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Enfermagem no Brasil: o que a pesquisa revela sobre o trabalhador de nível médio?

Estudo realizado pela Fiocruz se soma a outras bases de dados e ajuda a revelar informações sobre a formação dos 1,2 milhões de auxiliares e técnicos de enfermagem, que integram a maior categoria de trabalhadores da saúde do país
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 25/06/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47
Mulher, formada técnica ou auxiliar pela rede privada em período noturno, trabalha em alguma cidade da região Sudeste 44 horas por semana com um salário de R$1,2 mil. Essas características que intercalam os mundos da formação e do trabalho são compartilhadas por milhares de trabalhadores e foram captadas pela pesquisa ‘O Perfil da Enfermagem no Brasil’. Realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), o estudo é resultado da consolidação de cerca de 30 mil questionários respondidos por enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem registrados em metade dos municípios do país. Uma amostra que dialoga com um universo de 1,6 milhão de profissionais, 80% deles de nível médio, que perfaz metade dos 3,5 milhões de trabalhadores da saúde, a maior categoria desse setor no país.  
 
Lançado em 6 de maio, em Brasília, o Perfil é dividido em seis eixos – dedicados a identificação socioeconômica, formação profissional, acesso à informação técnico-científica, mercado de trabalho, satisfação no trabalho e participação sociopolítica – e foi financiado pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), pela Associação Brasileira de Enfermagem (Aben) e pelo Ministério da Saúde.

Os caminhos da formação
 
Embora a pesquisa tenha optado em grande medida por não separar enfermeiros, técnicos e auxiliares – trabalhando, nesses casos, com o conceito de “equipe de enfermagem” –, a base de dados do Cofen revela que, em junho de 2015, a categoria era formada por 427.040 enfermeiros, 956.389 técnicos e 455.252 auxiliares. Contudo, a parte do Perfil que se debruça sobre a formação distingue trabalhadores que ocupam postos de nível superior dos de nível médio, e traz um conjunto de informações importante para compreender os caminhos da formação profissional.
 
A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Mônica Vieira, foi a responsável pela análise dos dados da educação profissional. Ela destaca que o estudo confirmou a participação histórica da rede privada na formação dos técnicos em enfermagem. A esmagadora maioria – 886.952 mil ou 72% – se formaram em escolas particulares. Mônica detalha que se somarmos as instituições filantrópicas às privadas, essa participação sobe para 78,8%. “Isso se explica pelo histórico recente da formulação de políticas públicas voltadas para a formação de trabalhadores de nível médio na saúde que se inicia no contexto de constituição do SUS exatamente com a enfermagem, com o projeto Larga Escala nos anos 1980”.

Nesse sentido, outros marcos importantes foram o lançamento do Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem (Profae) e a constituição da Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS), ambos em 2000, e a criação do Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps). O Perfil da Enfermagem, porém, revela que entre os auxiliares e técnicos que responderam ao questionário e correspondem à amostra da pesquisa, há um baixo conhecimento das ETSUS e uma participação não muito expressiva no Profae: 78,6% afirmam não conhecer as escolas, enquanto 81% disseram não ter participado do programa. Dentre os 13,2% que conhecem as Escolas Técnicas, 41,7% foram alunos. Dos 12,6% que participaram do Profae, 38% eram atendentes que se formaram auxiliares e 59% fizeram a complementação de auxiliar para técnico.

Monica Vieira aponta que outros dados relevantes para entender o perfil desse estudante é a modalidade do curso e o tempo de conclusão. A maior parte (43,5%) dos auxiliares e técnicos frequentou as aulas no período noturno. “É o perfil do estudante-trabalhador, que trabalha para estudar e estuda para poder, no futuro, conseguir outra inserção no mercado de trabalho”. Já metade do total de 1,2 milhões de auxiliares e técnicos se formou há menos de dez anos, o que, segundo Mônica, foi uma surpresa, que deve receber maior atenção no cruzamento de dados. Dentre a parcela de informações já conhecidas, está a distribuição geográfica desses cursos, tendo 53,1% dos profissionais se formado no Sudeste; 16,2% no Nordeste; 12,7% no Sul; 7,5% no Norte; e 5,6% no Centro-Oeste. 

Superqualificação
 
Outro achado da pesquisa, que confirma uma tendência presente para outros setores e profissões, é a expressiva quantidade de trabalhadores “superqualificados”.  O Perfil da Enfermagem revelou que, dentre os profissionais que ocupam os postos de trabalho de nível médio, 30% estão cursando ou já concluíram a graduação. Os cursos mais escolhidos são enfermagem (64,8%), Serviço Social (6,9%), Fisioterapia (3,2%) e Biologia (3,1%) o que, segundo Monica Vieira, revela a preferência do trabalhador por continuar na categoria e em profissões da saúde. “Além disso, 78% auxiliares e técnicos expressaram o desejo de continuar os estudos, a maior parte dentro da própria enfermagem”, destaca a professora-pesquisadora da EPSJV.

A consequência da crescente qualificação é que tem se tornado cada vez mais corriqueiro o trabalhador com escolaridade acima da exigida pelo cargo que ocupa. O cenário gera duas frentes de luta para a categoria. No caso do serviço público, o pleito é por um Plano de Cargos, Carreiras e Salários que leve em conta a qualificação profissional. Já no caso dos estabelecimentos privados de saúde, parece haver uma tendência à contratação de pessoas com nível superior para cargos técnicos. “Além de haver um conflito entre aquilo que o profissional sabe e o que seu cargo exige, a rede privada ganha duas vezes por ter um profissional mais qualificado ganhando um salário menor”, observa Monica.

Outras bases de dados dialogam com o Perfil

A Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (AMS/IBGE) já mostrava a tendência à crescente escolarização da categoria, detectada pelo Perfil da Enfermagem. Em 2009, pela primeira vez o número de técnicos ultrapassou o número de auxiliares, que representavam respectivamente 37% e 35%. Além disso, 92% dos técnicos e auxiliares ocupados nos estabelecimentos pesquisados tinham o nível médio completo em 2009, contra 86% em 2005. A pesquisa também radiografou que auxiliares e técnicos ocupavam 889.630 postos de trabalho em estabelecimentos de saúde, correspondendo a pouco mais de 44% das vagas de todo o setor.  Monica Vieira chama atenção, porém, para uma limitação da base de dados da AMS. “Como a pesquisa olha para o posto de trabalho e não para o trabalhador, ela não dá conta da dinâmica de inserção profissional, ou seja, os postos destinados ao nível médio podem muito bem estar ocupados por pessoas com qualificação de nível superior”.

Por isso, argumenta Mônica, para entender a realidade do técnico é preciso olhar para várias bases ao mesmo tempo. “A Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, também do IBGE], por exemplo, revela informações como gênero, escolaridade, acesso a bens de consumo, etc. pois olha para o indivíduo”. De acordo com a pesquisadora, o que chama atenção tanto no Perfil da Enfermagem quanto nos resultados preliminares da pesquisa ‘Trajetórias educacional e ocupacional dos trabalhadores técnicos em saúde do Brasil’, coordenada por ela no âmbito do Observatório dos Técnicos em Saúda da EPSJV, é o viés multifacetado da inserção profissional do técnico. “É a realidade de um trabalhador que já ocupou diversos outros postos de trabalho em outros setores, como o comércio, busca a formação na área da saúde mais velho por enxergar no setor uma trajetória profissional mais estável, mesmo com os baixos salários e, em decorrência, a necessidade de ter mais de um vínculo para complementar renda”.

Outra pesquisa importante para analisar a atração que postos da saúde de nível médio exercem sobre a população é o Censo da Educação Básica que, desde 2010, traz dados sobre as matrículas separados por cursos da educação profissional. O curso técnico em enfermagem só perdeu a primeira posição em número absoluto de matrículas nas redes federal, pública (escolas estaduais e municipais) e privada em 2012 para o curso técnico em informática, que naquele ano contabilizou 154.976 matrículas contra 154.359 da enfermagem. Na rede privada, porém, o técnico em enfermagem é o campeão em matrículas, embora sua participação relativa venha caindo sensivelmente ano a ano: representava 23% em 2010, 21,8% em 2011, 18,9% em 2012 e, finalmente, 17,6% em 2013, correspondendo a 121.357 mil matrículas naquele ano. Na rede pública, o Censo detecta uma posição que oscila entre o quarto e o quinto lugar entre todos os cursos ofertados. Em 2013, foi o quinto curso com mais matrículas nessas escolas, correspondendo a 32.475 mil ou 4,3% do total. Na Rede Federal o curso técnico em enfermagem não aparece entre os dez com maior número de matrículas em nenhum desses anos.

Educação a Distância

Embora não traga dados sobre cursos feitos na Educação a Distância (EaD), nos eventos de lançamento da pesquisa o Cofen tem reafirmado sua posição contrária à modalidade. O presidente da entidade, Manoel Neri, considera “fundamental o combate à precarização da formação profissional, especialmente na modalidade EaD”, que considerada “inadequada para a formação de profissionais de lidam diretamente com a vida humana”. Na medida em que a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC) e a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (SGTES/MS) têm feito esforços para ampliar essa modalidade na educação profissional (como você pode ler aqui e aqui), Neri lembra que, desde 2010, todos os conselhos federais da saúde argumentaram pela inadequação da EaD para as graduações, posição que o Cofen mantém também para os cursos técnicos.  “Se a Setec tem dito que a formação em EaD é uma das prioridades para 2015, me parece que está em tempo de rever esta meta, pelo menos no que se refere à formação de enfermeiros e técnicos de enfermagem no Brasil”.

Mundo do trabalho
 
O Perfil da Enfermagem revelou que o salário médio da categoria é de R$ 1, 2 mil. Contudo, 16,8% dos profissionais têm renda mensal de até mil reais, enquanto que 1,8% ganham menos de um salário mínimo (R$ 788) por mês. Os piores salários são pagos pela rede filantrópica e privada, responsáveis, respectivamente, por 21,5% e 21,4% dos salários de até R$ 1 mil. Em ambos, os vencimentos de mais da metade do contingente de trabalhadores empregados não passa de R$ 2 mil. As jornadas de trabalho estão longe de serem tão baixas quanto os salários, sendo a carga horária semanal média de 44 horas semanais.

“A regulamentação da Jornada de Trabalho em 30 horas semanais e a criação do piso salarial nacional são fundamentais para oferecer aos profissionais condições adequadas de trabalho e de vida, com reflexos diretos na qualidade da assistência à saúde”, argumenta o presidente do Cofen, Manoel Neri. A categoria luta por pisos de R$ 7.880 para enfermeiro, R$ 3.940 para o técnico e R$ 3.152 para auxiliares.

O setor público é o que mais emprega (59,3%), seguido pelo privado (31,8%), filantrópico (14,6%) e ensino (8,2%). Quanto ao número de vínculos, 63% exerce apenas uma atividade profissional, 25% duas e 2,6% de três para cima. Ao lado dos trabalhadores com vários vínculos e jornadas exaustivas, alguns trabalhadores sofrem do problema inverso: a subjornada. Cinquenta mil profissionais (3,2%) trabalham 20 horas ou menos por semana; enquanto que 26 mil (1,7%) trabalham menos de 10 horas semanais.  

A dificuldade de encontrar emprego nos últimos 12 meses foi relatada por 65,9% dos profissionais de enfermagem, enquanto 10,1% relataram terem vivido situação de desemprego no último ano. Outro dado negativo é o desgaste profissional, que afeta 66% dos trabalhadores da enfermagem.