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Estado, sociedade e formação profissional no SUS

Discussões sobre globalização, relação entre público e privado, democracia, trabalho e educação marcam Seminário de comemoração dos 20 anos de Sistema Único. 


Sergio Lessa e Ruben Mattos‘Trabalho e trabalho em saúde’, tema da mesa 4 do seminário ‘20 anos do SUS: contradições e desafios’, gerou uma intensa discussão acerca do marxismo e do papel do capital. Sergio Lessa, que é professor de filosofia na Universidade Federal de Alagoas, e Ruben Mattos, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) foram os palestrantes convidados.



Sergio Lessa: Trabalho e defesa dos fundamentos



Em sua apresentação, sobre ‘Trabalho e sujeito revolucionário: a classe operária’, Sergio Lessa refletiu sobre o ideário revolucionário da esquerda. Ele iniciou a palestra explicando que as tendências políticas que se consolidaram nas esquerdas após a Segunda Guerra Mundial – o stalinismo e a social-democracia – tinham pontos em comum, apesar das diferenças. “Tanto no bloco soviético como no ocidente, as políticas adotadas nunca se aproximaram do fim da divisão em classes, do Estado e da propriedade privada”, disse.



Segundo o professor, no bloco socialista predominava o trabalho manual e a idéia corrente era a de que o trabalho intelectual era algo em extinção. Na social-democracia, por outro lado, pensava-se que, com o fordismo, as fábricas fossem substituir o trabalho manual e, aos poucos, ele deixaria de existir. “Ou seja: na verdade, ambos os modelos deveriam confluir e, no mundo contemporâneo, a diferença de classes estaria se esgotando. Essa corrente de pensamento esteve presente nos anos 60 e se reafirmou até os anos 70, quando, com a crise do capital, os dois projetos demonstraram inviabilidade e se dissolveram”, contou, lembrando que essa dissolução foi feita de dentro para fora. “Não houve invasões, não houve guerras. Os sistemas se desmontaram sozinhos e o neoliberalismo veio sem grandes rupturas. É interessante notar que os partidos que estão agora no poder, em meio ao neoliberalismo, são em geral aqueles que começaram a social-democracia”, observou.



Lessa disse que, quando as teses de que a classe operária iria acabar se mostraram falsas, os estudiosos deveriam ter parado para repensar os seus fundamentos. “Mas, em vez disso, houve grande aceleração na produção acadêmica, e as pessoas reafirmavam as teses antigas, só que com nova roupagem. E passou-se a dizer: ‘Não foi o fordismo que acabou com a divisão de classes, mas será o toyotismo...’. Isso não faz sentido”, afirmou Lessa, completando: “Isso tem a ver com nosso espírito pós-moderno. Tudo é muito rápido e as discussões fundamentais ficam para trás. Não existe absolutamente nenhum dado empírico que mostre que o trabalho manual está acabando, tampouco que o intelectual está acabando. Não existe nada que demonstre que vai haver uma fusão entre essas modalidades ou que a mais valia vai acabar. No entanto, isso continua sendo afirmado”, disse.



Ruben Mattos: Cuidado como categoria para a saúde





Ruben Mattos, que apresentou o tema ‘Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas a partir da defesa de alguns valores’, também criticou a falta de estudos profundos e procurou, em sua palestra, mostrar a necessidade de desconstruir premissas consolidadas pelo senso comum. “Para ter um pensamento crítico, é preciso ir contra essas premissas, valores e preconceitos e produzir algo que represente um movimento de indignação em relação às tendências”, afirmou. 



Ele procurou tomar alguns valores que são considerados verdades universais e criar essas contradições, para analisar a situação do trabalho em saúde. Para isso, ele escolheu três princípios estruturais do cuidado: a medicalização, a racionalidade médica centrada na doença e o capital. “Quero criticar premissas como ‘o capital destrói a vida’, ‘a mercadoria é contra o direito’ e ‘a racionalidade centrada na doença precisa ser superada ou não há possibilidade de saúde’”, disse. Para ele, as críticas que se fazem a esses princípios fazem sentido, mas é importante nos perguntarmos se eles também não podem agir em defesa da vida. Quanto à centralidade na doença e à medicalização, Mattos afirmou que existem pontos positivos e negativos nessa estrutura. “Se afirmamos que apenas o profissional de saúde formado consegue entender o sofrimento das pessoas, estamos desqualificando esse sofrimento, de alguma forma. Por outro lado, doença e sofrimento não são campos necessariamente malévolos. A centralidade na doença tem um potencial grande: conseguimos, por meio do saber médico, erradicar certas doenças, o que é excelente”, disse.



O professor ainda afirmou que os médicos, entendendo esse tipo de racionalidade, podem transgredi-la e cuidar dos pacientes centrando-se nos sujeitos. “Os médicos agem sobre uma estrutura, mas as formas de estruturação das práticas não atuam de forma isolada”, afirmou, lembrando o papel dos agentes comunitários de saúde (ACS): “Os ACS são próximos à comunidade, têm um conhecimento diferente do dos médicos, e isso gera um diálogo muito fértil e rico em práticas emancipadas. Mas eles precisam saber de doenças, caso contrário, não conseguem controlar a medicação em certos momentos. O ACS não precisa saber tudo sobre a doença, mas deve evitar reforçar as crenças do senso comum, o que atrapalha a cura”, disse.



Uma das afirmações de Ruben que mais gerou discussões foi a de que o capital pode agir em favor da vida. “Quando, por exemplo, um médico atenta para o sofrimento de um paciente e lhe oferece como solução um medicamento produzido por uma multinacional que vai prolongar sua vida e aliviar sua dor, afirmo que o capital pode, sim, promover a defesa da vida”, disse.



Ele admitiu, porém, que a ânsia pela acumulação de capital leva o setor de bens e serviços a produzir mais do que a racionalidade exige, fabricando necessidades. Nesse caso, o capital e a medicalização podem ser encarados negativamente. “O excedente vai afastando as práticas de cuidado do cuidado em si. Cria-se a ideologia do mercado, e, às vezes, isso até aumenta o sofrimento, em vez de diminuí-lo. Mas isso não significa que não haja uma conexão entre a possibilidade de intervenções eficazes e o fortalecimento da indústria farmacêutica.”, observou, completando:  “Eu defendo que mesmo quem não pode pagar deve ter direito a esses produtos, mas não posso ser contra algo que é bom e vendido. A produção de necessidades é preocupante: acredito, inclusive, que devemos defender um Estado que restrinja a inovação e regule a entrada desses novos produtos. Quando não há a defesa da vida, precisamos ser contrários ao capital”, concluiu.





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