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Evento discute organização da categoria de Agentes Comunitários de Saúde

Cumprimento da lei que desprecariza os vínculos e luta por piso salarial e plano de carreira foram temas de encontro que reuniu mais de 150 ACS na EPSJV. Evento, realizado em parceria com a Associação Municipal dos ACS do Rio de Janeiro, quer ajudar a mobilizar os agentes do município.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 30/10/2009 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Primeiro foi a criação da profissão, depois a desprecarização dos vínculos. No meio disso tudo, tinha ainda a formação técnica. Atualmente, a principal luta dos mais de 400 mil agentes comunitários de saúde (ACS) do país inteiro é por um plano de carreiras e um piso salarial, que fazem parte da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 391/09, em tramitação na Câmara dos Deputados. Para os ACS do Rio de Janeiro, no entanto, essa nova frente se junta às reivindicações antigas. Isso porque, no município, como em muitos outros, ainda não foi cumprida a lei 11.350 que estabelece, dentre outras coisas, que esses trabalhadores devem ser contratados diretamente pelo governo municipal, sem intermediação de organizações não-governamentais ou organizações sociais, como acontece hoje. “Sabemos que os ACS estão, inclusive, com os dissídios atrasados, mas o foco da Amacs (Associação Municipal dos Agentes Comunitários de Saúde) do Rio de Janeiro é o cumprimento dessa lei”, explicou Ronaldo Moreira, da diretoria da Amacs-RJ.



Para discutir essas e outras questões relativas a essa categoria profissional, cerca de 150 ACS se reuniram na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) no dia 24 de outubro, sábado. O evento, organizado pela EPSJV e pela Amacs-RJ, se chamou ‘A luta pelo reconhecimento e pela regulamentação do trabalho do ACS no contexto nacional e da legislação vigente’ e terá continuação no dia 14 de novembro. No segundo encontro, serão apresentados, em plenária, os resultados da discussão feita pelos ACS presentes durante o trabalho de grupo.



Salário e carreira



A presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs), Ruth Brilhante, anunciou que a luta principal da entidade nesse momento é pela aprovação da PEC 391/09, de autoria do deputado Raimundo Gomes de Matos (PSDB-CE). A proposta inclui no artigo 198 da Constituição a informação de que uma lei federal “disporá sobre regime jurídico, piso salarial profissional, plano de carreira e a regulamentação das atividades” dos ACS e dos agentes de combate a endemias. O texto sofreu modificações na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que deu parecer favorável à proposta, mas sugeriu a supressão das expressões “plano de carreira” e “regime jurídico”. A PEC está aguardando parecer da deputada Fátima Bezerra (PT-RN) numa Comissão Especial. Se o parecer for favorável e for aprovado pela Comissão, o texto segue para o plenário da Câmara e, depois, do Senado. Em ambas as Casas, ele precisa ser aprovado em dois turnos.



Segundo a assessoria da deputada Fátima Bezerra, não há previsão para a conclusão do relatório. Mas a assessora jurídica da Conacs, Elaine de Almeida, diz que está sendo feito todo o esforço e toda a mobilização para que o relatório seja votado entre 10 e 12 de novembro — em que vai ser realizada uma marcha dos ACS em Brasília —, a votação no Senado aconteça em dezembro e, com isso, o projeto seja aprovado ainda este ano. Enquanto todo esse processo corre, já está em tramitação no Senado o projeto de lei 6.111/09, de autoria da senadora Patrícia Saboya, que vai regulamentar a Emenda Constitucional. O projeto, que só pode ser votado depois da aprovação da PEC 391, modifica a lei 11.350 e institui o piso salarial de R$ 930 para os ACS e ACE.



Histórico de lutas



A assessora jurídica da Conacs também fez um histórico das lutas e da consolidação da categoria dos ACS no Brasil. Segundo ela, a brecha para a precarização do vínculo desses trabalhadores está no decreto 3189/99, que caracteriza a atividade do ACS como de “relevante interesse público”. Passou-se a adotar com os ACS, então, o texto da Constituição Federal que, no artigo 37, permite fazer contrato temporário por tempo determinado quando se trata de “atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”. O problema é que o “temporário” virou permanente. Até que, em 2003, o Ministério Público do Trabalho identificou essa situação irregular e passou a notificar o Ministério da Saúde para resolver o problema. Mas a solução, naquela época, era a demissão de todos os ACS e a contratação via concurso público. O argumento de que o agente comunitário precisa morar na comunidade onde trabalha, em função do vínculo com a população, foi usado no questionamento do mecanismo do concurso, que, como é necessariamente público e universal, não permite exigir que o candidato se more nesse ou naquele lugar. Essa luta, que era, ao mesmo tempo, pela desprecarização e pela não-demissão dos trabalhadores, saiu vitoriosa com a aprovação da EC 51/06, que criou, na Constituição, a figura do “processo seletivo público”, com regras diferentes das do concurso, especialmente para os ACS e os agentes de combate a endemias. Como a maioria dos agentes em serviço passou por algum processo seletivo público quando foi contratado, eles seriam ‘automaticamente’ incorporados ao quadro de servidores públicos. A lei 11350, que regulamenta a EC 51, concluiu a vitória desses trabalhadores, estabelecendo que o vínculo deve ser direto com o município.



A presença em massa de agentes comunitários do Rio de Janeiro ao evento, e o esforço de organização que esses trabalhadores estão fazendo no município, é um dos sinais de que a vitória na lei não se traduziu em vitória na prática. Os mais de 1800 ACS do município, segundo dados da Amacs-RJ, permanecem com vínculo precário. “A questão no Rio não é jurídica, é política. E problema político só se resolve com mobilização social”, disse Elaine, citando a situação de Goiás, em que todos os municípios exceto um efetivaram os ACS por vínculo direto, como exemplo de conquista dos trabalhadores organizados.



Organizar para quê?



Mas o evento também discutiu o sentido e os objetivos de se incentivar a mobilização social — que foi a tônica da maior parte das falas. Virgínia Fontes, professora-pesquisadora da EPSJV e da Universidade Federal Fluminense, chamou atenção para o cuidado de não se esgotar essa mobilização nas lutas por interesses pessoais. “Quando defendemos direitos nossos, precisamos ter clareza de que essa luta é também pela universalização dos direitos”, disse, e exemplificou com a situação vivida pelos próprios ACS. “Muitas vezes vamos ter, inclusive, que discordar de propostas de mudança na Constituição para beneficiar uma categoria profissional, porque a luta maior é pelo público e pelo coletivo”, apontou.



Foi com o objetivo de mostrar o contexto maior em que a luta dos ACS se insere que Virgínia deu uma verdadeira aula sobre ‘A transformação do trabalho no capitalismo contemporâneo’. Ela falou, por exemplo, da forma como o capitalismo lida com a organização social, com estratégias que ela chamou de “morder e soprar”. Funciona assim: como não vivemos mais numa ditadura, não se pode proibir que os movimentos sociais ou sindicais se organizem. Mas, ainda assim, faz-se de tudo para dificultar essa mobilização. “É o morde”, explicou. Além disso, tenta-se cooptar, com dinheiro ou outros benefícios, algumas lideranças que são colocadas no lugar de quem fala por toda a categoria profissional, por exemplo. “É o sopra”, disse. Já quando as lideranças estão realmente próximas de suas bases e não aceitam cooptação, volta o uso da força: é o morde de novo. “Entender essa realidade ajuda a não aceitar o sopro depois da mordida”, concluiu.



Virgínia explicou que os trabalhadores ‘livres’ são um dos elementos principais de sustentação do capitalismo. Ele só existe porque foi retirado da condição de produtores da sua própria existência, no campo. “No início do século XX, o Brasil tinha 90% dos seus trabalhadores no campo e 10% na cidade. Hoje, só 18% estão no campo e os outros 82% na cidade”, comparou, mostrando como a piora nas condições de vida no campo expulsou os trabalhadores de lá. “O capitalismo depende da produção de trabalhadores impedidos de produzir a sua existência. Porque assim, eles são obrigados a vender sua força de trabalho”, completou. Muitas vezes, essa ‘venda’ se dá mesmo sem um contrato. “Como precisa do salário, o trabalhador aposta que pode se unir depois e conseguir o contrato. Não é mais ou menos isso que estamos fazendo aqui hoje”, perguntou Virgínia, referindo-se à luta pela desprecarização dos ACS. Ela reforçou ainda que o direitos trabalhistas — o “contrato” — são conquistas dos trabalhadores e que, mesmo quando paga todos os direitos, o capital sempre está no lucro.



Se esse processo é estruturante do capitalismo, explicou Virgínia, não faz sentido dizer que o mundo do trabalho acabou. Ela mostrou como o desemprego é, na verdade, mais uma estratégia de exploração do trabalho. “Em vez de lutar contra o capital, os trabalhadores demitidos concorrem com os outros trabalhadores que estão empregados. Nessa concorrência, aceitam trabalhar em condições piores e o capital abre novas frentes para contratar mais trabalhadores por um preço mais barato”, disse. E concluiu: “Nos últimos 20 anos, fomos expropriados do direito ao contrato de trabalho, através do desemprego. Só tem um jeito de enfrentar isso: organizar os trabalhadores”.