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Estado, sociedade e formação profissional no SUS

Discussões sobre globalização, relação entre público e privado, democracia, trabalho e educação marcam Seminário de comemoração dos 20 anos de Sistema Único. 


Com o tema ‘Democracia, participação e gestão em saúde’, a mesa 3 do seminário de trabalho ‘20 anos do SUS: contradições e desafios’ contou com a participação da historiadora Virgínia Fontes e do médico sanitarista Nelson dos Santos, o Nelsão.







Virgínia Fontes: Democracia com coerção e convencimento





Virgínia FontesVirgínia Fontes, que é professora da pós-graduação da Escola Politécnica Joaquim Venâncio (EPSJV) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), falou sobre ‘A democracia retórica-expropriação, convencimento e coerção’. Para explicar a relação entre as forças de coerção e convencimento hoje, Virgínia citou Gramsci. Segundo ela, o autor afirma que a democratização significa a redução das formas de coerção e o crescimento do convencimento. “No entanto, vemos que, via de regra, essas duas ações têm aumentado nos últimos anos. As forças de coerção não diminuem, já que a violência social é muito forte”, afirmou.



De acordo com Virgínia, no Brasil há exemplos claros das duas estratégias. “No início das nossas privatizações, presenciamos demissão em massa – e quem começou a demitir foi o próprio governo. Casos como o do Banco do Brasil foram catastróficos e serviram como lição para os trabalhadores. O desemprego é uma forma de violência. Aliado a essa coerção, estava o convencimento, pela mídia”, lembrou.



A professora disse que uma forma de entender esse processo é pensar como as lutas sociais dos anos 80 foram se transformando e que, para isso, é importante refletir sobre o papel da Força Sindical. “A Força Sindical foi criada em 1991, no governo Collor, com recursos patronais, representados pela Federação das Industrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e outras organizações. Elas auxiliaram a criação de uma central sindical que deveria estar voltada para o compromisso de melhorar a vida dos trabalhadores, mas que atua negociando com o patronato apenas aquilo que é ‘possível’ de ser feito”. Virgínia lembrou que a Força Sindical não foi criada só pelos empregadores, mas também por uma parcela dos próprios trabalhadores. “Eram os que se consideravam representados na luta simplesmente  pelo aumento de salários. Não iam adiante. Eu defendo que o salário seja uma das preocupações das cooperativas, mas é dramático que ele impeça o avanço do pensamento e das discussões”, disse.



Virgínia também criticou o papel das Organizações Não-Governamentais (ONGs), que se multiplicaram a partir dos anos 80 e 90 e ganharam caráter empresarial, transformando a militância em trabalho pago. “É a mercantilização da filantropia”, afirmou a historiadora, completando: “Por trás disso, há uma nova pedagogia da hegemonia, que faz com que as ONGs defendam, com orgulho, seu apoliticismo e a redução dos recursos para o setor público, para que elas próprias possam geri-los em nome da eficácia e da eficiência. O que acontece é o empresariamento das ONGs. Trata-se de aprender a ganhar dinheiro fazendo filantropia e depois aprender a gerir o dinheiro fazendo filantropia”, analisou.



A professora acredita que essas organizações pensam a miséria de uma forma muito superficial. “A idéia é a da cidadania da miséria e a grande questão é salvar os pobres, em vez de encarar os problemas que fundam a pobreza. As ONGs se organizam contra a fome e a miséria, e não contra a sociedade de classes: as condições de produção das desigualdades não entram em pauta”, disse.



Nelsão: SUS com subfinanciamento, políticas fragmentadas e desmobilização social





NelsãoNelsão, que participou do movimento sanitário e hoje é professor da Unicamp, estruturou sua palestra a partir de observações empíricas que colheu nos últimos 18 anos, desde a promulgação da Lei Orgânica da saúde. Ele apresentou alguns mecanismos de gestão que considera políticas de governo e outros que classifica como políticas setoriais.



Para o professor, uma das iniciativas de governo que foram importantes para os rumos que o SUS tomou é o subfinanciamento. “Isso vem desde que os 30% dos recursos da Seguridade Social deixaram de ser passados à saúde. Essa porcentagem havia sido estabelecida pelas disposições transitórias na Constituição de 1988, mas em 1993 houve um corte abrupto. Foi quando o SUS começou a quebrar”, contou. A participação de orçamentos federais no financiamento indireto dos planos de saúde também foi analisada. “Hoje, mais de R$ 10 milhões ao ano são destinados a seguradoras, o que representa cerca de 20% do orçamento total delas”, afirmou. Nelsão também falou sobre a fragmentação do Ministério da Saúde. “Além do gabinete do ministro, temos a Fundação Nacional de Saúde, a Secretaria de Atenção à Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária... Todas essas instâncias controlam a saúde, e não fazem esse controle seguindo uma lógica única”, disse.



Entre as ações setoriais citadas está a fragmentação dos repasses. “Ela diminuiu um pouco com o Pacto de Gestão, mas existe uma pressão para que não diminua mais”, explicou Nelsão. Outro problema é o que o professor chama ‘furor normativo’: “O volume de portarias publicadas no Diário Oficial é tão grande que é impossível que os municípios dêem conta de estudarem e aplicarem tudo. Isso acaba servindo para reforçar o discurso de que eles são incapazes de fazerem a gestão”, disse. Nelsão ainda criticou a realização de um processo descendente de planejamento (enquanto a Lei Orgânica estabelece que ele deve ser feito do nível local até o federal) e a predominância da remuneração por produção, entre outras políticas.



Para Nelsão, uma das deficiências da saúde brasileira está em nosso modelo de atenção básica, que é mantido com baixo custo e tem baixa ‘resolubilidade’. “A atenção básica não assume um caráter estruturante e é focalizada apenas nos pobres e miseráveis. Os recursos financeiros disponibilizados são muito baixos e os secretários de saúde precisam fazer um grande esforço para conseguirem manter as ações. Nessa situação, as empresas privadas encontram fértil terreno para capturar clientes de classe média, além dos próprios servidores públicos, que passam a ter planos de saúde”, analisou.



Mas o professor mostrou algum otimismo. “Temos alguns dados que entusiasmam, como a grande cobertura da Estratégia Saúde da Família. Há um grande número de ações ambientais, de consultas, de tratamentos de hemodiálise,  temos um programa de prevenção à AIDS que é referência mundial. Esses resultados são calcados em uma surpreendente produção dos trabalhadores de saúde, uma capacidade inimaginável de produção, tendo em vista os parcos recursos disponíveis”.



Por fim, Nelsão questionou a queda da participação social nas questões políticas que envolvem a saúde: “Como estão, hoje, as entidades da reforma sanitária? Como anda a capacidade de análise e formação de mobilização política? Hoje, temos instituições que não havia nos anos 80, como o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), o Ministério Público, a Frente Parlamentar da Saúde. no entanto, houve grande diminuição da mobilização. O que está acontecendo? Só posso ficar na utopia de uma re-mobilização, que nos leve a algo parecido com o que foi a Assembléia Nacional Constituinte”. Na opinião dele, a situação chegou a tal ponto que a sociedade vai exigir esse recomeço. “É preciso que se exija uma revisão do pacto social ensaiado nos anos 70. E isso vai começar com a consciência das necessidades”, disse.





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