunda ação é o incentivo à publicação de obras por novos autores. "Em relação a essa segunda ação, nós já estamos quase no final do trabalho, já avaliamos algumas publicações que foram apresentadas pelos novos autores e esperamos até novembro já ter algumas obras publicadas", diz. O MEC subsidiará a publicação dos livros nas escolas e universidades onde atuam os autores.



Na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/ Fiocruz), no Rio de Janeiro, por exemplo, onde há a formação de estudantes no ensino médio integrado ao técnico em saúde - Análises clínicas, Gerência em saúde e Vigilância em saúde - muitos recursos pedagógicos utilizados são elaborados pela própria escola. O MEC avalia que esta tem sido uma solução usual das escolas de educação profissional e tecnológica para suprir a escassez de publicações. De acordo com Luiz Caldas, há bons resultados neste sentido, entretanto, os livros acabam ficando no âmbito apenas das instituições, por isso o Ministério quer incentivar a publicação em maior escala para que o alcance seja maior.



Formação aligeirada dos trabalhadores



"Para os trabalhadores de nível médio, sejam eles os alunos que estão sendo formados na educação profissional, mas principalmente os trabalhadores já inseridos no SUS, partimos de um diagnóstico de que há uma exiguidade de um material formulado com consistência teórica, articulando as questões da teoria e da prática, oferecendo as bases do conhecimento daquela prática, daquele desenvolvimento profissional", diagnostica Márcia Valéria Morosini, vice-diretora de ensino da EPSJV. Ela ressalta que o que predominantemente está disponível hoje, sobretudo para a formação dos trabalhadores que já estão inseridos no serviço de saúde, são materiais que mostram um conhecimento abreviado, de caráter mais informativo ou de uso mais aplicado a um determinado procedimento. "É preciso enfrentar esses desafios com uma linguagem adequada para esse trabalhador, enfrentar as dificuldades de conhecimento sem ter que simplificá-lo, ou seja, trabalhar com estratégias que tornem o conhecimento acessível e não recusar o acesso desse trabalhador ao conhecimento, mas sim resgatar as bases do conhecimento que organizam o seu trabalho, a sua técnica e prática", destaca.



Luiz Caldas considera que há razões históricas para a deficiência de materiais didáticos adequados para a educação profissional. "Na origem, há muitas obras do conteúdo específico da educação profissional que são traduções de autores estrangeiros. Só nos últimos 15 anos vimos surgir autores nacionais com maior destaque e em maior proporção. Outra razão é a confusão, até pela especificidade da educação profissional, de não tratar essa obra pedagogicamente", diz.



Ele ressalta que há aspectos fundamentais para que um livro seja considerado didático, como, por exemplo, ter exercícios, orientações para o professor, e uma metodologia que se ocupe da mediação entre o conteúdo e o educando de forma pedagógica.



Para além do livro da sala de aula



Márcia Valéria chama atenção para a necessidade de se trabalhar com um conceito de material didático mais ampliado, identificando que o livro também deve servir como fonte de pesquisa e de investigação. "O processo de ensino-aprendizado não pode prescindir da sua dimensão de investigação e aprofundamento porque se não, ele se desqualifica como processo criativo e fica hegemonizada a sua dimensão que é reprodutiva e de repetição", alerta. Neste sentido, a professora considera material didático também os textos de referência que os estudantes podem usar para aprofundar a discussão feita em sala de aula, bem como outros elementos didáticos, produzidos com outras técnicas, como a hipermídia. "O que procuramos sempre manter é que, ao facilitar o acesso ao conhecimento, isso não signifique necessariamente optar por atalhos e simplificações, substituir conteúdo por forma, uma vez que esses dois são indissociáveis. Essa compreensão do meio tecnológico como algo também que não é neutro, que está implicado na qualificação desse processo educativo, é que caracteriza também o nosso ingresso em outras mídias e possibilidades de produção de material educativo, como produções audiovisuais e criação de ferramentas específicas para difusão de conhecimento no meio eletrônico", detalha.



Outro grande desafio, de acordo com Márcia, é a criação de materiais pedagógicos, no caso da educação profissional em saúde, para ajudar na formação dos docentes. Muitas vezes, esses professores são profissionais egressos do serviço de saúde que buscam a qualificação para, por sua vez, qualificar outros trabalhadores.



PNLD



Diferente da educação profissional, a educação básica, incluindo alfabetização, ensino fundamental e médio, já conta com políticas mais estruturadas para o financiamento de material educativo. O Fundo Nacional pelo Desenvolvimento da Educação (FNDE) divulgou nesta semana que estudantes de todo o Brasil receberão mais de R$ 135 milhões de livros didáticos. São no total 1846 títulos. Ainda de acordo com o FNDE, 96% dos entes municipais, estudais e federais aderiram ao Plano Nacional dos Livros Didáticos (PNLD) e receberão exemplares. A coordenadora geral de materiais didáticos da Secretaria de Educação Básica (SEEB/MEC), Jane Cristina, explica que a gestão dos sistemas de ensino tem autonomia para definir o material didático que quer utilizar. "Os estados e municípios, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, gozam de autonomia na gestão de seus respectivos sistemas de ensino e podem, portanto, desenvolver políticas próprias no que se refere ao material didático a ser adotado em sua rede de ensino".

 

Pelo PNLD, a escolha dos livros que serão utilizados em cada escola é feita pelos professores, a partir de um Guia de Livros Didáticos, elaborado pelo MEC/FNDE. De acordo com o MEC, a escolha dos livros que comporão um guia é feita por meio de edital, quando as editoras candidatam as obras e posteriormente há uma avaliação pedagógica dos livros por universidades. "Os critérios utilizados na avaliação dos livros são de natureza comum a todas as áreas e critérios específicos da área do conhecimento das obras inscritas. Os critérios eliminatórios comuns observados na apreciação de todas as coleções submetidas são os seguintes:   respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais relativas ao ensino; observância de princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano; coerência e adequação da abordagem teórico-metodológica assumida pela coleção, no que diz respeito à proposta didático-pedagógica explicitada e aos objetivos visados; correção e atualização de conceitos, informações e procedimentos;  observância das características e finalidades específicas do manual do professor e adequação da coleção à linha pedagógica nele apresentada; adequação da estrutura editorial e do projeto gráfico aos objetivos didático-pedagógicos da coleção", elenca Jane. "O não-atendimento de qualquer um desses critérios resultará em uma proposta pedagógica incompatível com os objetivos estabelecidos para o ensino, o que justificará, ipso facto, a exclusão do PNLD", completa.



Pesquisa e livro didático



Para a professora da EPSJV/Fiocruz, Musa Velasques, o conteúdo dos livros didáticos de História, por exemplo, tem melhorado no sentido de estarem atualizados com as pesquisas da academia. "Nas três ultimas décadas, as pesquisas históricas avançaram muito, existe uma serie de releituras da história e de capítulos da história geral que as pesquisas históricas nas universidades e nas academias proporcionaram. Antes havia um distanciamento muito grande entre o que se produzia na academia e o que se escrevia nos livros didáticos. Hoje em dia, isso acontece bem menos", avalia.



Além desta atualização, a professora considera que outro aspecto importante a ser avaliado em um livro didático é como a obra pensa a conjuntura e os diferentes níveis da sociedade. "O texto precisa ser crítico, abrir possibilidades tanto na ilustração, quanto no texto, porque às vezes o livro didático é o único recurso do professor", diz.



A professora relata que no caso da EPSJV/Fiocruz, o livro didático funciona mais como um suporte, já que os professores também usam outros textos de pesquisadores na sala de aula. "O livro é um recurso didático importante, precisa ser revisto no formato, no texto. Às vezes nossos livros didáticos são super regionalizados, em algumas situações um livro didático que serve num centro urbano em São Paulo e Rio, às vezes não serve da mesma forma no interior. Em livros de ensino fundamental, isso fica muito evidente", diz.



Para o MEC, de fato é preciso trabalhar as questões regionais também com outros recursos. "Considerando que o livro didático deve ser um dos materiais utilizados na sala de aula, as questões locais e regionais podem ser trabalhadas a partir de outros materiais disponíveis na escola, de modo a contemplar as necessidades e especificidades locais. No que se refere aos anos iniciais do ensino fundamental, o MEC avalia, adquire e distribui livros didáticos regionais de História e Geografia que contemplam tanto as realidades estaduais como municipais", informa Jane.



Concentração do mercado editorial



Musa lembra que o mercado editorial no Brasil em termos de livros didáticos é bastante concentrado, e existe uma grande disputa das editoras para que os livros estejam nas listas do MEC. Para ela, para fazer frente a esta concentração do mercado editorial, é importante que haja o incentivo para produção de material didático pelas próprias escolas e professores, desde que se garantam as condições necessárias.



Um estudo publicado pelo Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina, Caribe, Espanha e Portugal (Cerlalc), órgão ligado à Unesco, em toda a ibero-américa apenas 10% dos livros são editados por instituições do poder público, os outros 90% da produção é feita por editoras privadas. Na América Latina, Cuba, Venezuela e México se destacam na edição pública de livros, sobretudo didáticos.



O estudo foi publicado em parceria com a Câmara Brasileira do Livro, Grupo Ibero-americano de Editoras, e com o apoio da Fundação Santillana, também ligada a uma grande editora - a Santillana, da Espanha, que no Brasil comprou a Editora Moderna. O Brasil é o maior produtor de livros didáticos de toda a Ibero-América, com quase 18 mil títulos em 2006, representando 38,9% de toda a produção brasileira. O estudo destaca o papel do PNLD na liderança do Brasil no setor: "Em geral, o PNLD brindou dinamismo a este subsetor já que o Estado tem comprado grandes quantidades de livros das editoras privadas, com a finalidade de distribuí-los gratuitamente entre os estudantes dos colégios públicos". O PNLD é responsável por 43,6% das vendas de livros no Brasil.